
Da complexidade histórica à atual inimizade, a relação entre Israel e Irã molda o cenário do Oriente Médio, com uma assimetria perigosa.
A atual e alarmante inimizade entre Israel e Irã, que hoje domina as manchetes internacionais, esconde uma história de relações complexas e, em certos períodos, surpreendentemente amigáveis. Para decifrar a escalada de tensões que testemunhamos, é imperativo contextualizar os antecedentes históricos e as assimetrias de poder que moldam essa perigosa dinâmica.
Remontamos ao século VI a.C., quando o Rei Ciro da Pérsia se destacou por libertar os judeus do cativeiro babilônico, permitindo a reconstrução do Templo de Salomão em Jerusalém. Essa relação de gratidão e estabilidade perdurou por milênios, estendendo-se até o século XX, durante a dinastia Pahlavi, quando o Irã de então mantinha fortes laços com Israel, sendo este um dos primeiros países a reconhecer o Estado iraniano. Essa era de pragmatismo e interesses convergentes, no entanto, foi abruptamente encerrada.
A ruptura definitiva ocorreu em 1979, com a Revolução Islâmica no Irã. A deposição do Xá Reza Pahlavi, aliado de Israel e dos Estados Unidos, e a ascensão do Aiatolá Khomeini ao poder, marcaram o início de uma nova era. A doutrinação religiosa e uma postura abertamente antiocidental e, consequentemente, anti-israelense – com a designação de Israel como o “Pequeno Satã” – estabeleceram as bases para a inimizade que conhecemos hoje. Desde então, a tensão só tem crescido, impulsionada por visões de mundo antagônicas e por uma série de ações diretas e indiretas.
Um dos fatores mais cruciais e desequilibradores nesse tabuleiro de xadrez geopolítico é a notável disparidade na qualidade e sofisticação dos serviços de inteligência. Israel possui uma capacidade de inteligência altamente avançada, organizada em três níveis: o Aman (inteligência das forças armadas), o Shin Bet (inteligência doméstica, incluindo os territórios palestinos) e o renomado Mossad (inteligência externa).
A audácia e a eficácia do Mossad são lendárias, com registros impressionantes de infiltrações em território iraniano. Em 2021, por exemplo, o Mossad teria orquestrado o roubo de plantas do complexo nuclear iraniano. Meses antes do cenário atual, relata-se uma nova infiltração no Irã para montar fábricas clandestinas de drones, quase artesanais, com o objetivo de alvejar alvos selecionados e prioritários diretamente de dentro do país. Há, inclusive, relatos da infiltração na própria cúpula militar iraniana, com a ousadia de convocar reuniões para potencialmente bombardear simultaneamente os chefes ali reunidos.
Essa inigualável capacidade de inteligência, aliada a um imenso aparato tecnológico – incluindo satélites de ponta e diversos tipos de sensores – e uma forte conexão com outros países, permite a Israel um mapeamento detalhado das defesas iranianas e de toda a infraestrutura crítica do país. Essa vasta e precisa base de informações é absolutamente fundamental para o planejamento de campanhas militares bem-sucedidas, pois permite a identificação precisa de alvos compensadores e a minimização de riscos.
A recente escalada do conflito direto, com trocas de ataques de drones e mísseis de ambos os lados, é a manifestação mais visível dessa tensão subterrânea. As ações iranianas, frequentemente vistas como retaliação a ataques atribuídos a Israel em solo sírio (como o bombardeio à embaixada iraniana em Damasco) ou no próprio Irã, elevam a região a um patamar de risco sem precedentes, aproximando-a perigosamente de um conflito em larga escala.
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Cenários Possíveis e Seus Reflexos Globais
O futuro desse embate é incerto e pode seguir diversos caminhos, cada um com implicações globais significativas:
Atingir a capacidade nuclear iraniana: Israel tem como objetivo declarado impedir que o Irã desenvolva armas nucleares. Os ataques israelenses podem visar a destruição da infraestrutura nuclear iraniana, tentando um “acerto de contas” para neutralizar essa ameaça. Se o Irã estiver a poucos meses de ter uma capacidade nuclear, a intervenção de Israel seria vista como estratégica para evitar uma corrida armamentista ou um desequilíbrio ainda maior na região.
Capitulação parcial do regime iraniano: Outro cenário envolve a possibilidade de o Irã renunciar ao seu programa nuclear para evitar danos ainda maiores. Os ataques israelenses já causaram perdas expressivas às defesas antiaéreas iranianas, e os danos tendem a se acumular. Caso os prejuízos se tornem insuportáveis, é possível que o Irã se veja forçado a negociar ou a recuar, o que parece ser a aposta estratégica de Israel.
Queda do regime iraniano: A exemplo do que aconteceu em outros regimes na região, a intensa pressão militar e econômica, somada a eventuais fatores internos, poderia levar à queda do regime iraniano. Embora seja uma hipótese mais drástica, não pode ser descartada no longo prazo.
Regionalização do conflito e bloqueio de Ormuz: Independentemente do desfecho final, o caminho até ele é preocupante. O regime iraniano pode decidir lançar mão de todos os recursos à sua disposição para tentar regionalizar o conflito. Uma forma eficaz e devastadora de fazer isso seria provocar uma crise econômica global, interrompendo o tráfego no Estreito de Ormuz. Por ali passa cerca de 21% do petróleo consumido diariamente no planeta. Um bloqueio parcial ou total, provocado por ação militar iraniana, causaria danos significativos à economia global – e ampliaria ainda mais os riscos do conflito, potencialmente envolvendo outras potências regionais e internacionais.
Como se vê, a guerra entre Israel e Irã não se restringirá a definir o futuro do programa nuclear iraniano, mas da estabilidade de todo o Oriente Médio – e, por consequência, parte da segurança energética e do equilíbrio global. A capacidade de inteligência israelense atua como um fator dissuasório e, ao mesmo tempo, como um elemento que permite a Israel tomar iniciativas cirúrgicas, enquanto o Irã, por sua vez, busca simetria ou a assimetria da provocação para elevar os riscos. O mundo observa com apreensão essa complexa e perigosa dança, onde a incerteza paira como uma sombra sobre o futuro do Oriente Médio e, por extensão, do equilíbrio global.
Publicado na CNN Portugal.