Por Silvia Boltuc*
As implicações de uma potencial violação da inteligência israelense pelo Irã, obtendo documentos militares e nucleares cruciais.
Este artigo analisa as implicações estratégicas de uma potencial violação significativa no domínio da inteligência israelense, decorrente da alegada obtenção, pelo Irã, de documentos militares e nucleares israelenses altamente sensíveis. Exploramos a evolução da estratégia de inteligência do Irã em meio a um ambiente geopolítico do Oriente Médio em rápida transformação e destacamos os desafios de segurança interna enfrentados por Tel Aviv.
Caso a posse desses documentos por Teerã seja verificada, a violação representará uma das falhas de contrainteligência mais graves da história recente de Israel. O artigo conclui com uma avaliação de risco que descreve as potenciais consequências para a segurança, diplomáticas e operacionais.
Principais Conclusões
• Teerã supostamente infiltrou estruturas de segurança israelenses, obtendo milhares de documentos confidenciais sobre infraestrutura nuclear e militar;
• O Irã recrutou cidadãos israelenses usando mídias sociais e criptomoedas, destacando táticas de HUMINT em evolução e sofisticadas;
• Se autenticadas e divulgadas, as informações obtidas podem sinalizar uma grave falha de contrainteligência de Israel.
Contexto Informativo
O ministro da Inteligência do Irã, Esmail Khatib, afirmou que Teerã apreendeu informações israelenses “estratégicas e sensíveis”, incluindo milhares de páginas de documentos relacionados às instalações nucleares e planos de defesa de Israel. O diplomata afirmou que esses materiais seriam tornados públicos em breve.
Khatib, um clérigo xiita, também afirmou que, entre os documentos apreendidos, alguns pertencem aos Estados Unidos, Europa e outros países. Prisões recentes de israelenses supostamente espionando para Teerã podem corroborar a alegação de que os arquivos foram obtidos por meio de “infiltração” e “acesso a fontes”. De fato, a televisão estatal iraniana noticiou que agentes coletaram informações durante uma operação secreta, incluindo um grande volume de documentos, imagens e vídeos.
Em outubro de 2024, Israel prendeu sete cidadãos israelenses por supostamente conduzirem aproximadamente 600 missões de espionagem ao longo de dois anos. Essas operações teriam envolvido a coleta de informações sobre locais militares sensíveis, incluindo instalações da Força Aérea e da Marinha, portos, locais do sistema Domo de Ferro e infraestrutura energética, como a usina de Hadera.
As autoridades israelenses acusaram os suspeitos, imigrantes judeus do Azerbaijão residentes na região de Haifa, de terem recebido centenas de milhares de dólares, muitas vezes por meio de criptomoedas, de agentes iranianos identificados como “Alkhan” e “Orkhan”. As autoridades israelenses descreveram este caso como uma das violações de segurança mais graves dos últimos anos.
Além disso, em janeiro de 2025, dois soldados israelenses da reserva, Yuri Eliasfov e Georgi Andreyev, foram presos sob suspeita de espionagem para o Irã. Eliasfov, que serviu em uma unidade do Domo de Ferro, supostamente compartilhou informações confidenciais sobre o sistema de defesa aérea com um agente iraniano. Relatos indicam que agentes iranianos recrutaram ambos os indivíduos por meio de redes sociais e os pagaram com criptomoedas.
A emissora estatal que reportou o assunto afirmou que a operação ocorreu recentemente, porém, a cobertura da mídia foi adiada para facilitar a transferência segura da informação sensível. A agência de notícias israelense informou que a informação foi coletada e transferida por Roy Mizrahi e Almog Atias, dois israelenses presos pela polícia israelense em maio sob suspeita de coletar informações para o Irã na cidade de Kfar Ahim, onde reside o ministro da Defesa israelense, Israel Katz.
Cenário Geopolítico
Nos últimos anos, agentes de inteligência iranianos intensificaram os esforços para recrutar israelenses comuns como espiões em troca de dinheiro. Em dezembro de 2024, a polícia prendeu quase 30 israelenses, a maioria cidadãos judeus, por atividades de espionagem em nome do Irã.
