Brincando com cenários de guerra

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Imagem gerada por inteligência artificial.

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Teorias de vitória devem ter objetivos políticos claros, ser concisas, considerar como o inimigo reagirá militar e politicamente e ponderar como outros países vão responder.


Teorias da vitória

Para este tema talvez fosse indicado preliminarmente o artigo publicado na revista Parameters Edição do Verão de 2008 com o título A Teoria da Vitória de J. Boone Bartholomees. Contudo, mudando as formas de acessar o conhecimento, não me custa confessar que para introduzir o tema fiz a seguinte pergunta a um chatbot de inteligência artificial generativa (Le Chat Mistral): Quais as principais teorias da vitória? Segue a resposta:

“As teorias da vitória são conceitos estratégicos militares que buscam explicar como uma nação ou grupo alcança a vitória em uma guerra. As teorias mais conhecidas:

1. Teoria da Aniquilação: Esta teoria propõe que a vitória é alcançada através da destruição completa das forças armadas inimigas e sua capacidade de resistir. Isso geralmente envolve batalhas decisivas e concentração de forças para infligir o máximo de dano possível ao inimigo.

2. Teoria do Desgaste: Também conhecida como teoria de attrition, esta abordagem sugere que a vitória é alcançada desgastando gradualmente as forças e recursos do inimigo, buscando uma vantagem acumulativa ao longo do tempo. Isso pode envolver uma guerra de trincheiras, guerrilha ou operações aéreas e navais sustentadas.

3. Teoria da Manobra: Esta teoria enfatiza a importância de manobras estratégicas e táticas para explorar as fraquezas do inimigo e obter uma posição vantajosa. A vitória é alcançada ao desequilibrar o inimigo e forçá-lo a se render ou recuar.

4. Teoria do Centro de Gravidade: Esta teoria propõe que cada nação ou grupo tem um centro de gravidade – um aspecto fundamental de sua força ou poder – que, se atacado ou neutralizado, levará ao seu colapso. O centro de gravidade pode ser militar, político, econômico ou até mesmo psicológico.

5. Teoria dos Sistemas: Esta abordagem moderna considera a guerra como um sistema complexo e interconectado de elementos, incluindo forças militares, liderança política, população civil, infraestrutura e recursos. A vitória é alcançada ao desestabilizar o sistema inimigo e afetar suas interconexões, em vez de se concentrar em um único aspecto ou alvo.

6. Teoria da Guerra de Quarta Geração: Esta teoria afirma que as guerras modernas envolvem uma mistura de conflitos convencionais, não convencionais, assimétricos e baseados na informação. A vitória neste tipo de guerra requer uma abordagem abrangente que integre operações militares, diplomacia, guerra econômica, guerra cibernética e guerra de informação.”

Essa exposição didática do chatbot pode ter muitas outras versões, contudo é útil para introduzir nosso objetivo.

Objetivo

Nosso objetivo aqui é fazer um comentário sobre um artigo publicado recentemente que envolve o uso das teorias da vitória para avaliar os cenários de vitória americana em uma eventual invasão da China a Taiwan.

O título do documento é U.S. Military Theories of Victory for a War with the People’s Republic of China. Os autores são Jacob L. Heim, Zachary Burdette e Nathan Beauchamp-Mustafaga, pesquisadores do RAND Corporation, um centro de pesquisa e análise de políticas públicas. O documento foi publicado em fevereiro de 2024 como parte de um projeto do Departamento da Força Aérea dos Estados Unidos.

Apresentação

O relatório do RAND Corporation sobre possíveis teorias de vitória para os Estados Unidos em uma guerra com a China sobre Taiwan analisa os riscos de escalada e as perspectivas de sucesso de cada teoria, e conclui que uma teoria de negação oferece a melhor chance de entregar a vitória enquanto evita a escalada catastrófica.

Uma teoria de negação, que visa impedir a China de tomar Taiwan por meio de ataques diretos às forças de invasão, oferece a melhor chance de sucesso com o menor risco de escalada catastrófica.

Uma teoria de imposição de custos militares, que visa persuadir a China a parar de lutar por meio de medidas como um bloqueio ou ataques aéreos estratégicos, tem baixas perspectivas de sucesso e altas chances de escalada inaceitável.

