O Cáucaso, a Rússia e a Turquia

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Vladimir Putin, à esquerda, e Recep Tayyip Erdoğan (Bulent Kilic/AFP/Getty Images).

Por Hamid Hajizadeh* (Tradução e adaptação por Elizabeth Hautz**)

Vladimir Putin, à esquerda, e Recep Tayyip Erdoğan (Bulent Kilic/AFP/Getty Images).

A Turquia vem implementando uma estratégia de aprofundamento em regiões tradicionalmente de influência russa, mas ao mesmo tempo parece estar pronta a compartilhar com a Rússia os benefícios obtidos com sua expansão geopolítica.


Tem havido muitos altos e baixos na política externa da Turquia desde que o AKP[1] despontou no cenário político turco em 2002. O resultado dessa ascensão foi uma redefinição de identidade baseada em uma doutrina de aprofundamento estratégico e uma mudança com relação ao papel da Turquia nos cenários regional e internacional.

O principal teórico dessa doutrina foi Ahmet Davutoğlu. Na visão dele, a Turquia é um grande player no Oriente Médio, Balcãs, Cáucaso, Ásia Central, Mediterrâneo, Golfo Pérsico e Mar Negro e, como tal, pode simultaneamente exercer sua influência nessas regiões e reivindicar um papel estratégico global.

Abordar a personalidade e o desempenho passado e presente do papel de Davutoğlu, o fundador do partido, pode ser matéria para outro artigo. Por ora, o que é analisado neste trabalho são os resultados da recente política externa da Turquia, especialmente no que diz respeito a sua insistência em garantir presença na região do Cáucaso e uma possível resposta russa a essa questão.

O atual presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, voltou recentemente de Sóchi, na Rússia, para se encontrar com seu homólogo russo, Vladimir Putin. A reunião acontece quando a Turquia continua a expandir sua presença no Cáucaso, região que muitos acreditam ser o “quintal russo”. Em entrevista a repórteres, ele descreveu o foco de suas palestras como segue:

  • Adesão da Turquia aos acordos com a Rússia;
  • Acabar com a presença do grupo PKK/YPG[2] nas áreas mencionadas e em Moscou;
  • Dar continuidade ao processo de compra de sistemas S-400[3];
  • Construção da segunda e da terceira usinas nucleares, exceto Akkuyu;
  • Cooperação em assuntos espaciais, bem como propor o lançamento de foguetes (terra e mar).

Turquia: Além das fronteiras

Um rápido olhar nesses tópicos mostra que a Turquia, ao mesmo tempo em que insiste em sua estratégia política de aprofundamento nas regiões onde a Rússia está presente, está pronta para compartilhar benefícios com os russos. Se a conjuntura econômica turca dos últimos tempos permitirá o sucesso das intenções do governo turco e como muito dessa política irá colocar pressão sobre a economia (e, consequentemente, sobre as pessoas), é outra questão; mas apesar dessas condições, o governo turco parece pronto para arcar com os custos de implementação dessa nova doutrina.

De acordo com alguns analistas políticos, a Turquia iniciou uma nova era no cenário político e militar na região. “A Turquia não está mais contida dentro de suas fronteiras”, disse Can Acun, pesquisador de política externa do Turkish Satay Institute. Além disso, ele afirma que a Turquia, em outra tentativa de estabelecer um governo na Somália, foi capaz de frustrar a ofensiva contra o Qatar.

Acun acredita que o ocidente reluta em aceitar essa nova Turquia e tenta colocar o AKP no centro de suas pressões, enquanto a Turquia, após o golpe de 15 de julho de 2016, está claramente envolvida nas interações políticas globais.

O país assumiu uma nova abordagem, buscando uma nova política internacional e fortalecendo suas relações com a Rússia e com a China, o que poderia equilibrar o comportamento ocidental, além de investir pesadamente em elementos de seu hard power, como também expandir seu soft power.