A afirmação de Teerã de possuir informações detalhadas sobre as instalações nucleares e a infraestrutura militar de Israel ameaça diretamente a postura central de segurança e dissuasão do país. Se verificada e disseminada, essa inteligência poderá ser explorada pelo Irã e seus representantes para planejar sabotagens, ataques cibernéticos ou ataques direcionados.
A presença de arquivos sobre as relações de Israel com os Estados Unidos, a Europa e outros países potencialmente permite que a República Islâmica utilize esses dados diplomaticamente ou em guerras assimétricas. Em um momento em que populações na Europa, nos Estados Unidos e no Oriente Médio protestam cada vez mais e exigem que seus governos tomem medidas em relação à crise humanitária em Gaza, o apoio diplomático a Israel está diminuindo rapidamente, apesar da ausência de mudanças significativas no apoio militar.
Se Teerã tiver documentos que demonstrem a extensão total do apoio dado a Tel Aviv em sua ofensiva e violações de direitos humanos em Gaza, isso poderá prejudicar seriamente líderes políticos ocidentais importantes, especialmente à medida em que cada vez mais organismos internacionais condenam publicamente essas ações. O Irã poderia usar essas informações para expor países hostis ou influenciar negociações diplomáticas.
As prisões de cidadãos israelenses, notadamente imigrantes do Azerbaijão e soldados da reserva recrutados por meio das mídias sociais, refletem as estratégias de espionagem adaptativa do Irã. A utilização de comunidades da diáspora e a exploração de plataformas de mídia social para recrutamento sinalizam uma mudança da espionagem tradicional para abordagens híbridas que combinam inteligência humana (HUMINT) com exploração cibernética. O uso de criptomoedas para pagamentos indica ainda mais a sofisticação operacional voltada para evitar a detecção financeira.
As violações exporiam vulnerabilidades na contrainteligência israelense, inclusive no que diz respeito à integração e ao monitoramento de comunidades imigrantes. Diante da disparidade no número de crianças per capita entre as comunidades palestina e israelense, a política de resiliência demográfica e necessidade militar de Tel Aviv se baseia no incentivo à migração de colonos de todo o mundo para o país. Embora a inteligência israelense tenha desenvolvido uma vigilância rigorosa de indivíduos palestinos, monitorar as atividades de colonos judeus que chegam do exterior se mostra mais desafiador.
Tel Aviv provavelmente empreenderia amplas reformas de contrainteligência, com foco no monitoramento de mídias sociais, na seleção de imigrantes e no controle mais rigoroso do acesso de militares da reserva a informações confidenciais. Isso pode envolver maior vigilância e penalidades mais severas para espionagem, mas também colocar em risco as questões de liberdades civis internamente.
Embora o cenário geopolítico tenha se acostumado a ataques israelenses dentro do Irã, como aqueles contra cientistas nucleares iranianos e que expuseram as vulnerabilidades de segurança iranianas, a escala e a duração das atividades de espionagem dentro de Israel – supostamente envolvendo centenas de missões ao longo de dois anos – apontam para fragilidades sistêmicas ou pontos cegos na capacidade de Tel Aviv de detectar ameaças internas.
Se esses documentos estiverem de fato em posse de Teerã (atualmente não há evidências que confirmem ou neguem essa possibilidade), o atraso intencional na divulgação à mídia sugere que o Irã está empregando uma estratégia de divulgação em fases, visando maximizar as vantagens operacionais e o impacto psicológico, preservando os esforços de espionagem em andamento, em linha com uma tática mais ampla de informação e guerra psicológica.
Com seu corredor sírio comprometido e o Eixo da Resistência enfraquecido, o Irã pode se adaptar ao cenário atual intensificando suas operações cibernéticas e de HUMINT contra a infraestrutura militar israelense. Essa mudança pode levar Tel Aviv a fortalecer suas defesas cibernéticas e reforçar a supervisão de inteligência, mas também pode aumentar a probabilidade de um ataque preventivo israelense contra ativos nucleares e militares iranianos.
