Perspectivas militares da Ucrânia

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O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky (Lynsey Addario/The New York Times).

Por Olivier Dujardin*

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky
(Lynsey Addario/The New York Times).

Conforme a guerra se arrasta, o maior risco para a Ucrânia é que sua condição de negociação se torna cada vez pior, e o país pode ter perdido a oportunidade de sair da guerra sem muitos danos e mantendo quase todos os territórios exceto a Crimeia.


O seguinte foi publicamente reconhecido pelo Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Ucranianas, general Zaluzhny: a contraofensiva é um fracasso, a situação está bloqueada no terreno e o exército ucraniano parece estar atualmente em um impasse estratégico. Ainda há alguns analistas nos meios de comunicação ocidentais que dizem que não há falha ucraniana, que é apenas a “contraofensiva que não funcionou”, mas, para além da semântica, a realidade está aí.

Ainda não parece haver qualquer perspectiva de negociações com a Rússia, o presidente Zelensky opõe-se firmemente a elas e podemos compreender por quê. A posição da Ucrânia para a abertura de discussões não é nada favorável. As exigências russas serão provavelmente ainda mais fortes do que foram durante as conversações iniciadas em março de 2022. Os russos exigiram então a neutralidade da Ucrânia, sua “desnazificação” e “desmilitarização”, e o reconhecimento da Crimeia como território russo.

Segundo artigo do Financial Times publicado em 16 de março de 2022, os protagonistas pareciam próximos de um acordo cujos pontos principais eram: cessar-fogo e retirada das tropas russas, declaração de neutralidade da Ucrânia incluída na sua Constituição, o russo como língua oficial ensinada nas escolas e, embora a Rússia já tivesse falado da “desmilitarização” da Ucrânia, exigia agora da Ucrânia limitações ao seu exército e proibição de bases militares estrangeiras ou mísseis nucleares em seu território. Em troca, a segurança da Ucrânia seria assegurada pela Turquia, pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos. A questão do status da Crimeia foi adiada para mais tarde.

No entanto, ao terminarem as negociações, os ucranianos aumentaram as apostas e, nestas condições, compreendemos a vontade demonstrada pelo seu presidente de continuar a guerra com objetivo político inalterado, nomeadamente o regresso às fronteiras de 1991 sem qualquer concessão às suas alianças (filiação à OTAN).

Com base nisso, apresentamos aqui três possíveis cenários militares (aos quais poderíamos adicionar todas as variantes) com suas probabilidades de produzir o efeito político desejado.

Cenário 1: Ajuda ocidental aumenta com muita força

Nesta opção, imaginamos que o Ocidente decida dotar a Ucrânia dos meios militares que lhe permitam realmente repelir o exército russo. Isto implica que o exército ucraniano se coloque primeiro numa posição defensiva, e tempo para treinar e equipar no estrangeiro 300.000 a 500.000 novos soldados que não serão retirados da frente, mas serão novos recrutas. Mas o exército também terá de continuar a mobilizar-se para compensar suas perdas. Será, portanto, necessário um duplo esforço de recrutamento: encontrar os novos combatentes e compensar as perdas para manter as linhas. Isto também exigirá que os ocidentais não só continuem a fornecer armas e munições à Ucrânia, mas também que encontrem recursos para equipar totalmente os novos recrutas.

Neste cenário, a criação deste novo exército terá que ser feita de forma mais racional, padronizando ao máximo os equipamentos (hoje os ucranianos utilizam 19 modelos diferentes de peças de artilharia) de forma a facilitar o treinamento, a manutenção e as cadeias de abastecimento. Isto resultará no fornecimento, em número, de um ou dois modelos de tanques, peças de artilharia, veículos de combate de infantaria… modernos. Por “moderno” entendemos equipamento militar que tem no máximo trinta anos ou que foi modernizado há menos de 30 anos. Mas também será necessário criar uma força aérea com não algumas dezenas de F-16 – os mais antigos dos quais têm quase 50 anos – mas pelo menos 200 aviões de combate verdadeiramente modernos (EF-2000, Rafale, F-16 Block 50 no mínimo, Gripen, F-18E, etc.).