Teorias de vitória apresentadas no relatório

  • Dominância: Usa a força bruta para deixar o inimigo fisicamente incapaz de continuar resistindo. É impraticável contra um grande poder nuclear como a China.
  • Negação: Convence o inimigo de que é improvável que alcance seus objetivos e que continuar lutando não reverterá esse fracasso. Envolve atritar a capacidade da China de invadir e ocupar Taiwan.
  • Desvalorização: Convence o inimigo de que, mesmo que consiga garantir seus objetivos, os benefícios seriam menores do que esperava. Geralmente envolve táticas de terra arrasada, mas oferece pouca alavancagem contra a China, que tem um forte vínculo político com Taiwan.
  • Brinkmanship: Convence o inimigo a parar de lutar ameaçando escalada se ele não encerrar a guerra. Este é essencialmente uma chantagem – os Estados Unidos ameaçariam uma escalada significativa, potencialmente até o uso nuclear, se a China não abandonasse a invasão.
  • Custo-imposição: Usa o instrumento militar para persuadir o inimigo de que os custos de continuar a guerra superam os benefícios. Uma proposta comum é um bloqueio distante do comércio marítimo da China em pontos de estrangulamento, como o Estreito de Malaca.


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Críticas ao relatório

As possíveis deficiências, incongruências e contradições que eu encontrei no relatório do RAND Corporation são:

  • O relatório da RAND Corporation não fornece uma definição clara de escalada catastrófica, nem explica como medir ou evitar esse resultado. Isso pode dificultar a avaliação dos riscos de cada teoria de vitória e a comparação entre elas;
  • O relatório da RAND Corporation assume que os Estados Unidos teriam um objetivo político limitado de impedir que a China tome o controle físico de Taiwan, mas não discute como esse objetivo seria comunicado ou negociado com a China, Taiwan e outros aliados. Isso pode criar ambiguidade e mal-entendidos sobre as intenções e as demandas dos Estados Unidos, e potencialmente reduzir a credibilidade e a eficácia da sua estratégia;
  • O relatório da RAND Corporation não considera a possibilidade de que a China possa ter teorias de vitória alternativas ou complementares às cinco identificadas para os Estados Unidos, nem como isso poderia afetar a dinâmica do conflito e a coerção. Por exemplo, a China poderia tentar usar a dissuasão, a desvalorização, a dissuasão ou a imposição de custos políticos ou econômicos para influenciar os Estados Unidos e seus aliados;
  • O relatório da RAND Corporation não aborda as implicações de longo prazo de cada teoria de vitória para a estabilidade regional, a competição estratégica e a ordem internacional. Por exemplo, como uma guerra limitada afetaria a percepção de poder e prestígio das duas partes, a confiança e a cooperação entre os aliados dos Estados Unidos, e as normas e regras que regem o uso da força e a resolução de disputas?
  • Falta uma perspectiva histórica para caso envolvendo os EUA. A derrota americana na invasão da Baía dos Porcos em Cuba em 1961 se assemelha a um cenário de derrota limitada para os EUA em uma guerra com a RPC sobre Taiwan. Uma derrota limitada significa que os EUA não conseguiram alcançar seus objetivos limitados, mas não sofreram uma derrota mais ampla que limitasse sua capacidade de negociar os termos da paz;
  • No caso da Baía dos Porcos, os EUA tentaram derrubar o regime comunista de Fidel Castro apoiando uma invasão de exilados cubanos, mas a operação fracassou e os invasores foram capturados ou mortos. No entanto, os EUA não enfrentaram uma retaliação direta de Cuba ou da União Soviética, e a crise foi resolvida diplomaticamente com a troca dos prisioneiros por alimentos e remédios. Em uma guerra com a RPC sobre Taiwan, uma derrota limitada para os EUA poderia significar que a RPC conseguisse tomar Taiwan pela força, mas não atacasse ou destruísse outras bases ou interesses dos EUA na região ou no mundo. Nesse caso, os EUA teriam que aceitar a perda de Taiwan, mas ainda poderiam manter sua aliança com outros países asiáticos e sua posição global como uma grande potência.

Aplicação a outros cenários

A análise proposta neste artigo envolve identificar as possíveis teorias de vitória para uma guerra entre grandes potências e avaliar seus riscos de escalada. Algumas das teorias de vitória são: 1) dominação, 2) negação, 3) desvalorização, 4) beira do abismo e 5) imposição de custos militares. Essas teorias podem ser aplicadas a qualquer cenário de conflito, incluindo uma guerra entre a Rússia e a OTAN sobre a Ucrânia. No entanto, alguns fatores podem mudar dependendo do contexto específico, como:

  • O equilíbrio de poder entre os contendores e seus aliados;
  • Os objetivos políticos e os interesses vitais de cada lado;
  • As capacidades militares e nucleares de cada lado;
  • As percepções e as preferências de cada lado;
  • As restrições e os incentivos para a escalada ou a contenção.