A Turquia tornou-se uma importante potência militar e é reconhecida como um dos países mais poderosos e influentes do mundo, especialmente no campo da tecnologia de drones armados e de reconhecimento, atrás dos Estados Unidos, China e Israel.


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Enquanto nos primeiros anos do século 21, o governo de Ancara supria cerca de 80% de suas necessidades de equipamento militar por meio de importações, hoje essa proporção caiu para 20% e o país se tornou um dos maiores exportadores do setor de defesa.

A presença militar da Turquia fora de suas fronteiras é um fato inegável, e sua presença no Afeganistão, bem como seu apoio ao Azerbaijão na guerra de 44 dias com a Armênia, mostraram que o país está tentando ser reconhecido com uma nova postura.

Rússia: fraqueza militar ou papel profissional

A Rússia, que tem um pacto de Defesa com a Armênia e sempre foi conhecida como um apoiador desta, não tomou nenhuma ação séria em apoio aos armênios na Guerra dos Quarenta e Quatro Dias, apelando para uma solução diplomática para o conflito do Nagorno-Karabakh.

A Rússia também concordou em manter uma força de paz na região em conjunto com a Turquia. Isso ocorreu enquanto a Turquia conseguiu marcar presença militar pela primeira vez na região do Cáucaso (“quintal da Rússia”).

A rotação política da Rússia, que também já ocorreu, pode ser avaliada a partir de duas perspectivas: Fraqueza militar ou conservadorismo.

O fato é que, além da derrubada de um avião militar russo pela Turquia em 25 de novembro de 2015, que acabou levando ao pedido de desculpas de um funcionário do governo turco aos russos, Turquia e Rússia estiveram em lados opostos em três frentes nos últimos anos, e a Turquia não saiu perdendo em todos os três conflitos que ocorreram em Idlib na Síria, na Líbia, e entre Azerbaijão e Armênia.

Alguns analistas acreditam que a “fraqueza militar da Rússia” foi demonstrada nos conflitos em Nagorno-Karabakh, Idlib e na Líbia, e o presidente Vladimir Putin teme o poderio militar da Turquia e a imprudência do presidente Erdoğan em usá-lo.

No entanto, os eventos militares nos três focos de conflito mencionados, podem apresentar uma outra faceta, nem tão evidente, que não significa que a Rússia se considere militarmente mais fraca do que a Turquia. Alguns analistas acreditam que a Rússia, com a ajuda do Irã, conseguiu evitar a queda do governo de Bashar al-Assad e aumentar a presença de seu exército no leste do Mediterrâneo, enquanto a Turquia conduzia as reuniões de oitenta países que se opuseram ao governo da Síria.

Eles acreditam que a capacidade dos drones turcos não representa uma ameaça significativa, e que se essa ameaça se tornar mais séria, por exemplo, ameaçando a integridade das tropas russas estacionadas na Síria, pode ser tranquilamente gerenciada.

Na verdade, a principal razão para o sucesso dos drones turcos nestes três conflitos é a sua capacidade contra o antigo sistema de defesa aérea usado pelos aliados russos. Esses sistemas são, em sua maioria, semiautomáticos e podem ser considerados obsoletos em comparação com novos equipamentos.


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Drones turcos conseguiram destruir sistemas de defesa PANTSIR-S1 russos na Líbia; mas o sistema de defesa de mísseis de longo alcance S-300 em Nagorno-Karabakh foi danificado principalmente por drones suicidas israelenses e não turcos. Ao mesmo tempo, não é um sinal de fraqueza militar, porque não há justificativa em usar sistemas caros para derrubar pequenos e insignificantes alvos em voo que só podem realizar operações limitadas.

Assim, a Rússia, como os Estados Unidos, pode gerenciar esses drones em um conflito real em que diversas camadas de defesa aérea estão ativas.

Os militares turcos estiveram em ação com suas armas, sistemas e operadores em Trípoli, Idlib e Nagorno-Karabakh, e a Rússia apenas observa enquanto seus aliados tentam enfrentar a “máquina de guerra turca”. É compreensível que a Rússia não queria enfrentar a Turquia direta e seriamente.

