Ideologia do Crime: Como os Pancadões Refletem e Reforçam a Cultura do Crime Organizado

Compartilhe:
Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

Os “pancadões”, eventos clandestinos em áreas de falha do Estado, propagam a ideologia do crime organizado, normalizam a ilicitude, fortalecem facções e subvertem a ordem pública, desafiando a segurança nacional.


O presente artigo analisa a intersecção entre os pancadões – eventos marcados por aglomerações clandestinas em espaços onde a presença estatal é deficiente, seja por falta de meios financeiros ou de recursos jurídicos – e a propagação da ideologia do crime organizado no Brasil. A ausência de mecanismos eficientes de fiscalização e controle comprometem a ordem pública nestes locais, permitindo a formação de expressivos afluxos populacionais em comunidades por todo o Estado, cenário propício para a transmissão da ideologia criminosa.

Parte-se, a priori, de que esses eventos transcendem a mera expressão cultural, tornando-se vetores da normalização da ilicitude e fortalecimento – econômicos, ideológicos e simbólicos – de facções criminosas, com destaque para o Primeiro Comando da Capital (PCC). Analisa-se também como o crime organizado se apropria de arquétipos sociais e narrativas populares para consolidar uma estética da marginalidade, subvertendo a lógica da ordem pública ao conferir status heroico ao criminoso e relegar o Estado e seus agentes à condição de antagonistas, sendo para tanto, utilizada a ideologia, com estratégias de uma guerra híbrida contra o Estado como uma insurgência criminosa.

O estudo também examina os impactos dessas características na segurança pública e na coesão social, propondo estratégias de mitigação fundamentadas em uma abordagem multidimensional que inclui, além da repressão eficaz, medidas que considerem os possíveis efeitos colaterais dessa atuação, com foco na intervenção estatal sistemática e na implementação de políticas públicas integradas.

Introdução

Em diferentes países e épocas, o crime organizado acolhe nomes específicos que refletem suas particularidades regionais e os identificam como grupo. A Máfia (ou Maffia na forma original italiana) é o termo associado ao crime organizado italiano e ítalo-americano; no Japão, fala-se em Yakuza; na China, em Tríades (Sociedade da Tríplice União); Cartel é o termo comum no México e também na Colômbia; e na Rússia, as organizações criminosas são conhecidas como Bratva (A Irmandade). No Brasil, essas organizações são denominadas Comandos – facções ou organizações criminosas que dominam grande parte das atividades ilícitas no país, com destaque para o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro e esquemas de corrupção. O exemplo mais notório é o Primeiro Comando da Capital (PCC), que exerce significativo controle sobre essas operações criminosas no Brasil.

O PCC se caracteriza como uma organização criminosa devido à sua estrutura altamente organizada e centralizada que se distingue das facções comuns. Com uma hierarquia bem definida, disciplina rigorosa, treinamento específico e um sistema de operações eficiente, a organização é gerida de forma meticulosa para alcançar seus objetivos ilícitos. Essa estrutura permite que o grupo mantenha controle sobre suas atividades criminosas, garantindo a eficácia e a continuidade de suas operações, como o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro e outros esquemas de corrupção.

Um grupo com atuação internacional, que movimenta milhões de reais todos os meses, conta com milhares de membros e possui rigidez nos negócios e na hierarquia interna. A descrição do PCC (Primeiro Comando da Capital) lembra a de uma multinacional bem-sucedida. Com atuação em quase todo o território brasileiro, mais de 30 mil membros e movimentação financeira que já ultrapassa R$ 1 bilhão, o PCC é uma das principais organizações criminosas da América do Sul” (CRIME E PODER, 2023, grifo nosso).

Essa organização interna demonstra a conformidade com a definição de organização criminosa segundo a Lei 12.850/13 (BRASIL, 2013), que introduz mecanismos penais e processuais para combater grupos criminosos. Conforme o § 1º do art. 1º da referida lei:

[…] uma organização criminosa é definida como a associação de quatro ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter vantagem de qualquer natureza, direta ou indiretamente, através da prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional” (BRASIL, 2013).

É fundamental, portanto, distinguir uma facção de uma organização criminosa. Enquanto uma organização criminosa pode ser caracterizada pela simples associação de três ou mais pessoas com o propósito de cometer crimes, muitas vezes sem uma estrutura formal, organização ou sistema, o crime organizado vai além. Ele adota uma lógica empresarial, criando diretrizes claras e uma estrutura altamente organizada para garantir a eficiência e a produtividade de suas atividades ilícitas que o diferencia das facções mais informais. Além disso, é importante ressaltar que as organizações criminosas também se caracterizam por possuir uma forte identidade de grupo e uma ideologia própria, elementos que reforçam sua coesão interna e legitimam suas práticas criminosas.

Nesse contexto, o crime organizado busca não apenas maximizar seus lucros e lavar dinheiro, mas também expandir sua ideologia criminosa para alcançar objetivos criminosos. Esse “empreendimento” envolve uma série de operações criminosas, que vão desde o tráfico de drogas até esquemas de corrupção em larga escala, operando sob uma coerência empresarial voltada para a perpetuação e expansão do poder da organização, como por exemplo adegas e tabacarias, conforme verifica-se na reportagem do R7:

Adegas eram usadas como fachada pelo PCC para financiar pancadões na comunidade Elisa Maria, na zona norte de São Paulo. Flagrantes dos bailes mostram uma grande quantidade de pessoas que se reúnem no local e consomem, principalmente, bebidas falsificadas, nos bares localizados pelo local. Foram apreendidas muitas bebidas e máquinas de cartão, que eram usadas pela facção criminosa para lavar dinheiro do crime”. (CIDADE ALERTA/DO R7, 2024).

Dentro desse cenário, destacam-se os “Pancadões” – eventos clandestinos que reúnem grandes aglomerações de pessoas em locais públicos, geralmente em comunidades, favelas e ruas. Esses eventos, marcados por músicas de funk, consumo de bebidas, uso de drogas e práticas criminosas, têm um impacto significativo nas áreas em que ocorrem as atividades ilícitas. Embora vistos por muitos como uma expressão cultural legítima, os pancadões também refletem uma realidade mais sombria: a difusão da ideologia do crime organizado.