Um exército tão totalmente equipado e treinado que chegasse no terreno seria, pela primeira vez, uma verdadeira mudança de jogo, agora que se admite que nenhum míssil, avião ou tanque milagroso é, por si só, capaz de modificar a proporção de forças. Isto representaria enormes problemas para as tropas russas, que teriam grande dificuldade em lidar com este influxo maciço associado a um nível tático muito melhorado. É difícil dizer se isso seria suficiente para retomar militarmente todos os territórios conquistados pela Rússia, que agora está ali bem entrincheirada. Durante esse período, a Rússia também aproveitaria a oportunidade para se fortalecer, mas isso colocaria o governo ucraniano em uma posição muito melhor para negociações, especialmente porque as perspectivas de sucesso russo seriam grandemente diminuídas.

No entanto, tal esquema está sujeito a inúmeras restrições. A principal delas é a do tempo: a duração necessária para criar e equipar tal exército é estimada em cinco anos. Isto seria ainda mais verdadeiro para a Força Aérea, uma vez que recrutas sem qualquer experiência de pilotagem teriam de ser treinados de A até Z. A qualidade do treinamento é extremamente importante: não adianta fornecer equipamentos de última geração se os usuários não souberem utilizá-los corretamente. É também necessário continuar o apoio com armas e munições durante estes cinco anos, fornecendo simultaneamente o equipamento e as munições necessários para este novo exército.

Isto exigirá que os países ocidentais, durante um longo período, façam um esforço orçamentário e industrial extremamente significativo, que terá que se basear em uma vontade política poderosa e duradoura de apoiar a Ucrânia. Existe também um risco geopolítico, uma vez que tal esforço provavelmente desviaria as capacidades fiscais, industriais e militares dos países envolvidos, tornando-os mais vulneráveis ​​no caso de eclodir outra crise internacional. Já estamos vendo os riscos com o Oriente Médio, onde os Estados Unidos devem “compartilhar” sua ajuda militar entre Israel e a Ucrânia. Coloca-se também a questão de saber se a população ucraniana será capaz de aceitar mais alguns anos de sacrifícios, mesmo que este cenário ofereça esperanças reais de vitória militar.

Este cenário não é, neste momento, claramente o mais provável, ainda que seja o que permitiria ao governo ucraniano aproximar-se mais de seus objetivos políticos.


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Cenário 2: A ajuda ocidental mantém aproximadamente no mesmo nível

A ajuda ocidental é mantida ao longo do tempo, sem qualquer declínio importante. Isto permite ao exército ucraniano manter aproximadamente o mesmo formato, desde que possa recrutar para compensar as perdas. Isto continuará, sem dúvida, a ser insuficiente para penetrar de forma duradoura e significativa nas linhas russas. Nesta hipótese, o conflito se prolongará, aumentando o risco político interno na Ucrânia. Na verdade, até que ponto será aceitável uma guerra de longo prazo sem perspectivas claras de vitória?

Além disso, a posição ucraniana nas negociações não será melhorada porque tudo se baseia na esperança de ver a Rússia entrar em colapso. Na verdade, seu colapso político ou econômico sob efeito das sanções e do peso da guerra, provavelmente criaria condições de negociação mais favoráveis ​​para a Ucrânia.

A realização dos objetivos políticos da Ucrânia não depende, portanto, de seus próprios recursos, mas da capacidade de resistência da Rússia. Se o colapso econômico e/ou político russo continuar a ser uma possibilidade amplamente discutida, ou mesmo prevista por alguns, é claro que isso ainda não aconteceu e que não há garantia de que acontecerá.

Este cenário também implica que os países ocidentais façam um esforço substancial para produzir mais armas e munições porque parece que os estoques disponíveis foram em grande parte esvaziados. No entanto, até à data, apesar de alguns anúncios, as possibilidades de aumento da produção industrial militar permanecem modestas e é possível que esta ajuda tenha dificuldade em manter o mesmo nível. Portanto, mesmo este cenário tem, neste momento, uma probabilidade média de se concretizar.

Cenário 3: A ajuda ocidental se encerra ou diminui fortemente

Esta é a hipótese que hoje se apresenta cada vez mais provável e que certamente não favorecerá a posição ucraniana nas futuras negociações que um dia inevitavelmente se abrirão.

