O alerta de Kennan sobre a Ucrânia

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George Kennan em Nova York (Everett Collection).

Por Frank Costigliola*

George Kennan (Everett Collection).

Muitos referem-se ao conflito atual como “a guerra de Putin”, mas para George Kennan, qualquer líder russo atuaria contra a separação da Ucrânia; e, se estivesse vivo, Kennan certamente notaria o perigo de encurralar os russos.


George Kennan, o notável diplomata dos Estados Unidos e observador perspicaz das relações internacionais, é famoso por prever o colapso da União Soviética. Menos conhecido é seu aviso em 1948 de que nenhum governo russo jamais aceitaria a independência ucraniana. Prevendo uma luta sem saída entre Moscou e Kiev, Kennan fez sugestões detalhadas na época sobre como Washington deveria lidar com um conflito que colocava uma Ucrânia independente contra a Rússia. Ele voltou a esse assunto meio século depois. Kennan, então com 90 anos, alertou que a expansão da OTAN para o leste condenaria a democracia na Rússia e desencadearia outra Guerra Fria.

Kennan provavelmente conhecia a Rússia mais intimamente do que qualquer um que já serviu no governo dos Estados Unidos. Mesmo antes de chegar a Moscou em 1933 como um assessor de 29 anos de idade do primeiro embaixador dos EUA na União Soviética, ele já dominava o russo e podia se passar por nativo. Na Rússia, Kennan mergulhou em jornais, documentos oficiais, literatura, rádio, teatro e cinema. Ele emagreceu festejando noite adentro com artistas, intelectuais e funcionários subalternos russos. Vestido como russo, Kennan ouvia os moscovitas no bonde ou no teatro. Ele caminhou ou voou pelo país para visitar joias da arquitetura russa antiga. Seu desdém pela ditadura de Joseph Stalin, particularmente após o início dos sangrentos expurgos de 1935-38, foi igualado apenas por seu desejo de se aproximar do povo russo e sua cultura. Em 1946, depois de ditar seu famoso longo telegrama ao Departamento de Estado alertando sobre a ameaça soviética, Kennan foi trazido de volta a Washington. No ano seguinte, ele ganhou atenção nacional por seu artigo na Foreign Affairs pedindo a contenção da expansão soviética.

Kennan era único. Quando o subsecretário de Estado, Dean Acheson, disse a um colega que o talentoso diplomata estava escalado para chefiar a recém-formada Equipe de Planejamento de Políticas, o colega respondeu que “um homem como Kennan seria excelente para esse trabalho”. Acheson retrucou: “Um homem como Kennan? Não há ninguém como Kennan. Operando em um escritório ao lado do secretário de estado, Kennan ajudou a elaborar o Plano Marshall e outras iniciativas importantes de meados do século.

A estrela de Kennan diminuiria depois de 1949, quando ele se opôs à crescente militarização da política externa dos Estados Unidos, mas ainda era venerado como especialista russo. Seu conselho foi procurado pelo governo Truman quando temia provocar a entrada da Rússia na Guerra da Coréia, pelo governo Eisenhower após a morte de Stalin e pelo governo Kennedy durante a crise de Berlim de 1961. Apesar de sua oposição televisionada à Guerra do Vietnã e seus protestos contra a corrida armamentista nuclear, Kennan foi consultado por funcionários do Departamento de Estado e da CIA até a década de 1990. Em 2003, ele deu uma entrevista coletiva para protestar contra a invasão do Iraque. Um elitista cego por feios preconceitos que absorveu no início do século XX, Kennan, no entanto, permaneceu um analista de política externa de visão clara até sua morte em 2005.

À luz dessa experiência, vale a pena examinar tanto o ceticismo de Kennan sobre a independência ucraniana quanto sua sugestão de como Washington deveria responder a um ataque russo a uma Ucrânia independente.

