O FSB assombrou a CIA no golpe de Prigozhin

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Yevgeny Prigozhin em São Petersburgo em 2016 (Mikhail Svetlov/Getty Images).

Por M. K. Bhadrakumar*

Yevgeny Prigozhin em São Petersburgo em 2016 (Mikhail Svetlov/Getty Images).

Claramente, os serviços de inteligência russos frustraram o motim de Prigozhin; ora, é apenas natural que a inteligência russa monitore o Grupo Wagner o tempo todo.


A CNN, seguida pelo New York Times, divulgou no domingo a história de que os EUA e a inteligência ocidental estavam realmente cientes da tentativa fracassada de golpe na noite de sexta-feira por Yevgeny Prigozhin, chefe do Grupo Wagner de empreiteiros militares russos, “há bastante tempo e fazendo os preparativos para tal movimento, inclusive reunindo armas e munições”.

O que não sabemos é em que ponto a inteligência russa ficou sabendo disso. O Kremlin agiu com força, decisão e previsão em tempo real para acabar com a tentativa de golpe em poucas horas. Na noite de sábado, o chefe da inteligência estrangeira, Sergey Naryshkin, anunciou que a tentativa de golpe havia falhado. As autoridades russas estavam esperando que Prigozhin fizesse sua jogada.

É apenas natural que a inteligência russa tenha mantido uma forte presença dentro da casa da Wagner o tempo todo. Ora, é uma zona de guerra onde o destino da Rússia está em jogo. A letra da famosa música da banda The Police vem à mente: “Every breath you take / And every move you make / Every bond you break / Every step you take / I’ll be watching you…” (“Cada vez que você respira / E cada movimento que você faz / Cada laço que você rompe / Cada passo que você dá / Eu estarei te observando…”).

E o coro canta: “Oh, can’t you see / You belong to me? / How my poor heart aches / With every step you take…” (“Oh, você não vê / Você pertence a mim? / Como dói meu pobre coração / A cada passo que você dá…”).

Assim como a CIA ou a maioria das organizações de inteligência fazem, o FSB também psicanalisa as observações de seus alvos em busca de significados profundos. Eles fazem isso rotineiramente e têm analistas treinados que fazem apenas isso.

Não teria escapado à atenção dos analistas de inteligência russos que os discursos e delírios de Prigozhin em Donetsk no último outono e inverno começaram originalmente nos aspectos operacionais da frente de guerra de Bakhmut no oblast de Donetsk, mas aos poucos começaram a adquirir conotações políticas, culminando finalmente em sua incrível declaração de que toda a razão de ser da operação militar especial na Ucrânia desde fevereiro de 2022 era bobagem.

Ainda mais estranhamente, esse homem que testemunhou fisicamente a Batalha de Bakhmut chegou à bizarra conclusão de que Kiev ou a OTAN não tinham intenções de má-fé em relação a Donbass ou à Rússia.

Portanto, o que é de conhecimento comum aqui é que a inteligência russa tinha instruções para estar em “modo de escuta”, deixar a coisa fluir livremente na Batalha de Bakhmut, onde o Wagner estava no banco do motorista (curiosamente, porém, em algum momento, para grande aborrecimento de Prigozhin, Moscou também começou a implantar tropas regulares seletivamente na frente de Bakhmut ao lado dos combatentes Wagner).

No sábado, altos funcionários da inteligência dos EUA entraram em ação para informar a mídia quando se soube que as autoridades russas estavam literalmente esperando com um roteiro pronto para esmagar a tentativa de golpe de Prigozhin. Até a milícia chechena foi colocada em prontidão.

O elemento crucial no acordo fechado com Prigozhin é que ele não será processado, mas simplesmente se perderá. E onde mais no planeta Terra seu exílio poderia ser melhor organizado do que na Bielorrússia, sob os olhos benevolentes do presidente Alexander Lukashenko?

Agora, podemos saber em algum momento por Lukashenko, que se esforça para manter segredos por muito tempo, sobre quando exatamente Putin teria confiado nele com base na “necessidade de saber”. É difícil acreditar que um acordo tão complexo tenha sido possível em poucas horas por meio de negociações tortuosas de três vias entre Moscou, Minsk e Rostov-on-Don, mesmo quando a coluna renegada do Wagner se aproximava de Moscou.

Uma subtrama intrigante aqui é que em meio a todo esse tráfego pesado, Lukashenko também negociou com Nursultan Nazarbayev, o ex-ditador cazaque que chefiou um regime pró-ocidente em Astana e foi deposto do poder depois de reinar por quase três décadas, após o fracasso de uma tentativa semelhante de golpe apoiada pelos EUA como a de Prigozhin no inverno de 2021-2022, que também foi esmagada com a ajuda das forças da CSTO (tropas russas) lideradas por um general russo.

No dia anterior, de fato, Putin havia falado com dois líderes da Ásia Central – o presidente cazaque Kassym-Jomart Tokayev e o presidente uzbeque Shavkat Miromonovich Mirziyoyev. Ele compartilhou alguma informação crucial? Na verdade, esses dois países têm enfrentado ultimamente conspirações ocidentais para mudança de regime. A propósito, dadas as preocupações de Moscou na Ucrânia, o presidente chinês Xi Jinping assumiu um papel ativo para consolidar a estabilidade e a segurança da região da Ásia Central.


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Claramente, algo estava seriamente acontecendo no Cazaquistão, que fica entre a Rússia e a China e é a peça imobiliária mais importante em termos geopolíticos na Ásia Central.