Ademais, a relação entre os pancadões e o crime organizado vai além da simples criminalização desses eventos. Esses espaços servem como plataformas para a disseminação de valores e práticas que sustentam e perpetuam a cultura criminosa, normalizando comportamentos ilegais, desafiando a autoridade do Estado e criando toda uma ideologia do crime na mente das pessoas.

O funk, especialmente em suas vertentes mais radicais como o “Proibidão”, frequentemente exalta a figura do criminoso, glorificando atividades ilícitas e criando uma narrativa em que o crime é visto como uma via legítima de ascensão social, assunto que será aprofundado neste artigo. Um exemplo de canções que invertem a ordem legítima do certo e errado e contribuem para a normalização e glamourização do crime é a música Apologia [1] do MC Daleste, onde há a exaltação e o orgulho de ser um criminoso:

Matar os polícia é a nossa meta
Fala pra nós quem é o poder
Mente criminosa, coração bandido
Sou fruto de guerras e rebeliões
Comecei menor, já no 157
Hoje meu vício é roubar, profissão perigo
Especialista, formado na faculdade criminosa
Armamento pesado, ataque soviético
Esse é o bonde do MK porque
Quem manda aqui
É o 1P2C, fala pra nós quem é o poder
Fala pra nós quem é o poder

Se tu quer ouvir apologia
Eu te apresento nosso arsenal
AK, Pistola, Glock, G3, Mini-Uzi
762 Furador Parafal, AR15, ARB, Magnum, Macs
Fuzil holandês, MP5 762, Semiautomática M16, AP Colt
190 Galac Torrents, Meiota e 50
Especialista em assaltos bancários
Formado na faculdade criminosa
Sub-Uzi, Aimcheck, Flatclonos, Ponto 40
Tipo guerrilha, São Paulo, SP, a grande capital é toda nossa

Meu nome você quer saber
Pra denunciar pros verme da
Quer me rastrear e toma lá dá cá, bate de frente, faz sua parte
É nós que soma e nós que tá
Forma de expressão pra mim não interessa
Tamo embrazado na mesma missão
Matar os polícia é a nossa meta
Se tu quer ouvir apologia
Eu te apresento nosso arsenal (ham)
Esse é o kit do mal


[1] Letra da música Apologia do MC Daleste descrita no site LetrasMusBr: URL: https://www.letras.mus.br/mc-daleste/1655703/.


Não se pode deixar de notar como a ideologia e a cultura criminal se apropriam dos símbolos e arquétipos sociais, principalmente do arquétipo de herói – que geralmente representa o ideal de virtude sendo visto como um modelo a ser seguido – associando o traficante ao herói e o policial ao vilão (também conhecido como alemão nas comunidades do Rio de Janeiro). Essa inversão contribui para a desintegração dos costumes e normalização da criminalidade, criando um ambiente onde o crime não só é tolerado, mas admirado.

Nessa perspectiva, os pancadões funcionam não apenas como eventos de lazer, mas como laboratórios ideológicos do crime organizado, além de serem tentáculos financeiros que proporcionam lucro e poder a essas organizações. A ostentação de riqueza adquirida de forma ilícita, o recrutamento de jovens para atividades criminosas e a lavagem de dinheiro através de comércios informais são apenas alguns dos aspectos que evidenciam a profunda ligação entre esses eventos e o submundo do crime. Esses fatores tornam os pancadões uma peça fundamental na manutenção da estrutura do crime organizado, atuando como um meio de propagação de sua ideologia e uma ferramenta de fortalecimento econômico.

Então, a banalização dos valores sociais tradicionais, a presença constante do crime nesses eventos ilícitos e a desintegração dos costumes são consequências devastadoras para a sociedade, criando um ambiente onde o crime é normalizado e o criminoso, muitas vezes, é visto como mártir ou herói. A intervenção do Estado é recebida com desconfiança e resistência, dada a cultura e a imposição da força pelo crime organizado. Essa complexa realidade apresenta-se como um imenso desafio para as autoridades de segurança pública no Brasil, que precisam lidar com a complexa teia de influências culturais, sociais e econômicas que sustentam a dinâmica do crime organizado.


LIVRO RECOMENDADO:

O front interno: As desordens públicas como armas de guerra

• Alexandre Antunes Ribeiro (Autor)
• Edição português
• Kindle ou Livro cartonado


Porém, para solucionar os principais problemas existe uma necessidade gritante de envolver não apenas os agentes de segurança pública, mas também de se estabelecer parcerias com outros órgãos que vão além da ação policial. Além disso, o apoio político e o apoio jurídico são imprescindíveis, tornando cada vez mais urgente a reformulação do sistema jurídico e penal, alterando e atualizando as leis para permitir a efetiva ação do Estado contra o crime organizado e, consequentemente, contra sua ideologia.

Assim, este artigo tem como objetivo analisar como os pancadões refletem e reforçam a cultura do crime organizado, explorando os mecanismos pelos quais esses eventos perpetuam a ideologia criminosa e os desafios que isso representa para a segurança pública nacional. Ao investigar essa relação, busca-se não apenas compreender a dinâmica interna dos pancadões, mas também propor estratégias que possam mitigar sua influência e oferecer alternativas viáveis para as comunidades afetadas. Por fim, discute-se como a ideologia do crime organizado se manifesta e é perpetuada, além de sua forte influência na sociedade.

Doutrina e Ideologia do Crime Organizado no Brasil

Ao analisar o Estatuto do PCC, é possível constatar que a base conceitual e normativa do crime organizado no Brasil se estrutura tanto por meio de dispositivos semelhantes aos jurídicos quanto pela estruturação de uma ideologia interna que legitima as práticas das organizações criminosas. Dessa forma, a partir de elementos doutrinários e normativos serão apresentados os fundamentos que sustentam essa ideologia, os quais, na última instância, reforçam a manutenção e a expansão do poder do crime e evidenciam a forma como essa força ideológica atua em interesses escusos e em oposição ao Estado.