Um cético sobre a Ucrânia

Em um documento de política intitulado “U.S. Objectives with Respect to Russia” (“Objetivos dos EUA em relação à Rússia”, em tradução livre) concluído em agosto de 1948, Kennan expôs os objetivos finais dos Estados Unidos caso os russos invadissem a Ucrânia. Ele percebeu que os ucranianos “se ressentiam da dominação russa; e suas organizações nacionalistas têm sido ativas e expressivas no exterior”. Seria, portanto, “fácil chegar à conclusão” de que a Ucrânia deveria ser independente. Ele afirmou que os EUA não deveriam, entretanto, encorajar essa separação.

A avaliação de Kennan subestimou grosseiramente a vontade de autodeterminação dos ucranianos. No entanto, dois problemas identificados por ele há três quartos de século persistem, particularmente nas mentes dos líderes russos. Kennan duvidava que russos e ucranianos pudessem ser facilmente distinguidos em termos étnicos. Ele escreveu em um memorando do Departamento de Estado que “não há uma linha divisória clara entre a Rússia e a Ucrânia, e seria impossível estabelecer uma”. Em segundo lugar, as economias russa e ucraniana estavam interligadas. Estabelecer uma Ucrânia independente “seria tão artificial e destrutivo quanto uma tentativa de separar o Cinturão do Milho [1], incluindo a área industrial dos Grandes Lagos, da economia dos Estados Unidos” (vide Figura 1).


FIGURA 1. Veja aqui o documento completo.


Desde 1991, os ucranianos lutam para estabelecer uma linha divisória territorial e étnica enquanto forjam a independência econômica do gigante russo. Moscou minou esses esforços encorajando o descontentamento nas regiões de língua russa oriental da Ucrânia, fomentando movimentos de independência e agora anexando oficialmente quatro regiões separatistas. Com anos de pressão política e econômica e agora com brutalidade militar, a Rússia tentou frustrar a independência econômica da Ucrânia interrompendo seus gasodutos, exportações de grãos e transporte marítimo.

Mesmo no auge da Guerra Fria, Kennan insistiu que “não podemos ser indiferentes aos sentimentos dos próprios russos”. Como os russos continuariam sendo o “elemento nacional mais forte” na área, qualquer “política americana de longo prazo viável deve ser baseada em sua aceitação e cooperação”. Mais uma vez, Kennan comparou a visão russa da Ucrânia com a visão americana do meio-oeste. Uma Ucrânia separada e independente poderia “ser mantida, em última análise, apenas pela força”. Por todas essas razões, um hipotético triunfante EUA não deveria tentar impor a independência ucraniana a uma Rússia prostrada.

Se os ucranianos alcançarem a independência por conta própria, Kennan aconselhou o Departamento de Estado, Washington não deveria interferir, pelo menos inicialmente. Era quase inevitável, no entanto, que uma Ucrânia independente fosse “desafiada eventualmente pelo lado russo” (vide Figura 2). Se naquele conflito “estava se desenvolvendo um impasse indesejável”, os Estados Unidos deveriam pressionar por “uma composição das diferenças ao longo das linhas de um federalismo razoável” (vide Figura 2).


FIGURA 2. Veja aqui o documento completo.


Apesar das vicissitudes dos últimos 75 anos, o conselho de Kennan permanece relevante hoje. Uma federação que permitisse a autonomia regional no leste da Ucrânia e talvez até na Crimeia poderia ajudar os dois lados a coexistir. Muitos analistas tendem a retratar o conflito atual como “a guerra de Putin”, mas Kennan acreditava que quase qualquer líder russo forte acabaria atuando contra a separação total da Ucrânia. Finalmente, as realidades da demografia e da geografia determinam que a Rússia, a longo prazo, continuará sendo a principal potência nessas muitas vezes trágicas “terras sangrentas”. Tanto para a estabilidade regional quanto para a segurança dos EUA a longo prazo, Washington precisa manter uma empatia obstinada e perspicaz pelos interesses dos russos, bem como dos ucranianos e de outras nacionalidades.

