
Trump conseguiu o impossível: declarar guerra comercial ao país que controla os minerais vitais para seus sistemas de defesa, uma genial estratégia para tornar a “América grande novamente” – mas dependendo da boa vontade chinesa.
A imposição de tarifas comerciais pelo governo Trump, (que, na verdade, já havia iniciado em 2018), desencadeou importantes mudanças na estrutura da cadeia de suprimentos da indústria de defesa norte-americana. A guerra tarifária – agora fortemente intensificada – contra a China, o principal fornecedor mundial de minerais de terras raras, colocou em evidência vulnerabilidades estratégicas dos Estados Unidos. Neste artigo buscamos mostrar um panorama dos impactos dessa guerra tarifária sobre a indústria de defesa dos EUA.
Dependência estratégica: o paradoxo da autonomia militar americana
A decisão de Trump de impor tarifas sobre produtos chineses e, por consequência, a ampla gama de retaliações, expôs uma preocupação estrutural pouco percebida por segmentos fora do alto escalão: a dependência dos Estados Unidos de minerais de terras raras. Esses elementos se tornaram, ironicamente, uma verdadeira “moeda de troca” no tabuleiro da guerra comercial com a China.
Cerca de 90% do processamento mundial de terras raras ocorre na China. Esses elementos são indispensáveis à fabricação de sistemas de radar, mísseis guiados, motores elétricos e uma miríade de outros dispositivos militares e de alta tecnologia. Quando Pequim restringiu as exportações para os EUA, a vulnerabilidade americana ficou patente. Em resposta, a norte-americana MP Materials, dona da única mina ativa de terras raras dos EUA, em Mountain Pass, na Califórnia, anunciou a interrupção do envio de concentrado para a China, buscando um primeiro passo na criação de uma cadeia de suprimento doméstica.
No entanto, os desafios para essa autonomia não são poucos e nem pequenos. A mineração por si só não é suficiente; o processamento químico, tradicionalmente feito na China por questões de custo e experiência, não é uma competência dos EUA. Assim, mesmo que a matéria-prima seja extraída em solo americano, há extrema dependência de capacidade externa para transformá-la em produtos utilizáveis. Portanto, é difícil escapar da dependência internacional enquanto não houver, nos EUA, uma infraestrutura completa para minerar, processar e empregar elementos de terras raras em escala industrial.
A ironia se completa quando se observa que a guerra tarifária, inicialmente (e supostamente) desenhada para proteger a indústria americana, acabou expondo a deficiência de políticas industriais voltadas a garantir autonomia real em setores estratégicos. O aumento do custo de insumos devido às tarifas deve elevar (ainda mais) o custo final dos sistemas de defesa americanos, gerando pressão crescente sobre orçamentos militares e forçando ajustes ou a busca de financiamentos adicionais no Congresso.
Em meio a esse contexto, Washington busca por outros fornecedores. Trump afirmou que o acordo com a Ucrânia para fornecimento de minerais de terras raras está previsto para assinatura nos próximos dias. Isso diminuiria um pouco a dependência estratégica diante do risco das decisões da China, mas ainda há a questão do processamento.
No entanto, a busca por diversificação não está livre de obstáculos. O desenvolvimento de minas em países como Ucrânia e Austrália, ou mesmo o amadurecimento das operações em solo americano, requerem alto investimento, elevados padrões ambientais e, evidentemente, tempo – um recurso escasso diante do imediatismo dos desafios geopolíticos atuais. Os Estados Unidos devem perseguir negociações visando ampliar o leque de fornecedores, mas a escala e a complexidade envolvidas são tais que uma solução rápida parece improvável.
Há nuances importantes no aspecto econômico. O aumento dos custos para a indústria de defesa pode trazer consequências para programas de modernização tecnológica, potencialmente atrasando prazos ou reduzindo volumes de produção de equipamentos considerados cruciais. O cenário pode ser traduzido em pressão orçamentária para o Departamento de Defesa e compromissos políticos delicados ao aproximar-se de um ano eleitoral.
Muito se discute sobre oportunidades geradas pela crise – entre elas, o incentivo à produção nacional, o desenvolvimento de novos processos industriais e o estímulo à pesquisa tecnológica. Mas a autossuficiência, ainda que muito desejada, esbarra nos desafios já citados: custos elevados, desenvolvimento de processos e capacidade de processamento, necessidade de mão de obra qualificada para e restrições ambientais.