O Fundamento Ideológico e Sua Força Nociva

Art. 7°: É dever de todos os integrantes da facção colaborar e participar dos ‘progressos’ do comando, seja ele qual for, pois os resultados desses trabalhos são integrados em pagamentos de despesas com defensores, advogados, ajuda para trancas, cesta básica, ajuda financeira para os familiares que perderam a vida em prol a nossa causa, transporte para cadeirantes, ou auxílio para doentes com custo de remédio, cirurgia e atendimentos médicos particulares, principalmente na estruturas da luta contra os nossos inimigos, entre várias situações que fortalecem a nossa causa ou seja o crime fortalece o crime, essa é a nossa ideologia.” (PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL – PCC, 2025, grifo nosso).

O crime organizado no Brasil, ao longo das últimas décadas, evoluiu de uma forma nunca antes vista, consolidando-se como uma das principais ameaças à segurança pública e à ordem social vigente no país. Sendo caracterizado por uma estrutura hierárquica altamente organizada, operações transnacionais extremamente complexas, e uma capacidade notável de adaptação às circunstâncias desfavoráveis, o crime organizado brasileiro se distingue por sua sofisticação e pela vasta gama de atividades ilícitas que abrange, desde o tráfico de drogas local até a lavagem de dinheiro e a corrupção generalizada. Essa ideia vai ao encontro do que afirma o procurador de justiça João Bosco Sá Valente:

Nas últimas décadas, as atividades criminosas têm passado por uma série de mudanças, que culminaram em ações cada vez mais organizadas por parte de delinquentes e organizações criminosas. A partir da segunda metade da década de 1970, com o fortalecimento do narcotráfico e o desenvolvimento de grandes mercados consumidores – em especial EUA e Europa Ocidental –, as organizações criminosas aperfeiçoaram seu modus operandi, atualmente com caráter muito mais complexo e transnacional. Assim, os últimos 25 anos presenciaram o fortalecimento do crime organizado no mundo, com ramificações nos mais diversos tipos de atividades ilícitas, do narcotráfico à extorsão e corrupção, passando pela prostituição, exploração sexual de menores (pedofilia), tráfico de pessoas e órgãos, tráfico de armas, pirataria, biopirataria, formação de milícias e lavagem de dinheiro. Além do caráter empresarial, as organizações criminosas têm cooperado entre si e formado verdadeiros conglomerados transnacionais promotores de delitos.” (VALENTE, 2025).

Essa ideia é evidenciada no próprio Estatuto do PCC, atualmente em sua terceira edição. Não se trata apenas de uma organização voltada ao lucro, mas de uma entidade que institucionaliza uma ideologia e emprega a violência e a coerção para fortalecer seus laços e garantir a lealdade de seus membros. Essa estrutura revela a doutrina subjacente à mentalidade do crime, que é enxergada como um meio de sustento coletivo e proteção, consolidando a lógica de que o crime fortalece o crime. Ao examinar mais de perto o artigo 7º do estatuto, citado acima, percebe-se não apenas a normatividade expressa, mas também as ideologias que, de forma implícita, sustentam essas regras.

Assim, é evidente que o PCC não se apresenta como o lado errado da história, mas se posiciona como um defensor dos oprimidos, promovendo uma inversão de valores que o coloca como essencial para a Justiça, a Paz e a Liberdade – direitos que, segundo sua narrativa, são negados pelo Estado e pelo status quo. Dessa forma, o Estado é retratado como o verdadeiro vilão, responsável por todas as chagas que afligem os criminosos. Essa lógica se reflete de maneira expressiva no artigo 16º, onde essa ideia se manifesta de forma ainda mais clara:

O importante de tudo é que ninguém nos deterá nesta luta porque a semente do Comando se espalhou por todos os Sistemas Penitenciários do Estado e conseguimos nos estruturar também do lado de fora, com muitos sacrifícios e muitas perdas irreparáveis, mas nos consolidamos (sic) à (sic) nível estadual e à (sic) médio e longo prazo nos consolidaremos (sic) à (sic) nível nacional. Em coligação com o Comando Vermelho (CV) e PCC iremos revolucionar o país de dentro das prisões e o nosso braço armado será o Terror ‘dos Poderosos’ opressores e tiranos que usam o Anexo de Taubaté e o Bangu I do Rio de Janeiro como instrumento de vingança da sociedade, na fabricação de monstros.” (PCC, 2025, grifo nosso).

Sob a perspectiva do crime organizado, o Estado – representado pelos poderosos e tiranos – é o verdadeiro responsável pela criação dos monstros que ele próprio intenta combater. Sob essa ótica, o sistema carcerário brasileiro, ao invés de reabilitar os detentos, opera como uma máquina de produzir criminosos. Em vez de corrigir comportamentos e ressocializar, ele agrava as condições de marginalização, reforçando as práticas violentas e fortalecendo facções e organizações criminosas, como uma engrenagem que potencializa a marginalização.

Nesse ambiente, em tese, insalubre do sistema prisional, emerge um representante – o PCC – que se organiza como uma resposta direta às injustiças sofridas pelos detentos. Porém, o que começou como uma falsa ideia propagandista de proteção contra a brutalidade estatal e as condições carcerárias, logo evoluiu para algo muito mais complexo e perigoso.

É nesse contexto que se dá o início da decadência, onde a organização se fortalece, usando a massa carcerária como base para atingir seus objetivos ilícitos e nefastos. O PCC, que inicialmente uniu indivíduos desorganizados, conseguiu moldá-los em uma força estruturada, com planejamento, visão de futuro e metas claras. A organização passou a agir não apenas para controlar o sistema prisional, mas também para expandir suas operações para fora das cadeias, consolidando sua posição no tráfico de drogas, armas, extorsão e outras atividades criminosas. Ou seja, ao invés de se limitar à defesa dos detentos como diziam querer, aproveitaram-se da vulnerabilidade da massa carcerária para estruturar um mecanismo eficiente de recrutamento, coesão e expansão do poder criminoso e ideológico.