Rússia: Comportamento político profissional ou análise incorreta

A Rússia pode ter entendido o fato de que, trinta anos depois do fim da União Soviética, não pode mais decidir unilateralmente por suas extintas repúblicas. Por um lado, países como o Azerbaijão conquistaram independência e soberania e, por outro, novos players surgiram em cena e obtiveram vantagens.

Esse é o caso da Turquia e sua presença no Cáucaso e Ásia Central e na fronteira ocidental da China, regiões nas quais a Rússia contava com exclusividade, além dos esforços da Turquia para desenvolver uma aliança dos países de língua turca circunjacentes à Rússia. Por esta razão, quando a Rússia encontrou uma Armênia inflexível, mas fraca e isolada, e viu um Azerbaijão determinado e fortalecido no conflito de Nagorno-Karabakh no ano passado, não teve escolha a não ser neutralizar a primeira, fortalecendo a segunda.

Para entender melhor a nova política da Rússia no conflito do Nagorno-Karabakh, é necessário analisar a posição da Turquia na guerra e além, e levar em consideração a complicada situação das relações bilaterais russo-turcas que vai além do Nagorno-Karabakh. Esta perspectiva pode justificar o comportamento russo. Obviamente, podemos dizer que a Rússia ajudou a República do Azerbaijão a retomar o Nagorno-Karabakh, mas cabe à República do Azerbaijão decidir se está pronta para se aliar à Rússia agora.

Na verdade, Moscou quer que o Azerbaijão ingresse no Tratado da Organização de Segurança Coletiva (CSTO, Collective Security Treaty Organization), para forçar Yerevan a estabelecer relações diplomáticas com o Azerbaijão e, mais amplamente, assinar um acordo de paz abrangente com o país, acordo que tem estado na agenda de Baku desde o fim da guerra do Nagorno-Karabakh.

A Rússia está testemunhando o ativismo turco no Cáucaso, de onde os otomanos foram expulsos pelas forças czaristas um século e meio atrás, mas parece haver razões mais complexas para Putin aceitar a presença turca na região. Alguns políticos dizem que Putin vê Ancara como um Cavalo de Tróia que continua presente no campo ocidental, um país que está até mesmo disposto a arriscar suas atraentes compras do Ocidente, comprando sistemas de defesa S-400 da Rússia.

Este é um lado da moeda; do outro, também podemos considerar a possibilidade de que, se a Turquia faz o papel de um Cavalo de Tróia, por que não o ser para a Europa e o Ocidente? Se a participação na União Europeia (UE) e possíveis pacotes de incentivos ocidentais forem muito atraentes para a Turquia, ela pode entregar o quintal da Rússia para os rivais de Moscou.


Notas

[1] O Partido da Justiça e Desenvolvimento é um partido político turco. O AKP foi fundado em 2001 por uma ala reformista do Partido da Virtude, que é um partido islâmico turco.

[2] O YPG, como é conhecida a milícia curda apoiada pelos EUA na Síria, é o braço armado do PYD, um partido curdo fundado em 2003.

[3] O S-400 Triunfo (em russo: C-400 «Триумф»), conhecido anteriormente como S-300PMU-3, é uma nova geração de um sistema de mísseis antiaéreos desenvolvido pelo Almaz Central Design Bureau da Rússia na década de 1990 como uma atualização da família de mísseis S-300. Está em serviço nas Forças Armadas da Rússia desde 2007.


Hamid Hajizadeh é jornalista iraniano, escritor e poeta persa residente nos Emirados Árabes Unidos. Hamid é analista político e especialista em Turquia, Afeganistão e nos países do Golfo Pérsico. É formado em engenharia econômica e apresentador-especialista em programas de rádio do Irã.


Elizabeth Hautz é graduada em Administração pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP) e Mestra em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Elizabeth é administradora na Eletrobrás Furnas S.A., e pesquisadora do núcleo de História Antiga e Medieval do CEHAM/UERJ.

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