A promessa de Teerã de tornar os documentos públicos visa minar a confiança interna israelense, alimentar a dissidência e sinalizar a resiliência iraniana, apesar da pressão internacional. Se a República Islâmica cumprir a promessa, poderá desencadear consequências políticas em Israel, potencialmente impactando a estabilidade do governo e a confiança pública nas agências de segurança.
O Irã também pode buscar alavancar o acervo de inteligência em negociações diplomáticas regionais. O material relacionado ao Ocidente pode ser usado como ferramenta de barganha ou para reforçar a narrativa de atores não alinhados sobre os padrões duplos ocidentais e as atitudes neocoloniais.
Além disso, é possível que a divulgação dessas informações, sejam elas verdadeiras ou não, não se destine exclusivamente ao público israelense.
Internamente, tal divulgação pode ter como objetivo reforçar a imagem de força e sucesso projetada pela República Islâmica e seu Corpo da Guarda Revolucionária (IRGC), particularmente após reveses significativos, incluindo a eliminação de várias figuras importantes de sua rede regional de representantes e a deterioração de seu relacionamento com a Síria.
No contexto das negociações nucleares, o momento dessa revelação também pode estar ligado ao recente escândalo envolvendo espionagem israelense contra figuras políticas europeias de alto escalão. Se Israel de fato possuir material comprometedor sobre eles, o Irã pode agora possuir ou alegar possuir informações igualmente sensíveis. Essa potencial vantagem poderia servir a Teerã como um trunfo tático no contexto mais amplo da guerra de informação, uma disputa de longa data que também se desenrola entre os ecossistemas midiáticos iraniano e europeu.
Conclusão
Este suposto golpe de inteligência do Irã parece se encaixar perfeitamente no contexto mais amplo da longa guerra paralela entre os dois países, um conflito marcado por ataques cibernéticos, guerra de informação e psicológica, engajamentos via proxies, ataques com drones e operações secretas, incluindo assassinatos e atos de sabotagem.
Notavelmente, o momento desse desenvolvimento coincide com uma ação esperada por nações ocidentais para apresentar uma resolução ao Conselho de Governadores da AIEA, buscando declarar o Irã em descumprimento de suas obrigações sob a estrutura nuclear da ONU. Nesse contexto, as ações de Teerã podem ser interpretadas como uma demonstração calculada de força.
Da perspectiva israelense, o suposto vazamento ressalta as preocupações persistentes com os esforços do Irã para recrutar cidadãos israelenses para espionagem. Teerã demonstrou alta resiliência e capacidade de se adaptar rapidamente às dinâmicas geopolíticas em evolução. Sua postura estratégica continua a favorecer métodos assimétricos de guerra em detrimento do engajamento militar direto, abordagem que contrasta com o apoio cada vez mais veemente do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, a um ataque preventivo contra a infraestrutura nuclear iraniana.
A perspectiva de um confronto direto permanece profundamente preocupante. Embora o Irã ainda esteja supostamente na fase de enriquecimento de urânio, Israel, apesar de sua política de ambiguidade deliberada, continua sendo o único Estado no Oriente Médio conhecido por possuir armas nucleares, adicionando uma camada perigosa de potencial de escalada.
Embora atualmente não haja evidências definitivas de que o Irã possua os supostos documentos, é plausível que Teerã tenha, ao longo dos anos, investido esforços significativos em retaliação à operação israelense de 2018, que expôs mais de 100.000 documentos relacionados ao secreto “Projeto Amad” do Irã.
Publicado no SpecialEurasia.
*Silvia Boltuc é cofundadora e diretora geral da SpecialEurasia. Como especialista em relações internacionais, consultora de negócios e analista política, ela tem apoiado instituições públicas e privadas na tomada de decisões através de relatórios, avaliações de risco e consultoria. Ela também é diretora do Departamento de Energia e Engenharia do CeSEM – Centro Studi Eurasia Mediterraneo e gerente de projetos da Persian Files. Anteriormente, trabalhou como diretora associada na ASRIE Analytica. Ela fala italiano, inglês, alemão, russo e árabe.
Artigo começa e termina com um gigantesco “se”. Pode ser real, pode ser um romance de espionagem. Aguardemos.