Art. 9º: Todos os integrantes devem ter a certeza absoluta que querem fazer parte do Comando, pois aquele que usufrui dos benefícios que o Comando conquistou e pedir pra sair pelo fato da sua liberdade estar próxima ou até mesmo aquele que sair para a rua e demonstrar desinteresse por nossa causa, serão avaliados e se constatado que o mesmo agiu de oportunismo o mesmo poderá ser visto como traidor, tendo atitude covarde e o preço da traição é a morte.” (PCC, 2025, grifo nosso).

O custo nocivo dessa realidade não se reflete apenas na ascensão da maior organização criminosa do país, mas também nas declarações de um poderoso aparato ideológico. A falha estrutural do sistema penal e carcerário brasileiro, aliada à ausência de um controle estatal econômico, permitiu que o PCC não apenas expandisse seu domínio territorial e financeiro, mas também construísse uma narrativa própria, capaz de seduzir e cooptar novos membros.

A guerra travada atualmente não se limita mais ao confronto armado ou à disputa por territórios. Ela se estende ao campo ideológico, cultural e econômico, onde o crime organizado se fortalece não apenas pela força das armas, mas pela influência que exerce sobre mentes e comunidades no imenso e heterogêneo território nacional. Esse novo cenário impõe desafios ainda maiores ao Estado, que precisa combater não apenas a violência explícita, mas também a consolidação de uma cultura criminosa que se perpetua e se infiltra nos mais diversos estratos sociais.

Reflexões Sobre o Crescimento do Crime Organizado

Destarte, o principal questionamento a ser colocado na maiêutica, ou seja, no processo de partejar ideias, seria: como um pequeno grupo de criminosos dentro do sistema carcerário conseguiu criar o que viria a ser a maior organização criminosa do país? Esse questionamento socrático nos leva a refletir sobre as falhas do sistema penal brasileiro, que não conseguem causar a diminuição do crime, nem criar o medo do delito e muito menos garantir que o próprio criminoso esteja de fato sendo punido. Isso também evidencia a falha no sistema carcerário que permite que o crime floresça sem qualquer restrição. O delegado da Polícia Federal, Rodrigo Gomes explica:

Nos últimos cinco anos, com inúmeras rebeliões de presos coordenadas simultaneamente e assassinatos de policiais, o crime organizado mostrou de onde surgem os comandos criminosos e terroristas: dos presídios. Comandam, traficam, matam, roubam, fazem ‘leasing’ de armamento pesado, escambo de drogas por armas, criam ‘sites’ criptografados, tanto com o objetivo de obter vantagem econômica ou material indevida como para demonstrar controle e domínio pela difusão do medo, com fechamento de comércio local, eliminação de agentes públicos e seus familiares e facções rivais.” (GOMES, 2006, grifo nosso).

Assim, em pouco tempo o PCC se transformou em uma verdadeira corporação criminosa, doutrinaria e ideológica, capaz de alinhar os interesses de seus componentes com o objetivo de conquistar territórios e principalmente influência – seja econômica, política, ideológica e criminosa. Eles não apenas se protegeram dentro das prisões, mas também criaram uma rede que hoje se estende além das fronteiras do Brasil, operando como uma organização de alcance internacional.

O PCC nasceu, se estruturou, cresceu e enriqueceu ocupando as brechas da lei. Foi ignorado quando surgiu dentro do sistema carcerário, época em que as autoridades públicas evitaram citar a sigla para não referendar sua existência. A estrutura em rede se fortaleceu no momento em que os órgãos de investigação se concentravam em operações pontuais de apreensão de drogas, sem olhar o todo. E se consolidou no mercado internacional de drogas aproveitando-se dos limites de competência territorial das autoridades brasileiras.” (HUPSEL FILHO; BRITES, 2024).


LIVRO RECOMENDADO:

Mídia: Propaganda Política e Manipulação

• Noam Chomsky (Autor)
• Kindle ou Capa comum
• Edição Português


Constata-se portanto, que o PCC exemplifica como o crime organizado pode surgir em ambientes de abandono e opressão, tornando-se um símbolo da falência do sistema prisional e das políticas públicas voltadas para a ressocialização. Onde há Black Spots, isto é, vazios onde o Estado não consegue alcançar, há a projeção da mão do crime organizado que subverte e aproveita para crescer. De acordo com o coronel Alessandro Visacro em seu estudo, Insurgência criminal e a renegociação do contrato social:

[…] No interior de black spots, todos os elementos essenciais que dão forma ao Estado vestfaliano (quais sejam: povo, território, soberania e finalidade) encontram-se profundamente subvertidos por grupos anárquicos que usurpam, essencialmente por meio da violência armada, prerrogativas até então exclusivas do poder público.” (VISACRO, 2021, p. 74).

Em nosso Trabalho de Conclusão de Curso, falamos a respeito:

Assim, nota-se que há uma inversão da ordem vigente nesses locais que começam a ter líderes locais provenientes do crime organizado como seu Estado, é o chamado Poder Paralelo. O conceito de ‘Poder Paralelo’ refere-se à emergência de líderes e grupos que, ao usurparem funções estatais, criam uma nova ordem social que desafia a legitimidade do Estado. Assim, há uma inversão da ordem e o Estado começa a perder sua eficiência e posto de autoridade legitimada, passando para o crime organizado – o novo detentor do poder.” (MISSUCA; CARVALHO, p. 49).

