A Nova Cortina de Ferro: Do Legado de Cheney ao Crepúsculo da OTAN

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Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial


A morte de Dick Cheney encerra um ciclo geopolítico; ele, Brzezinski e Nuland moldaram a política externa dos EUA para o “século americano”, mas a renúncia de Nuland e a nova era Trump sinalizam o possível fim dessa doutrina.

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Introdução: A Morte do Engenheiro do Século Americano

Dick Cheney morreu aos 84 anos, em 3 de novembro de 2025, na cidade de Wilson, Wyoming, por complicações de pneumonia e doenças cardíacas. Com ele, encerra-se mais do que uma biografia política: encerra-se um ciclo geopolítico que moldou a política externa dos Estados Unidos por mais de três décadas. De arquiteto da Guerra do Golfo a vice-presidente durante os ataques de 11 de setembro, Cheney foi o engenheiro estratégico e executor silencioso de uma doutrina que visava consolidar o chamado “século americano”: uma era de hegemonia global sustentada por alianças militares, intervenções estratégicas e expansão territorial indireta.

Sua influência não se limitou ao período em que ocupou cargos públicos. Ela se estendeu por meio de figuras como Victoria Nuland, sua indicada para a embaixada dos EUA na OTAN em 2005, que viria a desempenhar papel central na reconfiguração do Leste Europeu e na contenção da Rússia.

Hoje, no entanto, o legado de Cheney parece vacilar. A renúncia de Nuland ao Departamento de Estado em 2024, somada à ascensão de uma nova administração Trump em 2025, sinaliza uma inflexão estratégica. A expansão da OTAN, que por décadas avançou em direção ao leste, encontra agora resistência interna e externa. O projeto geopolítico iniciado por Brzezinski, operacionalizado por Cheney e sustentado por Nuland, dá sinais de esgotamento.

Este artigo se propõe a revisitar essa trajetória, da gênese, na inserção nos ciclos de poder da Casa Branca, da teórica à prática diplomática, para entender se estamos diante do fim de uma doutrina ou apenas de sua metamorfose.

O Legado Estratégico de Cheney

Dick Cheney construiu sua reputação como um dos mais influentes estrategistas da política externa americana ao longo da virada do século XX para o XXI. Sua trajetória começou nos bastidores do poder executivo, mas ganhou projeção internacional quando assumiu o cargo de secretário de Defesa durante o governo George H. W. Bush. Foi nesse posto que chefiou o Pentágono durante a operação Tempestade no Deserto, em 1991, durante a Guerra do Golfo, que constituiu uma campanha militar que não apenas expulsou as tropas de Saddam Hussein do Kuwait, mas também reafirmou a capacidade dos Estados Unidos de projetar força com precisão cirúrgica no Oriente Médio.

Mais tarde, como vice-presidente de George W. Bush entre 2001 e 2009, Cheney se tornou o principal arquiteto da resposta americana aos ataques de 11 de setembro. Sob sua influência, os EUA invadiram o Afeganistão e o Iraque, inaugurando uma era de guerras preventivas e mudanças de regime. Sua visão de mundo era clara: os Estados Unidos deveriam manter sua supremacia global por meio da força, da intimidação estratégica e da reconfiguração de alianças. Para Cheney, a hegemonia americana não era apenas desejável, ela era necessária para garantir a ordem internacional.

Essa doutrina, que ficou conhecida como o projeto do “século americano”, tinha como pilares a expansão militar, o controle de zonas geopolíticas críticas e a disseminação de valores liberais ocidentais por meio da força. Cheney não apenas acreditava nessa visão, como a executou com precisão. Sua influência moldou a arquitetura de segurança global, redesenhou o mapa do Oriente Médio e reposicionou a OTAN como instrumento de contenção e expansão. Mais do que um vice-presidente, Cheney foi o executor de uma doutrina que buscava garantir que o século XXI fosse, incontestavelmente, americano.

Brzezinski e a Gênese da Doutrina Eurasiática

Zbigniew Brzezinski foi o arquiteto intelectual da geoestratégia americana para o pós-Guerra Fria. Em seu artigo A Geoestratégia para a Eurásia, publicado na Foreign Affairs em setembro/outubro de 1997, ele delineou com clareza a lógica que deveria guiar os Estados Unidos na nova ordem mundial: manter a primazia global por meio do controle da Eurásia, impedindo o surgimento de qualquer potência regional capaz de desafiar Washington. Para Brzezinski, a Eurásia era o “tabuleiro de xadrez” onde se travaria a luta pela supremacia planetária — e os Estados Unidos deveriam jogar com agressividade e visão estratégica.

Entre suas propostas mais contundentes estava a expansão da OTAN para o leste europeu, como forma de consolidar a influência americana sobre os antigos satélites soviéticos. Mas sua ambição ia além da integração: Brzezinski sugeria que a Federação Russa deveria ser enfraquecida e, idealmente, fragmentada, para impedir que voltasse a exercer hegemonia sobre sua antiga esfera de influência. Uma Rússia dividida em unidades regionais autônomas, economicamente vulneráveis e politicamente instáveis seria mais facilmente neutralizada como ameaça estratégica.