Com toda a probabilidade, foi a isso que o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, aludiu quando disse à ABC no domingo que a situação com a tentativa de golpe na Rússia “ainda está se desenvolvendo… Não quero especular, e não acho que vimos o episódio final.” Dito isto, no entanto, Blinken acumula um recorde consistente em estar terrivelmente errado em suas avaliações sobre a Rússia – a partir do golpe mortal que as “sanções do inferno” deveriam dar à economia russa; a permanência de Putin no poder; a derrota catastrófica da Rússia na Ucrânia; as deficiências militares russas; A vitória militar inexorável de Kiev; e assim por diante.

Nesse caso, ele tem motivos para se sentir amargurado, principalmente por causa da unidade espetacular do Estado russo, da elite política, da mídia, da burocracia regional e federal e do establishment militar e de segurança em apoiar Putin. Indiscutivelmente, a estatura política de Putin agora é incontestável e inatacável na Rússia e os americanos terão que conviver com essa realidade muito depois da saída de cena de Joe Biden.

Daqui para frente

O Kremlin adotou uma estratégia muito ponderada. A partir dos detalhes disponíveis até agora, ele possui os cinco elementos-chave a seguir:

  • Principalmente, a prioridade é evitar derramamento de sangue para que a vida siga e se mantenha o foco na guerra na Ucrânia, que está em um ponto crítico;
  • Em termos imediatos, fazer com que os poucos combatentes renegados do Grupo Wagner e Prigozhin deixem Rostov-on-Don e retornem a seus acampamentos em Lugansk;
  • Manter Prigozhin clinicamente separado do restante do Grupo Wagner (na verdade, nem um único comandante ou oficial do Wagner se juntou à sua revolta);
  • Oferecer imunidade ao grosso do Grupo Wagner – exceto os golpistas, claro – e facilitar sua integração formal ao Ministério da Defesa. Ou seja, a lógica por trás da criação do Grupo Wagner pelo Ministério da Defesa (e uma agência secreta de segurança interna não identificada) ainda é válida, mas não será mais uma força quase estatal, contudo terá moradia e sobrenome e será liderada por comandantes militares profissionais designados, em vez de caçadores de fortunas livres como Prigozhin);
  • Conseguir que Prigozhin partisse para a Bielorrússia, o que não foi difícil quando ele percebeu que deveria pedir misericórdia a ninguém menos que Vladimir Putin (que concordou com a passagem segura do oligarca para a Bielorrússia).

O último elemento é absolutamente fascinante. O Kremlin está extremamente irritado com Prigozhin por seu comportamento sedicioso, mas também está ciente – presumivelmente com base em informações de inteligência – de que ele foi manipulado pelas potências ocidentais. Claro, haverá um preço a pagar. Prigozhin nunca recuperará sua alta estatura como oligarca com uma fortuna pessoal de US$ 1,2 bilhão ou o fabuloso estilo de vida que levava.

Mas, pelo menos, o oligarca de 62 anos é poupado de uma possível pena de prisão de 20 anos. Isso é compatível com a maneira como Putin lida com os oligarcas em geral.

Não se engane, Lukashenko acabará fazendo Prigozhin cantar – mais cedo ou mais tarde – e a música será transmitida ao vivo para o Kremlin. E isso explica o grande nervosismo em Washington, que levantou o espectro da guerra nuclear, etc., para desviar a atenção da conspiração da CIA para desestabilizar a Rússia. O irreprimível ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, chama isso de “fluxo turbulento de consciência”.

Certamente, agora que a conspiração CIA-MI6-Prigozhin fracassou, de seus escombros nascerão novas narrativas ocidentais, como uma Fênix das cinzas. E as células adormecidas dos EUA no exterior, inclusive na mídia brasileira, repetirão essa narrativa.

Mas não por muito tempo. Pois o que está por vir é a manifestação da determinação de aço do Kremlin – e do próprio Putin – de buscar uma solução militar total para a crise na Ucrânia. Putin declarou na semana passada – provavelmente em antecipação à tempestade que se aproxima – que a guerra terminará quando nenhum exército ucraniano for deixado no campo de batalha, ou armas da OTAN.

Leia a transcrição oficial de uma videoconferência realizada por Putin na última quinta-feira, logo antes da tentativa de golpe de Prigozhin, com o quórum completo do Conselho de Segurança (o “Politburo” da Rússia pós-soviética), que dá uma ideia do clima no Kremlin e fornecerá algumas pistas sobre o que esperar nos campos de batalha da Ucrânia daqui para frente. É um grande sinal antecipado para o “Ocidente Coletivo” de que nada será esquecido.


Publicado no Indian Punchline.


*M. K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira por 30 anos no Serviço de Relações Exteriores da Índia. Serviu na embaixada da Índia em Moscou em diversas funções e atuou na Divisão Irã- Paquistão-Afeganistão e na Unidade da Caxemira do Ministério das Relações Exteriores da Índia. Ocupou cargos nas missões indianas em Bonn, Colombo, Seul, Kuwait e Cabul; foi alto comissário interino adjunto em Islamabad e embaixador na Turquia e no Uzbequistão.

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5 comentários

    1. Augusto, nós é que agradecemos pela leitura. Grato pelo comentário!
      Forte abraço,
      Albert.

  1. Excelente artigo. Como é bom ler notícias claras e não enviesadas. Parabéns ao Velho General. Meu melhor investimento esse ano. kkkkk

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