Dessa forma, o crime organizado, com seus tentáculos cada vez mais amplos, começa a assumir características semelhantes às de insurgências, competindo diretamente com o Estado e avançando sobre suas funções sem encontrar resistência proporcional. Utilizando uma ideologia como ferramenta de dominação e recrutamento, essas organizações fortalecem sua influência sobre comunidades inteiras, ampliando seu alcance para além do crime comum. Os pancadões são um exemplo emblemático desse aspecto, funcionando como vetores de propagação dessa ideologia criminosa. Mais do que simples eventos culturais ou pontos de lazer, esses espaços funcionam como centros de influência e cooptação, favorecendo a normalização da criminalidade e consolidando-se como instrumentos de domínio territorial. Esse aspecto será aprofundado no decorrer deste artigo.

Cultura e Desafios

O crime organizado não se sustenta apenas pela violência e pela coerção, mas também por meio da construção de uma cultura própria, capaz de moldar a mentalidade da sociedade e redefinir valores dentro das comunidades onde opera.

Essa cultura se estrutura através de símbolos, princípios, rituais e narrativas que promovem uma inversão moral, ética e social, transformando o criminoso em herói e o operador de segurança pública em vilão. Conforme descrito no livro da Bíblia, a história se repete: soltaram Barrabás e crucificaram Jesus.

Dentro dessa lógica, o traficante e o ladrão são elevados ao status de arquétipos heroicos, figuras que, no imaginário popular, representam resistência, astúcia e poder. O traficante assume o papel de protetor da comunidade, um Robin Hood moderno que supre as necessidades do povo onde o Estado falha, provendo empregos ilícitos e ilegais, assistencialismo com propósito escuso e um senso de pertencimento que muitas vezes as pessoas das classes mais empobrecidas não encontram em outro lugar. São os presentes para as crianças, a ajuda aos idosos na comunidade ou as construções estruturais para as favelas. Já o ladrão e o estelionatário (estes últimos conhecidos recentemente como “Raul”), principalmente aquele que ostenta os frutos de seus crimes, é visto como uma figura de triunfo e superação, um indivíduo que “venceu o sistema” e conseguiu, por meio da criminalidade, atingir o que muitos acreditam ser o sucesso: dinheiro, status e influência.

Essa glorificação da criminalidade se reflete nos chamados crimes de ostentação, onde o objetivo não é apenas o lucro, mas uma exaltação do poder adquirido ilegalmente. Roubo de veículos de luxo, furtos de lojas de grife, assaltos a condomínios de alto padrão e golpes digitais, tão comuns nos dias de hoje, são apenas alguns exemplos de práticas que não apenas geram riqueza ilegal, mas reafirmam a narrativa de que o crime é um caminho legítimo para ascensão social e o fim da precariedade vivida anteriormente.

Paralelamente, a lavagem de dinheiro fortalece essa cultura ao infiltrar recursos ilícitos em setores aparentemente legítimos da economia. As adegas clandestinas, que se tornaram tão comuns ao ponto de haver uma a cada esquina em diversas periferias, são um exemplo clássico desse público. Esses estabelecimentos servem não apenas como fachada para a legalização do dinheiro do tráfico e dos roubos, mas também como espaços de socialização onde a cultura do crime é disseminada. O ambiente é regado à ostentação, com bebidas, drogas e músicas que exaltam a criminalidade e a presença de figuras do submundo que se tornam referências para os jovens locais.

Além disso, os inúmeros problemas e crimes associados aos pancadões, incluindo a lavagem de dinheiro pelo crime organizado, deveriam estar no radar do Ministério Público. Há um poder paralelo em ascensão, com a criminalidade organizada tomando conta e cometendo crimes de todos os tipos de forma recorrente.” (MISSUCA; CARVALHO, p. 72).

Esse processo cultural cria um cenário em que a autoridade policial passa a ser vista como inimiga. A repressão ao crime, necessária para a ordem pública, é percebida como perseguição injusta contra indivíduos retratados como vítimas de um sistema opressor. Enquanto isso, o criminoso é exaltado como alguém que desafia o status quo, enfrentando um Estado que, no discurso dessas narrativas, seria o verdadeiro vilão.

Assim, o grande desafio não é apenas a repressão direta ao crime organizado, mas a desconstrução dessa mentalidade. Enquanto o crime continua sendo romantizado e o criminoso visto como um herói, o enfrentamento das facções será cada vez mais complexo. A disputa deixou de ser apenas territorial e econômica; agora, ela é também cultural e ideológica e há extrema necessidade de unir esforços com outros órgãos públicos para vencer esse problema. Na próxima seção, será explicado como essa inversão de valores impacta na formação de novos crimes e quais estratégias podem ser adotadas para neutralizar essa narrativa dentro do contexto da segurança pública nacional.

Pancadões Como Instrumentos de Propagação da Ideologia Criminosa

Conforme exposto anteriormente, a base do crime organizado no Brasil é estruturada tanto por dispositivos jurídicos quanto por uma ideologia interna que legitima suas práticas ilegais e antiéticas, como os crimes cometidos e suas ações criminosas. O uso de propaganda, mídia e manipulação por parte dessas organizações configura-se como uma guerra híbrida contra o Estado para conquistar o poder. No livro Mídia: Propaganda, Política e Manipulação, Noam Chomsky disserta um pouco sobre a questão da manipulação da mídia e da política contra o rebanho desorientado, e sobre isso podemos encontrar uma certa explicação para auxiliar o entendimento sobre a propagação de uma ideologia (CHOMSKY, 2015).

Ele explica que os poderosos utilizam várias maneiras para controlar a opinião e atitudes das pessoas, e o crime se utiliza dessas mesmas estratégias. Não é mais necessário utilizar violência, agora os recursos da propaganda se mostram mais eficazes, conhecido posteriormente por Fórmula do Vale Mohawk. Segundo o livro, o controle é exercido e o domínio estabelecido a partir da correção de ideias vazias, que incitam o questionamento dos atos decididos e a representação distorcida da realidade (CHOMSKY, 2015).