Um profeta ignorado

Ao contrário de Kennan, muitos kremlinologistas não previram o colapso da União Soviética. Ele foi aclamado como um profeta no final da Guerra Fria. No entanto, no debate que se seguiu sobre a expansão da OTAN, ele foi honrado em vez de atendido. Esse paradoxo foi ilustrado em 1995, quando Strobe Talbott, assessor do presidente dos EUA, Bill Clinton, para assuntos russos, procurou prestar homenagem a Kennan, a quem ele admirava profundamente. Talbott convidou Kennan para voar com o presidente a Moscou para o 50º aniversário do Dia da Vitória na Europa em 9 de maio, comemorando a rendição da Alemanha nazista. Em 1945, Kennan, alto funcionário dos EUA em Moscou, saudou calorosamente os animados russos que lotavam a embaixada. Agora, porém, o homem de 91 anos recusou o convite devido a problemas de saúde. Sua recusa em ir provavelmente foi o melhor.

Kennan provavelmente teria se sentido usado se soubesse da agenda completa da viagem. Em um memorando para Clinton, Talbott caracterizou o dia seguinte às festividades do aniversário como “10 de maio: Momento da Verdade”. Em seu encontro com o presidente russo Boris Yeltsin, Clinton fez como Talbott sugeriu e pressionou os russos a aceitar tanto a expansão da OTAN quanto a participação de Moscou na Parceria para a Paz, uma associação melhor entendida como “OTAN light” criada para acalmar as preocupações russas. Talbott admitiu a Clinton que “praticamente todos os principais atores na Rússia, em todo o espectro político, se opõem profundamente ou, pelo menos, estão profundamente preocupados com a expansão da OTAN”.

Em 1997, Kennan ficou ainda mais alarmado com a decisão de Washington de fazer com que a OTAN não apenas admitisse a República Tcheca, a Hungria e a Polônia, mas também iniciasse a cooperação militar e naval com a Ucrânia. A linha redesenhada que divide o leste do oeste estava obrigando a Ucrânia e outras nações a escolher um lado. “Em nenhum lugar essa escolha parece mais portentosa e repleta de consequências fatídicas do que no caso da Ucrânia” (vide Figura 3), Kennan alertou Talbott em uma carta particular.


FIGURA 3. Leia aqui a carta na íntegra.


Ele se preocupou em particular com o Sea Breeze, um exercício naval conjunto da Ucrânia e da OTAN que desafiou a tradicional insegurança da Rússia sobre navios de guerra estrangeiros nas águas estreitas do Mar Negro. Embora convidada a participar do exercício, a Rússia recusou furiosamente. A disputa em andamento na época entre Kiev e Moscou sobre a base naval de Sebastopol na Crimeia aumentou a tensão. Como, Kennan perguntou a Talbott, esse exercício naval se encaixava no esforço de Washington “para persuadir a Rússia de que a extensão das fronteiras da OTAN em direção à fronteira russa na Europa Oriental não tem conotações militares imediatas? (vide Figura 4)”


FIGURA 4. Leia aqui a carta na íntegra.


Embora respeitoso com as dúvidas de Kennan, Talbott manteve-se firme. Ele assumiu que a prostração econômica da Rússia significava que ela teria de se acomodar aos costumes ocidentais. “A Rússia terá de romper com um hábito profundamente arraigado de pensamento e comportamento”, escreveu Talbott a Kennan, procurando cooperar com seus vizinhos em vez de dominá-los. A Rússia teve que fazer o ajuste e aceitar o poder dos EUA em suas fronteiras. A administração Clinton pretendia “não parar de cooperar com a Ucrânia, mas redobrar nossos esforços para envolver a Rússia”.

Ao lado da referência de Talbott a “planejar exercícios este ano na Ásia Central e na região do Báltico”, o exasperado Kennan, com 93 anos, escreveu dois pontos de exclamação (vide Figura 5). Moscou novamente se recusou a participar desses exercícios militares liderados pelo Ocidente em áreas que estavam sob seu controle apenas alguns anos antes.