Vale ressaltar ainda que a predominância chinesa nesse setor não resulta apenas de aspectos geológicos, mas de uma política industrial direcionada e de incentivos governamentais robustos. Os Estados Unidos, em contraste, historicamente optaram por delegar atividades poluentes e de baixo valor agregado a outros países, concentrando-se em etapas tecnológicas avançadas. A guerra tarifária trouxe um ponto de inflexão, obrigando uma revisão dessas escolhas.
As consequências são difíceis de mensurar. O domínio chinês na cadeia de terras raras é, agora, entendido como uma alavanca de poder que pode ser acionada em disputas globais – um ativo que transcende o valor comercial e se converte em instrumento de influência estratégica. Ao mesmo tempo, para os EUA, a dependência se converte em vulnerabilidade, limitada apenas pela boa vontade e pelos interesses de seu escolhido principal rival global.

LIVRO RECOMENDADO:
Prophets of War: Lockheed Martin and the making of the military-industrial complex
• William D. Hartung (Autor)
• Em inglês
• Kindle, Capa dura ou Capa comum
Decisão irresponsável?
Diversas análises e declarações recentes indicam que a decisão tarifária de Trump, especialmente as relacionadas a minerais de terras raras da China, foi no mínimo precipitada e, muito possivelmente, impensada em relação a seus efeitos estratégicos na economia e na defesa dos EUA. Janet Yellen, ex-secretária do Tesouro no governo Biden, já havia dito em outubro passado que aumentar tarifas e isolar a economia americana seria “profundamente equivocado”, apontando que a medida elevaria os preços aos consumidores e prejudicaria a competitividade das empresas americanas – inclusive na área de defesa.
Bryan Clark, analista do Instituto Hudson, destacou que as tarifas sobre materiais críticos aumentariam custos, comprometeriam a cadeia de suprimentos e trariam riscos semelhantes aos enfrentados durante a pandemia de covid-19, com aumentos e atrasos na entrega de equipamentos de defesa. Ainda em março, Ricardo Hausmann, da Universidade Harvard, afirmou que as tarifas de Trump poderiam aumentar custos em até 25% ao longo de complexas cadeias globais, ameaçando colapsar setores inteiros caso atravessassem múltiplas fronteiras produtivas.
Juntas, essas análises sugerem que Trump subestimou tanto a reação da China quanto os entraves estruturais domésticos, tornando a decisão tarifária um movimento de consequências negativas pobremente calculadas.
Minerais críticos
As terras raras são essenciais para a fabricação de produtos de alta tecnologia. O setor de defesa faz uso intensivo de terras raras e outros minérios, e problemas de fornecimento podem afetar a produção de diversos equipamentos. Mísseis, drones, caças e aeronaves militares em geral fazem muito uso de alumínio e aço, mas terras raras são empregadas em radares, sistemas de comunicação e motores elétricos embarcados em plataformas militares modernas. Empresas como a Boeing, a Lockheed Martin, a Honeywell e a RTX (antiga Raytheon Technologies), entre outras, correm o risco de interrupções na cadeia de suprimentos e elevação dos preços. Programas de modernização e manutenção contratados com essas empresas, por exemplo, devem ficar mais caros diante do aumento do custo das matérias-primas.
Críticas
Segundo uma análise do think tank britânico Chatham House, as tarifas de Trump colocaram em evidência que os Estados Unidos dependem fortemente de minerais de terras raras fornecidos… pela própria China. A análise alerta que, ao iniciar uma guerra comercial com o principal fornecedor desses materiais os EUA se tornaram vulneráveis a retaliações, ameaçando sua própria segurança nacional. Na visão deste autor, isso deveria parecer óbvio, mas parece que o bom senso abandonou a política ocidental há tempos.
Como se isso não bastasse, a Chatham House também destacou que a medida de Trump pressionou aliados a reverem a dependência de Washington em matéria de defesa, ao mesmo tempo em que fortaleceu o discurso chinês de que os EUA não são parceiros confiáveis.
Reportagens da Newsweek reforçaram que as tarifas provocaram retaliação chinesa, incluindo restrições à exportação dos minerais essenciais, impactando diretamente a prontidão militar americana. Especialistas citados pelas matérias alertam que as restrições podem dificultar o desenvolvimento de tecnologias militares de ponta nos EUA e gerar atrasos ou aumentos de custo na indústria de defesa.
Já a Fox Business indicou preocupações do governo americano com a possibilidade de interrupção de exportações de minerais críticos, o que motivou movimentos como o já mencionado da MP Materials, interrompendo o envio de concentrado para a China, tentando fomentar uma cadeia de suprimentos doméstica. As matérias reconhecem os riscos imediatos e as dificuldades técnicas decorrentes da dependência estrutural do processamento realizado fora do país.