Outra coisa que Chomsky (2015) evidencia, é a construção da opinião para fazer com que as pessoas se envolvam e apoiem certas atitudes do Estado. Ao amedrontá-las, como por exemplo no que se refere à terrorismo, armamentos nucleares e outros perigos constantes, cria-se, com a propaganda, sentimentos coletivos de que a ideia da maioria da sociedade é essa, e que qualquer coisa fora dela é esquisita ou excêntrica. Esse é o mesmo artificio usado pelo crime organizado, que utiliza-se de construções de opinião contra o Estado opressor, contra a Polícia violenta e contra a Sociedade injusta, essencialmente por meio dos diversos canais midiáticos, atualmente centrados na cultura musical e nas redes sociais, que acabam por inocular na mente das pessoas, especialmente dos mais jovens, uma mentira disfarçada de verdade.

É nesse contexto que os “pancadões” caracterizam-se como importantes instrumentos de implementação dessa mesma ideologia, atuando como extensões simbólicas e financeiras do crime organizado. Os pancadões emergem como manifestações culturais que, longe de serem apenas lazer e expressão musical, funcionam como verdadeiros veículos de disseminação da ideologia criminosa. Esses eventos – que acontecem em áreas marcadas pela fragilidade da presença estatal e pela exclusão social – transformam-se em arenas de propaganda para facções criminosas, contribuindo tanto para o fortalecimento do submundo quanto para a legitimação dos crimes perante determinados segmentos da população.

Propaganda, Cultura e Insurgência Criminal

Sob uma perspectiva teórica, os pancadões podem ser analisados à luz da Teoria do Custo-Benefício do Crime (BECKER, 1968), que sustenta que os indivíduos avaliam de forma racional os ganhos e os riscos associados à prática criminosa. Nesses ambientes, a propaganda difusa – especialmente por meio das letras de funk e das narrativas do “Proibidão” – atua para minimizar a percepção dos riscos, enfatizando os ganhos imediatos e transformando o ato ilícito em uma alternativa atrativa para a ascensão social. Ao exaltar o traficante ou ladrão como herói – frequentemente associado a arquétipos históricos de guerreiros e figuras míticas – enquanto posiciona o policial como vilão, cria-se uma cultura invertida que subverte os valores tradicionais.

Embora possam ser vistos como uma forma de expressão cultural e social, os pancadões, em sua essência, apresentam mais aspectos negativos do que positivos. Eles trazem consigo insalubridade, desordem e intranquilidade pública, devido às consequências que acarretam.” (MISSUCA; CARVALHO, p. 32).

Além disso, a facilidade de estabelecer tabacarias, adegas e, principalmente, dos próprios pancadões nas comunidades, gera um ambiente em que os benefícios do crime são percebidos como altíssimos, enquanto os custos aparentes se mantêm baixos. Esse cenário, marcado pelo comércio ilegal, consumo de drogas e violência, também pode ser analisado sob a perspectiva da Teoria das Janelas Quebradas (KELLING; WILSON, 1982). Em locais onde os pequenos delitos são tolerados, a desordem se instala, permitindo que uma estética criminosa se reproduza, consolidando a ideia de que o Estado é incapaz de manter o controle, enquanto o crime se apresenta como uma alternativa eficaz de justiça – quase como um Estado paralelo.

Pancadões e a Economia do Crime

Além de seu papel ideológico e cultural, os pancadões se configuram como verdadeiros tentáculos financeiros do crime organizado. Esses eventos funcionam como fachadas estratégicas para uma série de atividades ilícitas, que vão desde o tráfico de drogas e a extorsão até a lavagem de dinheiro.

Em primeiro lugar, o ambiente dos pancadões propicia a comercialização aberta de entorpecentes. A venda de drogas nesses espaços não só gera receita imediata, mas também contribui para a manutenção e expansão da estrutura financeira das facções, permitindo que os recursos sejam continuamente reinvestidos em outras operações criminosas. Com esse dinheiro para investir, a cultura do crime é constantemente disseminada nesses bailes e nas redes sociais, que com recursos praticamente ilimitados competem com vantagem contra o Estado e seus agentes.

Ou seja, os estabelecimentos associados a esses eventos – como adegas, tabacarias, ambulantes e bares frequentemente ilegais – são frequentemente utilizados como pontos de apoio para lavagem de dinheiro. Esses locais servem para disfarçar a origem ilícita dos recursos, integrando-os à economia legal e dificultando sua rastreabilidade por parte das autoridades. Dessa forma, os lucros obtidos com o tráfico e outras atividades ilícitas são limpos e reinseridos no circuito econômico, fortalecendo o poder financeiro e a influência das facções.


LIVRO RECOMENDADO:

Sistema de Gerenciamento de Incidentes e Crises

• Wanderley Mascarenhas de Souza, Márcio Santiago Higashi Couto, Valmor Saraiva Racorti e Paulo Augusto Aguilar (Autores)
• Em português
• Capa comum


Os pancadões também funcionam como instrumentos de opressão e disseminação da violência em territórios dominados pelas organizações criminosas. Nas comunidades onde o Estado é percebido como ausente ou ineficiente, a imposição dessa violência – que atinge comerciantes e moradores – torna-se um mecanismo de poder e controle. Medidas punitivas simbólicas, como avisos do tipo “lixo no chão, tiro na mão”, exemplificam essa estratégia, consolidando o domínio da facção sobre o território. Esse mecanismo ilustra a integração entre os aspectos culturais e econômicos do crime organizado, em que a ostentação e a propaganda ideológica se fundem com práticas insurgentes semelhantes às adotadas por grupos terroristas em outros contextos internacionais.

Destarte, observamos que os pancadões geram problemas não apenas durante o baile, mas também antes e depois, impactando a vida de milhares de pessoas que convivem, moram perto ou são vítimas dessas ocorrências. Outro ponto a se destacar é que as dinâmicas do crime se assemelham à chamada insurgência criminal, diferindo do terrorismo clássico, em que não há ambição de controle estatal, mas cujo processo leva à falência do Estado e, consequentemente, à criação de um Estado paralelo.” (MISSUCA; CARVALHO, p. 34).