O que torna essa doutrina ainda mais notável é sua transversalidade política. Embora Brzezinski fosse um democrata realista, sua estratégia foi abraçada por Cheney, um republicano intervencionista e linha-dura, que a transformou em ação concreta durante os governos Bush. Essa convergência deu origem a uma estratégia bipartidária, que atravessou administrações de diferentes espectros ideológicos: de Bush filho a Obama, e depois Biden. A expansão da OTAN, o envolvimento direto no Oriente Médio e o apoio a movimentos pró-ocidentais em ex-repúblicas soviéticas foram expressões práticas dessa doutrina, mantidas com poucas variações ao longo de quase três décadas.

Se Brzezinski foi o estrategista, Cheney foi o arquiteto dessa estratégia. Ao conectar os dois, vemos a transição da formulação intelectual à ação geopolítica. A geoestratégia da Eurásia deixou de ser uma hipótese acadêmica e tornou-se política de Estado, sustentada por democratas e republicanos, com consequências que ainda reverberam nas fronteiras da Europa e nas tensões entre Washington e Moscou.

Victoria Nuland e a OTAN Como Instrumento

Em 2005, Victoria Nuland foi nomeada por Cheney como embaixadora dos Estados Unidos junto à OTAN. A cerimônia, realizada na Casa Branca e presidida pelo próprio vice-presidente, marcou mais do que uma nomeação diplomática: foi o momento em que a doutrina eurasiática passou da formulação estratégica para sua fase institucional. Se Brzezinski foi o estrategista e Cheney o arquiteto da estratégia, Nuland seria a engenheira de campo, aquela que, longe dos holofotes, ajustava engrenagens, conectava alianças e mantinha o motor geopolítico funcionando.

Durante sua gestão, a OTAN intensificou sua presença no Leste Europeu, integrando países como Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia e Bulgária. Nuland não apenas operacionalizou essa expansão, como também cultivou redes diplomáticas e militares que garantiram a continuidade da doutrina, mesmo sob administrações democratas. Sua habilidade estava em transformar estratégia em rotina: reuniões, acordos, treinamentos, visitas técnicas, tudo abaixo do radar, mas com impacto duradouro.

Sua atuação mais visível veio em 2014, durante a crise na Ucrânia. Nuland foi figura central na articulação política que levou à queda do governo de Viktor Yanukovych. Ela distribuiu apoio logístico e político aos manifestantes da Praça Maidan, participou da formação do novo governo e garantiu que Kiev se mantivesse alinhada ao eixo atlântico. Foi ali que sua atuação deixou de ser discreta: ela se tornou a arquiteta da contenção russa no campo de batalha diplomático.

Nos anos seguintes, como subsecretária de Estado, Nuland manteve a Ucrânia como prioridade estratégica, promovendo sanções contra Moscou, fornecendo assistência militar e pressionando por reformas que aproximassem o país da OTAN. Retornou ao Departamento de Estado sob Biden, onde permaneceu até 2024, quando pediu demissão em meio ao desgaste da estratégia atlântica.

Nuland não criou a doutrina, nem a impôs com força bruta, mas foi quem a manteve viva, adaptada e funcional. Sem ela, a nova cortina de ferro talvez não tivesse resistido tanto tempo.


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The Grand Chessboard: American primacy and its geostrategic imperatives

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A Nova Cortina de Ferro

Desde o colapso da União Soviética, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) deixou de ser apenas uma aliança defensiva e passou a atuar como instrumento de contenção geopolítica, especialmente contra a Rússia. A expansão da aliança para o Leste Europeu, incorporando ex-membros do Pacto de Varsóvia e repúblicas soviéticas, redesenhou o mapa estratégico da região, criando uma nova fronteira ideológica e militar. Essa linha de contenção não se materializou com blindados, mas com bases militares, acordos bilaterais e interoperabilidade tática.

Três eventos foram cruciais para consolidar essa divisão:

• Geórgia (2008): O conflito na Ossétia do Sul marcou o primeiro choque direto entre a Rússia e um país que buscava aproximação com a OTAN. A ofensiva russa impediu a adesão georgiana à aliança e resultou no reconhecimento unilateral das regiões separatistas pela Rússia.

• Crimeia (2014): Após a queda do governo pró-russo em Kiev, Moscou anexou a península da Crimeia, alegando proteger seus cidadãos e interesses estratégicos no Mar Negro. A resposta ocidental foi imediata: sanções econômicas, reforço das bases da OTAN na Romênia e Polônia, e apoio militar à Ucrânia.

• Ucrânia (2022): A invasão em larga escala pela Rússia consolidou a nova cortina de ferro. A OTAN não interveio diretamente, mas ampliou sua presença em países fronteiriços, como Estônia, Letônia, Lituânia e Eslováquia. A guerra transformou a Ucrânia em um bastião informal da aliança, com fornecimento de armas, treinamento e inteligência

Essa nova divisão geopolítica se consolidou por meio de:

• Bases militares permanentes em países como Romênia, Polônia, Bulgária e Letônia, com tropas rotativas americanas, francesas e britânicas.

