A brutal morte do Cabo Júlio César da Silva Costa, em serviço, expõe um debate seletivo sobre Segurança Pública; a obsessão por câmeras ignora problemas estruturais e falhas do Estado.
Na noite de 23 de maio de 2025, o Cabo PM Júlio César da Silva Costa, da Força Tática do 21º BPM/I, foi brutalmente assassinado com um tiro na cabeça enquanto simplesmente transitava em serviço por uma rodovia na cidade de Cubatão. Não estava em abordagem, não estava em incursão, não representava qualquer tipo de ofensiva além da sua própria existência, da sua farda e do seu compromisso com a sociedade. O Cabo Júlio era pai de um menino de 12 anos, que, como tantos outros filhos de policiais, agora carrega a dor da ausência irreparável e o peso de um luto que, mais uma vez, a sociedade se recusa a enxergar.
E, mais uma vez, assistimos à velha e cansada escolha de onde colocar o foco. Mais uma vez, a grande discussão se volta para câmeras. Sempre as câmeras. O fetiche da vigilância sobre quem vigia. E, curiosamente, vigilância seletiva, direcionada, quase exclusiva. Porque, estranhamente, essa exigência parece recair apenas sobre uma polícia: a Polícia Militar. A mesma Polícia Militar que está no terreno, no combate direto, na linha de frente. A mesma Polícia Militar que, diariamente, patrulha onde o Estado, em todas as suas outras dimensões, simplesmente não existe.
Enquanto isso, seguimos sem discutir ou fingimos não discutir aquilo que, de fato, deveria estar na mesa. Seguimos sem falar sobre urbanização dos territórios, sobre a dignidade das habitações, sobre a ausência de infraestrutura, sobre a falta de mobilidade, de acesso à saúde, à educação e às oportunidades. Seguimos ignorando a presença efetiva do Estado antes que o crime imponha suas próprias regras, seus próprios códigos, suas próprias leis e a sua própria soberania. Soberania esta que não é simbólica, não é figurativa. É real, concreta, brutal, e se materializa no controle de territórios, na exploração econômica, no exercício do medo e na imposição de uma ordem paralela.
O fenômeno não é novo e tampouco desconhecido. A criminologia contemporânea o descreve com clareza por meio da Teoria do Controle Competitivo, que explica como, na ausência do Estado, surgem estruturas criminais capazes de exercer funções típicas de governo. Onde o Estado não chega, o crime se instala e assume o controle social, impondo normas, julgando, punindo, protegendo e explorando. O que matou o Cabo Júlio não foi apenas um disparo de arma de fogo. Foi um sistema. Foi o produto de um ecossistema criminoso que prospera sobre as ruínas da omissão, da negligência e da falsa narrativa de que segurança pública se resume ao enfrentamento policial.
E é preciso dizer, sem rodeios: Força Tática, Choque, BAEP, GATE, ROTA, COE… são resposta. São emergência. São contenção. Não são e jamais serão política pública de segurança. Elas existem porque a política pública falhou. Porque o Estado, naquilo que deveria ser sua essência – prover dignidade, garantir direitos, gerar oportunidades e ocupar território com serviços não chegou. E pagar esse preço com o sangue de homens como o Cabo Júlio virou rotina. Virou paisagem. Virou dado estatístico.
LIVRO RECOMENDADO:
Sistema de Gerenciamento de Incidentes e Crises
• Wanderley Mascarenhas de Souza, Márcio Santiago Higashi Couto, Valmor Saraiva Racorti e Paulo Augusto Aguilar (Autores)
• Em português
• Capa comum
Enquanto isso, seguimos nos confortando na falsa sensação de que câmeras no uniforme são a solução. E, veja bem, não se discute aqui a importância da transparência, do controle e do accountability das instituições públicas. Isso é legítimo, isso é necessário. A questão é o recorte, a seletividade, o constrangimento institucional direcionado a uma única força. Porque, até onde sabemos, não se discute câmeras em secretarias de governo, em gabinetes, em fiscalizações de contratos públicos, em câmaras legislativas ou nos altos escalões da burocracia estatal. Também não se discute câmeras em outras polícias. Nem naquelas que operam sob lógica investigativa, nem nas que atuam no contexto judiciário, nem nas que exercem funções administrativas de fiscalização. A obsessão é exclusivamente sobre a Polícia Militar.