Portanto, ao funcionar como ponto de convergência entre atividades ilícitas e estratégias de lavagem de dinheiro, os pancadões são fundamentais para a infraestrutura financeira e ideológica do crime organizado. Essa integração entre cultura, ideologia e economia ilícita não apenas consolida a perenidade das facções, mas também impõe desafios à repressão estatal, exigindo uma resposta eficiente e integrada que contemple tanto o combate direto ao tráfico quanto a interrupção dos fluxos financeiros ilegais.

A Influência Midiática e a Construção do Mito Criminoso

Os pancadões funcionam como plataformas de propaganda que moldam a percepção pública sobre o crime organizado. Por meio da mídia alternativa, redes sociais e das manifestações artísticas próprias – especialmente o funk – as facções constroem narrativas que exaltam a figura do criminoso e deslegitimam as instituições estatais. Por exemplo, canções como Apologia do MC Daleste, já citada anteriormente, apresentam uma linguagem que inverte os papéis tradicionais: o ladrão e traficante são simbolizados como heróis, enquanto o policial é demonizado.

A construção midiática do mito criminoso também se manifesta na forma como determinados eventos são enquadrados e divulgados. Pancadões, por exemplo, são retratados não apenas como festas ou manifestações culturais, mas como pontos de resistência e símbolos de um poder alternativo. Frequentemente, há notícias de manifestações agressivas contra os policiais que tentam resgatar a ordem e tranquilidade pública nessas comunidades que são fechadas nesses eventos. Essa representação confere às facções uma aura de legitimidade e fortalece a narrativa de que o crime organizado oferece uma alternativa viável à ausência do Estado, promovendo uma imagem de justiça paralela que se contrapõe à ordem oficial.

Essa inversão de valores tem forte impacto sobre a juventude, que passa a ver no crime não apenas uma alternativa, mas uma forma de resistência contra um Estado opressor e injusto. Existe uma percepção seletiva sobre os acontecimentos, onde se é levado a crer que os policiais são maus, e aqueles que os enfrentam em um confronto são os heróis em um encontro épico ao estilo de Homero.

A influência midiática, aliada à propaganda e à política, torna o ambiente dos pancadões um espaço de insurgência cultural, onde uma ideologia criminosa é continuamente reforçada e disseminada, contribuindo para a perpetuação do ciclo de violência e fortalecimento cultural criminal.

Os pancadões se configuram, portanto, como instrumentos multifacetados de implementação da ideologia criminosa, atuando tanto no campo cultural quanto no financeiro. Essa realidade demonstra que o crime organizado se fortalece não apenas pela violência física, mas pela capacidade de influenciar, recrutar e normalizar a criminalidade no país.

Considerações Finais

A análise desenvolvida neste artigo evidencia que a aparência dos pancadões transcende a mera expressão cultural, categorizando-se como vetor estratégico de implementação da ideologia e da infraestrutura financeira do crime organizado. Pode-se perceber que a influência do crime organizado é maior do que apenas em atos ilícitos, utilizando-se da cultura, manipulação, mídia e política para transmitir, como uma doença epidêmica, suas ideias e ideais para conquistar poder, influência e territórios – exatamente como grupos terroristas, guerrilhas e cartéis.

Ou seja, nesse contexto de fragilidade institucional e ausência estatal eficaz, especialmente em áreas marginalizadas e nos chamados Black Spots, os pancadões consolidaram-se como espaços de convergência onde a lógica do narcotráfico e da insurgência criminosa se materializa de forma multifacetada. Do ponto de vista técnico, a aplicação da Teoria do Custo-Benefício do Crime (BECKER, 1968) e da Teoria das Janelas Quebradas (KELLING; WILSON, 1982) permitem compreender como a tolerância aos pequenos delitos e a manipulação da percepção de risco criam um ambiente propício para a expansão do crime organizado.

Esses eventos funcionam, assim, como pontos de apoio para a circulação de capitais provenientes do tráfico de drogas, da extorsão e de outras atividades ilícitas, integrando mecanismos de lavagem de dinheiro que, por sua vez, reforçam a capacidade operacional das facções. Adicionalmente, a influência midiática e a construção do mito crime – articuladas por meio de narrativas propagandísticas difundidas em redes sociais e em produções musicais – trazem normalização e até glamourização para a criminalidade. Essa abordagem, que inverte os arquétipos tradicionais ao consagrar o crime como herói e o agente do Estado como vilão, não só amplia o apelo ao crime organizado entre os jovens das periferias, como também reforça a resistência contra as políticas de segurança pública.

Dessa forma, o problema do crime organizado se desdobra em uma guerra híbrida, onde o conflito se estende ao campo ideológico, cultural e econômico, exigindo uma resposta que ultrapasse as estratégias repressivas tradicionais e a forma convencional de se combater o crime. Compreender tudo isso é o ponto de inflexão para que se comece a pensar em possíveis soluções práticas e mudanças de paradigmas tanto na área da segurança pública quanto na política e em outras esferas estatais no Brasil.

O atual cenário brasileiro – marcado pela expansão crescente do narcotráfico, pelo fortalecimento de facções transnacionais e pela crise de confiança nas instituições – demonstra que esse grave problema não se restringe apenas à segurança pública, mas permeia todos os órgãos do Estado. A suposta ineficiência dos sistemas penais e carcerários, a falta de políticas urbanas integradas e a ausência de uma atuação coordenada entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ampliam as brechas exploradas pelo crime organizado. Tal situação exige uma resposta sistêmica e multidisciplinar, que envolve desde a modernização dos mecanismos de inteligência e monitoramento financeiro até a implementação de políticas públicas de inclusão social que combatem as raízes da marginalização.

Portanto, para reverter o ciclo em que o crime fortalece o crime, é imprescindível adotar uma abordagem abrangente, diversificada e eficaz que abrange:

Reforço estatal: Cooperação eficaz entre os órgãos de segurança, o Ministério Público e o Poder Judiciário, de modo a criar estratégias interligadas que não se limitem a operações isoladas, mas que criem empecilhos para as redes de financiamento e propagandas ideológicas das facções; forças tarefas multidimensionais para o combate ao crime organizado.