• Tratados de defesa mútua e interoperabilidade, que permitem resposta rápida em caso de agressão.

• Sanções econômicas e diplomáticas coordenadas, que isolam Moscou e reforçam a coesão atlântica.

A cortina de ferro do século XXI não é feita de concreto e arame farpado, mas de infraestrutura militar, redes de inteligência e alinhamento estratégico. Ela separa não apenas territórios, mas visões de mundo, e permanece como o principal eixo de tensão entre Washington e Moscou.

O Crepúsculo: Demissão de Nuland e a Virada Trump

Em março de 2024, Victoria Nuland anunciou sua saída do Departamento de Estado, encerrando uma trajetória de quase duas décadas como principal gestora da estratégia atlântica. A diplomata, que havia sido nomeada por Cheney em 2005 e retornado ao governo sob Biden, deixou o cargo de subsecretária de Estado para Assuntos Políticos em meio a sinais de desgaste da doutrina que ajudou a construir. Sua renúncia foi interpretada por analistas como um marco simbólico do esgotamento da estratégia de contenção da Rússia, uma estratégia que, após a espiral da crise ter levado à conflito armados, particularmente na Geórgia e na Ucrânia, parecia ter atingido seus limites.

O cenário se transformou radicalmente com a posse de Donald Trump em janeiro de 2025. Em seu segundo mandato, o presidente intensificou sua crítica à OTAN, questionando os custos da aliança e sugerindo que os Estados Unidos deveriam se concentrar em seus próprios interesses domésticos e comerciais. A retórica de Trump, agora respaldada por uma equipe mais alinhada ao isolacionismo, promoveu uma retração estratégica: redução de tropas em bases europeias, revisão de acordos bilaterais e suspensão de iniciativas de expansão atlântica.

Essa virada representa uma ruptura com o ciclo iniciado por Cheney. A doutrina do “século americano”, que buscava consolidar a hegemonia global por meio da presença militar e diplomática na Eurásia, dá lugar a uma lógica de contenção interna e negociação direta com adversários. A nova administração não apenas desacelera a máquina geopolítica construída por Brzezinski, Cheney e Nuland, ela questiona sua própria validade.

O crepúsculo da doutrina construída por Brzezinski e Cheney não é apenas institucional, mas simbólico. E a saída de Nuland, a crítica à OTAN e a retração estratégica sugerem que o projeto de hegemonia americana sobre a Eurásia pode ter chegado ao fim ou, ao menos, entrado em uma fase de suspensão. O tabuleiro geopolítico permanece, mas os jogadores mudaram. E talvez, pela primeira vez em décadas, os Estados Unidos estejam dispostos a deixar algumas peças fora do jogo.

Conclusão: O Legado e o Limiar

Dick Cheney e Victoria Nuland deixaram marcas profundas na arquitetura geopolítica do século XXI. Cheney, com sua visão de hegemonia americana sustentada por força militar e alianças estratégicas, foi o arquiteto de uma doutrina que redefiniu o papel dos Estados Unidos no mundo pós-soviético. Nuland, por sua vez, foi a engenheira institucional que manteve essa doutrina viva, ajustando engrenagens, conectando alianças e garantindo sua aplicação sob diferentes governos. Juntos, eles transformaram a teoria de Brzezinski em prática duradoura.

Mas o tempo parece ter começado a corroer os pilares dessa estratégia. A renúncia de Nuland em 2024 e a virada isolacionista da nova administração Trump em 2025 sinalizam que o “século americano” pode estar em declínio. A lógica de expansão atlântica, contenção da Rússia e redesenho da Eurásia dá lugar a uma nova realidade: menos intervenção, mais pragmatismo, e uma crescente desconfiança interna sobre o custo da hegemonia.

Não há tanques americanos cruzando fronteiras — mas há mísseis, drones e blindados da indústria de defesa dos EUA atravessando oceanos e aterrissando em arsenais aliados. E há dúvidas cruzando gabinetes, questionando se essa arquitetura ainda sustenta o “século americano”. A OTAN, antes símbolo de coesão estratégica, enfrenta pressões internas sobre sua relevância e sustentabilidade. A Rússia, embora enfraquecida, permanece resistente. E a Eurásia, longe de estar sob controle, volta a se configurar como um tabuleiro imprevisível.

O legado de Cheney é inegável e o fim de sua era é marcante. Mas estamos, talvez, diante de um limiar: ou assistimos ao fim de uma doutrina que moldou o mundo por três décadas, ou ao início de sua metamorfose. O século americano pode não ter terminado, mas já não é incontestável. E uma cortina de ferro, agora feita de relações multipolares, tecnologias disruptivas e tratados multilaterais, pode estar entrando no palco global, ou quem sabe, transformando-o em algo ainda mais complexo.

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