Queremos câmeras? Perfeito. Então que sejam instaladas também nas rotas do tráfico, nos portos clandestinos, nas fronteiras invisíveis dominadas pelo contrabando, nos lixões clandestinos que financiam organizações criminosas, nas áreas de degradação ambiental que sustentam estruturas ilícitas. Que sejam colocadas nos corredores da corrupção, onde se desviam recursos que deveriam ir para escolas, hospitais, creches e saneamento básico. Porque não é só na farda que o fracasso do Estado deveria ser filmado.
O debate público insiste em ignorar uma verdade inconveniente: segurança pública não é, e nunca será, um problema exclusivo da polícia. Segurança pública é, antes de tudo, uma questão de justiça social, de urbanismo, de desenvolvimento econômico, de saúde, de educação, de infraestrutura e de dignidade. Reduzir a segurança pública ao patrulhamento, à operação e à ostensividade é não apenas um erro é uma escolha que condena o futuro.
É cômodo, para muitos, depositar nos ombros dos policiais o peso do fracasso coletivo. É confortável fingir que a violência é culpa de quem patrulha, e não de quem, há décadas, negligencia políticas públicas integradas e sustentáveis. Mas a verdade é dura e inegociável: a segurança pública é dever do Estado, mas é responsabilidade de toda a sociedade. E enquanto fingirmos que ela se resume à patrulha, ao colete, à operação e à câmera no peito dos policiais, seguiremos fracassando. E, pior, seguiremos pagando esse preço em sangue. O sangue dos policiais. O sangue dos civis. O sangue dos invisíveis, dos dois lados da trincheira.
Que a morte do Cabo Júlio César da Silva Costa, assim como a de tantos outros, não seja apenas mais uma linha em um relatório. Que ela seja um grito. Um alerta. Um soco na consciência de uma sociedade que finge não saber. Porque enquanto não entendermos que segurança pública não se faz apenas com armas, nem apenas com discursos fáceis, continuaremos no ciclo eterno de dor, luto e tragédia.
Até quando vamos fingir que não sabemos disso?
Excelente reflexão. Parabéns, Comandante!
Como sempre, Cel Racorti é a nossa referência intelectual no combate às narrativas. Que o sr continue nos defendendo dessa moderna Santa Inquisição midiática, onde a verdade é opcional, mas o linchamento é garantido.
Boa noite CMT
Parabéns pela dissertação, onde também representa um desabafo de muitos de nós (POLICIAIS MILITARES, pessoas de bem, pais de famílias, pais de policiais e filhos de muitas Marias).
Penso ainda senhor, o porque que nossos governantes e quem mais de direito antes de aprovarem o uso de câmeras em nós POLICIAIS MILITARES, porque não pensaram e aprovaram, tecnologias e equipamentos de segurança individual e coletiva, como por exemplo VIATURAS BLINDADAS.
Será que muitos CB Júlio César não teriam sido salvos?
Estou caminhando para minha inatividade, a poucos meses, sonho e oro a DEUS por uma POLÍCIA MILITAR com muitos mais HOMENS/COMANDANTES com o mesmo pensamento que o senhor tem, pois terei a CERTEZA que meu filho PRIMOGÊNITO (também policial) terá um tratamento, valorização, proteção e condições de trabalho bem melhor e mais digna.
Que Deus continue o abençoando e lhe CAPACITANDO cada vez mais senhor.
De um HOMEM velho em uma profissão onde muitos homens morrem jovens.
SARGENTO ELEUTÉRIO.
Poucos tem a coragem de expor essa nossa realidade.
É hora de acorda!
Impecável e cirúrgico o seu texto Comandante!