Por exemplo, a Rússia pode ter uma vantagem geográfica e operacional sobre a OTAN na região da Ucrânia, mas pode enfrentar uma desvantagem econômica e tecnológica no longo prazo. A OTAN pode ter um objetivo limitado de preservar a soberania e a integridade territorial da Ucrânia, mas pode enfrentar um desafio de coesão e compromisso entre seus membros. A Rússia pode ter um objetivo máximo de anexar ou subverter a Ucrânia, mas pode enfrentar uma forte resistência interna e externa. Ambos os lados podem ter capacidades nucleares suficientes para dissuadir um ataque preventivo, mas podem ter diferentes limiares para o uso nuclear em uma crise ou em um conflito. Ambos os lados podem ter diferentes visões sobre a natureza e a gravidade do conflito, e podem ter diferentes tolerâncias ao risco e à perda.

Portanto, a análise exigiria uma adaptação cuidadosa às especificidades do cenário da Rússia-OTAN-Ucrânia, e não uma simples substituição dos atores. Além disso, a análise não pretende ser uma previsão ou uma prescrição, mas sim um exercício de pensamento para explorar as possibilidades e os desafios de uma guerra entre grandes potências no século XXI.

Construindo guerras com discurso

Teorias de vitória são histórias causais sobre como derrotar um adversário, que oferecem uma “linha narrativa explicando por que pensamos que as coisas vão acontecer do jeito que desejamos” (Cohen, 2022b). Elas devem ter objetivos políticos claros, ser concisas, considerar como o inimigo vai reagir (tanto militar quanto politicamente) e considerar como outros países envolvidos (por exemplo, parceiros da coalizão) vão reagir.

Algumas teorias de vitória podem exigir uma forte construção discursiva para implementação em países democráticos, porque elas podem envolver riscos elevados de escalada, custos humanos e materiais, ou danos colaterais. Por exemplo, a teoria da vitória da dominação, que usa força bruta para deixar o inimigo fisicamente incapaz de continuar lutando, pode ser difícil de justificar em uma democracia, porque pode implicar em ataques nucleares, bombardeios estratégicos ou mudança de regime. Da mesma forma, a teoria da vitória do brinkmanship (também conhecida como “política da beira do precipício”), que persuade o inimigo a parar de lutar ameaçando a escalada se ele não terminar a guerra, pode ser arriscada e impopular em uma democracia, porque envolve aumentar deliberadamente o risco de destruição mútua. Por outro lado, a teoria da vitória da negação, que persuade o inimigo de que é improvável que ele alcance seus objetivos e que continuar lutando não vai reverter esse fracasso, pode ser mais fácil de implementar em uma democracia, porque se concentra em objetivos limitados e evita medidas de imposição de custos adicionais.

Conclusão

As teorias de vitória que precisam de forte construção discursiva para implementação em países democráticos são aquelas que envolvem altos riscos de escalada, custos elevados ou danos colaterais, como dominação e brinkmanship. O cidadão que deseja paz observa os cenários e os discursos predominantes para compreender e influir nos rumos dos acontecimentos.

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1 comentário

  1. Tomara que o think tank RAND corporation tenha melhorado a qualidade de suas análises desde o tempo em que produziu material para o pentágono na época da guerra do Vietnã. Nesse conflito, ficou famoso um relatório produzido pela RAND que pregava a efetividade da estratégia de bombardeiros aéreos massivos, nos mesmos moldes em que estavam sendo empregados. Engraçado que o descontentamento na força aérea, entre as tripulações era cada mais montante e notório. Inclusive a análise diplomática dos resultados apontava para uma acachapante flexibilidade do Vietnã na absorção dos danos criados pelas estratégias criadas, pelo próprio Lyndon Johnson, que escolheu pessoalmente muitos alvos.
    O que se viu, na época, por parte da RAND, era o suporte de pontos de vista definidos pelo pagador, com a produção de muito material somente para servir de embelezamento à raciocínios e resultados previamente definidos. Na época a RAND era mais um produto da cultura da financeirização, que com suas análises de estatísticas, balanços, estimativas etc, tentava dar um ar de cientificidade a um conteúdo totalmente comprometido, cujas conclusões se baseavam nos desejos dos belicistas de Washington.
    Tanto é verdade, que o trabalho da RAND foi contraditado pelo de um grupo de sociólogos independentes, que conduziram uma pesquisa ampla, sem cacoetes e dessa forma, anteciparam um resultado com que o mundo se depararia com assombro, muitos anos mais tarde: a de que os bombardeios eram inúteis como ferramenta de guerra e que a propalada taxa de atrição que produziam, era, na verdade, uma incômoda mentira.

    A fonte dessas informações é o maravilhoso livro do jornalista Max Hastings, em sua obra “Vietnã: uma tragédia épica”.
    Tomara que a RAND tenha se profissionalizado, tomara. No entanto a toada de mentiras que inunda as mídias nos conduz à conclusão em sentido diverso.

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