Modernização do sistema carcerário: Reformas que priorizam a ressocialização e a reabilitação dos detentos, eliminando os problemas que favorecem a emergência de um poder paralelo e a insurgência criminosa; impedir a influência das facções em presídios; sistemas rigorosos de controle e vigilância.

Políticas urbanas e de inclusão social: Investimentos em infraestrutura, educação e cultura nas periferias, a fim de oferecer alternativas legítimas de ascensão social e reduzir o apelo do crime organizado como única saída para os jovens.

Combate à manipulação midiática: Desenvolvimento de contra-narrativas fundamentadas em evidências, que desconstruam o mito do “crime heroico” e restaurem os valores da cidadania e do estado de direito, inspirando uma cultura de justiça e transparência.

Leis e política: Criação de leis específicas para combate ao crime organizado; reforma do código penal e processual penal com base no custo-benefício do crime; impedir que o crime seja propagado como algo benéfico.

Em suma, o desafio contemporâneo não é apenas conter a violência ou desmantelar as operações logísticas das facções criminosas. Trata-se de enfrentar um problema sistêmico que envolve a própria estrutura social e cultural do país. A conjugação de esforços em diversas frentes – segurança, justiça, políticas urbanas e de inclusão – se apresenta como a única via viável para desarticular a propagação da ideologia criminosa e restaurar a confiança da sociedade no Estado. Somente por meio dessa abordagem integrada será possível romper o ciclo de legitimação do crime e garantir um futuro mais seguro e justo para todos.

Referências

BECKER, Gary Stanley. Crime and punishment: an economic approach. The Journal of Political Economy, Chicago, v. 76, n. 2, p. 169-217, 1968.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A desordem e a teoria das janelas quebradas. Jusbrasil – Artigos, 2012. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-desordem-e-a-teoria-das-janelas-quebradas/121937294.

CIDADE ALERTA/DO R7. PCC usa adegas como fachada para financiar pancadões na zona norte de São Paulo: Bailes eram realizados na comunidade Elisa Maria. 20 jun. 2024. Vídeo, 11 min 11 seg. Disponível em: https://record.r7.com/cidade-alerta/video/pcc-usa-adegas-como-fachada-para-financiar-pancadoes-na-zona-norte-de-sao-paulo-20062024/.

CHOMSKY, Noam. Mídia: propaganda política e manipulação. WWF Martins Fontes, 2015.

CRIME E PODER: PCC movimenta R$ 1 bilhão e tem ‘batizados’ fora do país. UOL Cotidiano, 09 jan. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/01/09/pcc-faccao-movimenta-mais-de-r-1-bilhao-e-e-comparada-as-mafias.htm.

GOMES, Rodrigo Carneiro. Inteligência Policial: para combater crime organizado, Estado tem de compartilhar dados. In: Consultor Jurídico – Áreas – Criminal [site], 16 jul. 2006. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2006-jul-16/combater_crime_estado_compartilhar_dados/.

HUPSEL FILHO, Valmar; BRITES, Ramiro. Como a internacionalização do PCC aumentou o poder de fogo e a ousadia do grupo. Veja – Seção Brasil, 15 nov. 2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/como-a-internacionalizacao-do-pcc-aumentou-o-poder-de-fogo-e-a-ousadia-do-grupo.

KELLING, George L.; WILSON, James Q. Broken windows: the police and neighbourhood safety. 1982. Disponível em: https://media4.manhattan-institute.org/pdf/_atlantic_monthly-broken_windows.pdf.

MISSUCA, Gabriel do Couto; CARVALHO, Kauê Basilio. Viabilidade de recursos humanos e de materiais para a atuação da PMESP em eventos de aglomerações de pessoas – “Pancadão” e a possibilidade da participação das subprefeituras municipais na identificação e fiscalização dos locais de tais ocorrências. Monografia (Bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública) – Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB), São Paulo, 2024.

PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL – FACÇÃO PCC 1533. Estatuto do Primeiro Comando da Capital — Facção PCC 1533. São Paulo, 2025. Disponível em: https://faccaopcc1533primeirocomandodacapital.org/regimentos/estatuto_do_primeiro_comando_da_capital_faccao_pcc_1533/.

RIBEIRO, Alexandre Antunes. O front interno: as desordens públicas como armas de guerra [recurso eletrônico]. São Paulo: SGDZ Books, 2024.

SÃO PAULO (Estado). Polícia Militar do Estado de São Paulo. Nota de Instrução n. PM3 – 001/02/20: atuação policial-militar em eventos de perturbação de sossego. São Paulo: PMESP, 2020.

SÃO PAULO (Estado). Polícia Militar do Estado de São Paulo. Ordem de Operações n. PM3 – 001/03/13: operação policial militar de restabelecimento da ordem pública, desinterdição de vias e salubridade social (Operação “Baile Funk”, “Fluxo” e “Pancadão”). São Paulo: PMESP, 2013.

VALENTE, João Bosco Sá. Crime organizado: uma abordagem a partir do seu surgimento no mundo e no Brasil. In: DOUTRINA. Ministério Público do Estado do Amazonas. Procuradoria Geral da Justiça. Coordenadoria do Centro de Apoio Operacional de Combate ao Crime Organizado [site]. c2025. Disponível em: https://mpam.mp.br/caocrimo-doutrina/418-crime-organizado-uma-abordagem-a-partir-do-seu-surgimento-no-mundo-e-no-brasil.

VISACRO, Alessandro. A guerra na era da informação. São Paulo: Ed. Contexto, 2018.

VISACRO, Alessandro. Insurgência criminal e a renegociação do contrato social. In: GRECO, Rogério; ARAÚJO, Leonardo Novo Oliveira Andrade de (org.). Sistema jurídico policial: a verdadeira guerra travada por seus operadores. Curitiba: Juruá Editora, 2021.

Compartilhe:

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

____________________________________________________________________________________________________________
____________________________________
________________________________________________________________________

Veja também