Em análise do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais (CSIS, Center for Strategic & International Studies) também afirmou que a política tarifária pode comprometer a prontidão militar dos EUA, dado o risco de restrições chinesas sobre exportação de terras raras.
Em suma, diversas análises dentro dos EUA convergem ao apresentar a guerra tarifária como uma decisão de alto risco, eficácia duvidosa e pouca ponderação, já que, ao buscar pressionar a China, acabou expondo e agravando a vulnerabilidade estratégica americana.
A estratégia (se é que se pode usar esse termo) adotada por Trump é portanto no mínimo incoerente, sem alinhar políticas comerciais com as reais dependências críticas da indústria de defesa norte-americana, aumentando a exposição a retaliações e riscos de desabastecimento.
“Make America Great Again”. Trump parece estar contando com a boa vontade dos chineses para isso, e é no mínimo curioso que isso ocorra na maior potência militar que o planeta já conheceu. Seria um sinal dos tempos?
Referências
REIS, J. B. As tarifas de Trump e a indústria militar de Defesa dos EUA: cascata de efeitos negativos. Revista Sociedade Militar, 18 de abril de 2025. Disponível em: https://www.sociedademilitar.com.br/2025/01/os-efeitos-que-a-politica-de-tarifas-de-trump-pode-ter-na-industria-militar-de-defesa-reis.html.
China grip on rare earths, threatening U.S. defense supply chains. New York Center for Foreign Policy Affairs, 17 de abril de 2025. Disponível em: https://nycfpa.org/04/17/china-grip-on-rare-earths-threatening-u-s-defense-supply-chains/.
LAWDER, David. Secretária do Tesouro diz que promessa feita por Trump sobre elevar tarifas é ‘profundamente equivocada’. Folha de São Paulo, 17 de outubro de 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/10/secretaria-do-tesouro-diz-que-promessas-feitas-por-trump-sobre-elevar-tarifas-e-profundamente-equivocado.shtml.
Rare Earth Dominance Puts China in Powerful Geopolitical Position. Oilprice.com, 17 de abril de 2025. Disponível em: https://oilprice.com/Metals/Commodities/Rare-Earth-Dominance-Puts-China-in-Powerful-Geopolitical-Position.html.
BALAGO, Rafael; PÁDUA, Luciano. “Tarifas de Trump vão trazer danos severos”, diz Ricardo Hausmann, professor de Harvard. Exame, 20 de março de 2025. Disponível em: https://exame.com/revista-exame/os-eua-nao-fabricam-nada-sozinhos/.
SHAW, Christina. MP Materials cuts off US rare earth to China amid ongoing tariff battle. Fox Business, 18 de abril de 2025. Disponível em: https://www.foxbusiness.com/fox-news-economy/mp-materials-cuts-off-us-rare-earth-china-amid-ongoing-tariff-battle.
BASKARAN, Gracelin; SCHWARTZ, Meredith. The Consequences of China’s New Rare Earths Export Restrictions. CSIS, Center for Strategic & International Studies, 14 de abril de 2025. Disponível em: https://www.csis.org/analysis/consequences-chinas-new-rare-earths-export-restrictions.
PURI, David. President Trump’s tariffs increase pressure on allies to reduce security dependence on the US. Chatham House, 15 de abril de 2025. Disponível em: https://www.chathamhouse.org/2025/04/president-trumps-tariffs-increase-pressure-allies-reduce-security-dependence-us.
FUNK, Josh. The US has a single rare earths mine. Chinese export limits are energizing a push for more. AP News, 18 de abril de 2025. Disponível em: https://apnews.com/article/rare-earths-trump-tariffs-china-trade-war-effd6a7ec64b5830df9d3c76ab9b607a.
Trump says U.S. to sign rare earths minerals deal with Ukraine next week. NPR, 17 de abril de 2025. Disponível em: https://www.npr.org/2025/04/17/nx-s1-5366821/trump-italy-meloni.
US depends on single rare earths mine as China’s export limits accelerate push for more. Business360, 18 de abril de 2025. Disponível em: https://www.b360nepal.com/detail/24982/us-depends-on-single-rare-earths-mine-as-chinas-export-limits-accelerate-push-for-more.
COLE, Brendan; FENG, John. Why China’s Rare Earth Curbs Could Devastate US Defense Industry. Newsweek, 11 de abril de 2025. Disponível em: https://www.newsweek.com/china-xi-trump-rare-earths-2057930.