FIGURA 5. Leia aqui a carta na íntegra.


As previsões muitas vezes erram terrivelmente. Kennan subestimou a intensidade do nacionalismo ucraniano. Mas seus prognósticos em 1948 sobre a teimosia russa quando se tratava da Ucrânia e seus alertas na década de 1990 sobre a insensibilidade e ambição americanas soam verdadeiros hoje. Sua sugestão de alguma estrutura federal e autonomia regional em áreas disputadas continua promissora, embora seja cada vez mais difícil de implementar.

A questão primordial aqui é o que o historiador de Yale, Paul Kennedy, chamou de “alongamento imperial” (“imperial overstretch”, no original). De volta à Segunda Guerra Mundial, Kennan suportou longos voos em aviões de carga gelados cruzando o Atlântico lendo Edward Gibbon sobre como o Império Romano declinou e depois caiu. Kennan saiu cético quanto à viabilidade a longo prazo de até mesmo os países mais poderosos manterem forças militares longe de casa. Como resultado, ele subestimou o efeito estabilizador das tropas americanas estacionadas na Europa Ocidental durante a Guerra Fria.

Desde a Guerra Fria, no entanto, a fronteira militar dos Estados Unidos avançou muito mais para o leste. Independentemente de como termine a guerra brutal da Rússia na Ucrânia, os EUA se comprometeram a manter uma forte presença militar às portas da Rússia. Se fosse vivo hoje, Kennan notaria o perigo de encurralar os russos a ponto de eles poderem atacar. Ele também apontaria para os múltiplos problemas domésticos dos Estados Unidos e se perguntaria de que forma essa presença exposta na Europa Oriental estaria de acordo com os interesses de longo prazo domésticos e no estrangeiro do povo americano.


Publicado na Foreign Affairs.


*Frank Costigliola é Professor Emérito de História do Conselho de Curadores da Universidade de Connecticut e autor de “Kennan: A life between worlds”.


Nota

[1] O Cinturão do Milho (Corn Belt) é uma região dos EUA especializada nesse cultivo, sendo uma sub-região do cinturão de grãos. A área onde o milho é cultivado foi determinada pelo governo, de acordo com o clima mais adequado para a plantação do mesmo, e de acordo com a proximidade com os mercados consumidores.

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3 comentários

  1. GOSTEI MUITO! Informações relevantes e o levantamento de um histórico pessoal de uma grande pensador que sabia exatamente qual era a grande questão: ”A Rússia sempre estará lá”. Victoria Nuland e Robert Cagan (vontade de aportuguesar este sobrenome…) são dois muares diante de Kennan (nada contra os muares).

  2. Um artigo como esse serve para demonstrar à todos a complexidade do mundo real. De que o uso de expressões idiomáticas e coloquiais, em simplificações grosseiras, jamais podem resumir as relações sociais, econômicas e culturais que perfazem as grandes questões de geopolítica. Na Ucrânia, o acontecimento da guerra atual é – por evidente – somente a ponta de um iceberg imenso: congrega a questão racial (com muitos indivíduos ucranianos tendo ascendência russa e falando esse mesmo idioma), a política (por influência), a econômica (com o comércio de cereais, a produção de aço e a indústria de alta tecnologia ucraniana) e a estratégica, com a Rússia, compreensivelmente querendo manter uma certa distância tática das tropas e dos petrechos da OTAN, principalmente os sistemas anti-mísseis da coalizão. O sujeito que disse que resolveria essa situação na base da cerveja, se fosse conduzido até lá, na realidade ficaria como que um imbecil, bodejando coisas desconexas e sem valor algum para a resolução da questão. Russos e Ucranianos, olhando para a cara de pandeiro dele, em pouquíssimo tempo se convenceriam que estão a tratar com um anódino e assim, o abandonariam em um monólogo solitário.

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