Arquitetura da Paz no Século XXI: Entre a Utopia e a Realidade

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Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

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Mais que ausência de guerra, a paz exige construção ativa em segurança, desenvolvimento, instituições e reconciliação; Os conflitos modernos evidenciam a fragilidade dessa arquitetura, desafiada pela falta de vontade política e desrespeito às normas.


A paz é muito mais do que a ausência de guerra. É um estado que exige construção ativa, manutenção constante e uma arquitetura complexa. No século XXI, enquanto a humanidade domina tecnologias capazes de feitos extraordinários, a nossa capacidade de construir uma paz duradoura parece cada vez mais frágil. Os conflitos modernos, caracterizados pela sua natureza híbrida, pelo envolvimento de potências por procuração (proxy) e por um desrespeito crescente pelas normas globais, desafiam os próprios fundamentos sobre os quais a paz deve ser erguida.

Para que uma sociedade devastada pela guerra possa reerguer-se de forma sustentável, quatro dimensões interdependentes são cruciais. Se uma delas falhar, toda a estrutura corre o risco de desmoronar:

Segurança Sustentável: Para além de um simples cessar-fogo, é preciso garantir a segurança física da população, desarmar combatentes, neutralizar minas terrestres e estabelecer o monopólio do Estado sobre o uso legítimo da força.

Desenvolvimento Econômico e Social: A reconstrução de infraestruturas deve ser acompanhada pela criação de oportunidades, pelo combate à corrupção endêmica que floresce na guerra e pela restauração de um horizonte de esperança para cidadãos traumatizados.

Legitimidade Política e Institucional: A criação de instituições governamentais funcionais, transparentes e que possuam a confiança da população é vital. Eleições apressadas em sociedades fraturadas, sem uma base institucional sólida, frequentemente servem apenas para legitimar divisões e aprofundar crises.

Reconciliação e Justiça: Talvez a dimensão mais difícil e demorada. Lidar com os traumas coletivos, reconhecer o sofrimento das vítimas, garantir a responsabilização por crimes de guerra e reconstruir a confiança entre comunidades inimigas são passos indispensáveis para quebrar o ciclo de violência.

Recordo-me vividamente das lições do curso sobre o Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) que tive a oportunidade de fazer com a Cruz Vermelha Internacional. Ali, a ideia central que me foi transmitida não era a utopia de proibir a guerra, mas a necessidade pragmática de limitar a sua brutalidade. O DICA, ou Direito Humanitário, existe para isso: proteger civis e infraestruturas essenciais, estabelecer regras para a conduta nas hostilidades e, no fundo, preservar um mínimo de humanidade no meio da barbárie. O desrespeito sistemático por estas regras, que testemunhamos hoje, não é apenas uma tragédia humanitária; é uma tática de guerra deliberada, destinada a tornar a reconciliação futura impossível, envenenando o poço da convivência por gerações.

Ucrânia vs. Rússia: A Geopolítica da Reconstrução

A invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia exemplifica a complexidade dos conflitos modernos. Um futuro processo de paz enfrentará desafios monumentais em todas as dimensões:

Segurança: A paz exigirá garantias de segurança robustas e críveis para a Ucrânia, um desafio geopolítico que envolve diretamente a OTAN e a Rússia. Sem uma dissuasão eficaz contra futuras agressões, qualquer paz será precária.

Desenvolvimento: A escala da destruição exigirá um esforço de reconstrução comparável ao Plano Marshall. Este processo será, inevitavelmente, um campo de batalha econômico, onde a questão sobre quem paga – e a possível utilização de ativos russos congelados – definirá precedentes no direito internacional.

Instituições: Embora as instituições ucranianas tenham demonstrado uma resiliência notável, a pressão da guerra e da futura reconstrução testará ao limite a sua capacidade de combater a corrupção e fortalecer a governança democrática.

Reconciliação: Este é o pilar mais comprometido. As atrocidades documentadas e a profunda hostilidade criada pela guerra de agressão tornam a reconciliação entre os povos ucraniano e russo uma perspectiva extremamente distante. A paz, quando alcançada, arrisca-se a ser uma “paz fria”, mantida pelo equilíbrio de poder, não pela confiança.


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Israel vs. Irã (e seus Proxies): O Conflito em Múltiplas Frentes

O confronto entre Israel, com o apoio dos Estados Unidos, e o eixo liderado pelo Irã (Hamas, Hezbollah, Houthis) representa um desafio diferente: um conflito crônico, assimétrico e disseminado, que desafia a própria noção de um processo de paz linear.

Segurança: A ausência de um campo de batalha definido transforma toda a região em um tabuleiro de xadrez volátil. A segurança para os civis, seja em Israel sob a ameaça de mísseis, seja em Gaza sob bombardeios devastadores, é inexistente. O ciclo de ataque e retaliação é constante e alimenta-se a si mesmo.

Desenvolvimento e Instituições: Em locais como Gaza ou o Líbano, a estratégia de grupos como o Hamas e o Hezbollah de se entrelaçarem com a população civil leva a uma destruição cíclica de infraestruturas. Isso impede qualquer forma de desenvolvimento autônomo e corrói a soberania e a legitimidade das instituições estatais, criando vácuos de poder preenchidos por atores armados.

Reconciliação: O abismo parece intransponível. Décadas de violência, narrativas históricas e religiosas mutuamente exclusivas e um trauma intergeracional criaram um fosso profundo. Cada novo surto de violência serve como justificação para as posições mais radicais, tornando o diálogo quase impossível e a paz uma miragem distante.

Perspectivas de Futuro: Paz num Mundo de Vontade Política Escassa

A arquitetura teórica da paz é clara, mas a sua construção prática no século XXI é sabotada por uma realidade de competição feroz entre grandes potências e pela instrumentalização do caos. A comunidade internacional, outrora vista como mediadora, encontra-se frequentemente paralisada e marginalizada.

O respeito pelo Direito Internacional dos Conflitos Armados permanece como a última barreira contra a barbárie total e a única forma de preservar a possibilidade de um diálogo futuro. A tarefa de construir a paz já não se limita a consertar “Estados falhados”, mas sim a navegar em um sistema global onde o próprio conflito se tornou uma ferramenta central da política externa. Isto exige uma coragem política, uma visão de longo prazo e uma vontade diplomática que, perigosamente, parecem cada vez mais escassas no nosso tempo.


Publicado na CNN Portugal.

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