É óbvio que esta situação irá privar rapidamente a Ucrânia, dentro de algumas semanas ou meses, de qualquer capacidade ofensiva. Não haverá mais qualquer questão de romper as linhas russas. Tudo o que o exército ucraniano pode fazer será manter a linha da frente tanto quanto possível e retardar ao máximo qualquer avanço russo, tornando-o tão dispendioso quanto possível em termos de homens e equipamento. Se o exército ucraniano aplicar técnicas de guerra de guerrilha e guerra assimétrica atrás das linhas russas, poderá tornar impossível à Rússia avançar e manter o terreno a longo prazo. No entanto, se a Rússia decidir permanecer numa posição defensiva, isso irá congelar a frente permanentemente e confirmará mais ou menos oficialmente seus ganhos territoriais.

Deve-se notar que, mesmo neste caso, a conquista militar completa da Ucrânia pela Rússia continua altamente improvável, salvo o muito hipotético colapso completo do regime ucraniano. A Rússia não tem meios humanos nem materiais para conquistar e, acima de tudo, manter tal território.

Também aqui a esperança ucraniana residirá apenas, como no cenário anterior, num hipotético colapso russo.

* * * * *

A guerra é apenas um modo de ação destinado a produzir as condições políticas desejadas. Ao querer continuar o conflito, o presidente Zelensky aposta que, a longo prazo, estas condições irão melhorar e permitir-lhe alcançar seus objetivos políticos. Esta estratégia é arriscada porque, em nenhum dos cenários, a Ucrânia está verdadeiramente no controle de seu destino. Isto se baseia tanto na boa vontade dos ocidentais como na esperança de ver a Rússia entrar em colapso, dois parâmetros sobre os quais o presidente ucraniano tem (muito) pouco controle.

Um oponente de Zelensky propõe conceder à Rússia os territórios que conquistou em benefício da adesão à OTAN. Isto garantiria novas fronteiras a uma Ucrânia, certamente reduzida, mas que continuaria a existir no campo ocidental. É difícil dizer se a Rússia poderá ficar satisfeita com este compromisso, uma vez que a adesão da Ucrânia à OTAN é, sem dúvida, o ponto a que a Rússia mais se opõe. No entanto, dadas as suas perdas significativas (esta guerra já lhe custou caro), os territórios conquistados poderiam ser apresentados pelas autoridades russas como um “gelo” protetor que serviria para repelir a OTAN, oferecendo-lhes assim uma saída honrosa. Não é certo que tal proposta seja realmente melhor do que a que foi negociada em março de 2022.

O maior risco para a Ucrânia, à medida que a guerra se arrasta, é que as condições de negociação se tornem cada vez menos favoráveis. Ao interromper as negociações em março de 2022, a Ucrânia pode ter perdido a oportunidade de sair desta guerra sem muitos danos e mantendo praticamente todos os seus territórios, exceto a Crimeia. O futuro dirá se a aposta do presidente Zelensky valeu a pena ou se a história o fará pagar pelo sacrifício do seu povo por um objetivo que permaneceu fora de alcance.


Publicado no Cf2R.

*Olivier Dujardin é pesquisador associado do Cf2R (Centre Français de Recherche sur le Renseignement), chefe da seção de tecnologias e armamentos e consultor independente. Ele tem mais de 20 anos de experiência em guerra eletrônica, processamento de sinais de radar e análise de sistemas de armas. Ocupou cargos operacionais em guerra eletrônica, no estudo de sistemas de radar, guerra eletrônica e análise e coleta de sinais eletromagnéticos. Ele também ocupou o cargo de especialista técnico em sistemas de coleta SIGINT.

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1 comentário

  1. Não creio que qualquer proposta que implique uma Ucrânia na Otan possa ser aceitável para os Russos.
    Pois afinal todo prejuízo que Moscou assumiu e irá arcar tem como objetivo não ter a Otan em território Ucraniano que sempre foi um corredor de acesso ao coração de Moscou.
    Deste modo a Ucrânia deveria fazer o obvio, reconhecer seu status quo ( a semelhança de Cuba) que não lhe permite ser aliada ou aceitar tropas militares estrangeiras em seu território), reconhecer a Criméia como território russo (algo que sempre foi) aceitar as perdas territoriais (pois Moscou na verdade não tem como voltar atrás e devolver elas a Kiev) e exigir como contrapartida Ok para fazer parte da UE e seguir a vida dela. Seria um desastre politico para o governo Ucraniano, mas não para a nação Ucraniana dada as circunstâncias…

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