Ucrânia: Narrativa e Negociação

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Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

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A guerra na Ucrânia expõe a subestimação ocidental: a mídia previa o colapso russo, mas Moscou adaptou-se, intensificou a produção de armas e prepara-se para um longo conflito, revelando resiliência industrial e estratégica.


A narrativa da guerra na Ucrânia é complexa e caracterizada pela luta de versões opostas. A Rússia, por um lado, apresenta uma história de continuidade histórica e uma ameaça da OTAN às suas fronteiras. A Ucrânia, por outro lado, defende sua independência e identidade nacional, bem como a agressão russa como uma invasão injustificada.

Por mais de três anos, a mídia ocidental tem repetidamente soado o alarme: “A Rússia está ficando sem armas, munições e pessoal.” A Rússia está realmente nas cordas ou o Ocidente subestimou suas capacidades de longo prazo?

Manchetes alertavam sobre o colapso das cadeias de suprimentos, o esgotamento das reservas e tropas forçadas a lutar com equipamentos obsoletos. A narrativa era convincente. A Rússia estava presa na Ucrânia, à beira do colapso.

Mas um olhar mais atento revela uma história diferente. Por trás da fumaça e do barulho, ou Névoa da Guerra 2.0, a Rússia não está apenas mantendo seu esforço de guerra, mas também aumentando silenciosamente a produção de armas e construindo um dos maiores arsenais de mísseis da história recente.

“Nas cordas?”

Então a Rússia está realmente nas cordas ou o Ocidente subestimou suas capacidades a longo prazo?

Desde os primeiros dias da guerra na Ucrânia, a imprensa ocidental pintou um quadro de um Exército russo sobrecarregado e com poucos suprimentos.

Em um artigo de fevereiro de 2025, a Al Jazeera relatou que tropas russas estavam usando burros, motocicletas e até veículos civis para entregar suprimentos às linhas de frente. “Os ataques ucranianos às rotas logísticas e depósitos de munição parecem ter tido consequências”, diziam insistentemente. Outras reportagens destacaram as pesadas perdas de tanques e veículos blindados russos.

Analistas (pouco sérios) apontaram que a Rússia estava cada vez mais dependendo de equipamentos obsoletos da era soviética, retirados do armazenamento e reformados às pressas para compensar as perdas no campo de batalha. Para muitos, essa era a prova de que precisavam.

Adaptação

A Rússia estava ficando sem suprimentos e não tinha força industrial para se recuperar. Mas essa perspectiva pode ter ignorado um fator crítico. A adaptação. Embora a imagem de burros e motocicletas possa capturar a atenção do público, ela não conta toda a história. Ela conta apenas a parte que convém, porque o mesmo artigo da Al Jazeera destaca que a Rússia não só reformou milhares de veículos antigos, como também consegue produzir novos tanques todos os anos.

Isso representa uma produção constante, agora complementada por fornecedores internacionais de seus aliados, Irã e China. O sinal mais claro de que as linhas de suprimento militar da Rússia não estão apenas intactas, mas em expansão, veio em abril de 2025. De acordo com outra fonte, a Rússia acumulou um enorme arsenal de mísseis: mísseis de cruzeiro KH101 e mísseis balísticos Iskander M.

Esses dados não são simbólicos. São estratégicos. O acúmulo de tropas foi grave o suficiente para que a OTAN aumentasse seu nível de alerta em toda a Europa Oriental. Esse arsenal não surgiu da noite para o dia. É o resultado de um esforço concentrado para mobilizar a indústria de defesa russa para uma guerra prolongada.

Enquanto muitos líderes ocidentais supuseram que as sanções prejudicariam a capacidade de Moscou de fazer guerra, a Rússia recorreu à sua estratégia da Guerra Fria. Conforme relata o Responsible Statecraft, a indústria de defesa russa continua a produzir projéteis de artilharia e munições a um ritmo que agora ultrapassa o dos Estados Unidos e seus aliados da OTAN.

Infraestrutura legada

Como isso é possível? A chave está na infraestrutura legada. A Rússia nunca desmantelou completamente sua base industrial da era soviética. Muitas de suas antigas fábricas permaneceram intactas – antigas, mas operacionais. Quando a guerra na Ucrânia começou, essas instalações foram reativadas e reequipadas.

Em contraste, os Estados Unidos e a Europa, tendo reduzido suas indústrias de armamento nos anos pós-Guerra Fria, agora estão lutando para reconstruir suas cadeias de suprimentos do zero.

Ironicamente, enquanto a mídia ocidental zombava do uso de logística semelhante à da Segunda Guerra Mundial pela Rússia, essas mesmas estratégias permitiram que Moscou mantivesse e agora intensificasse seus esforços militares. Esta é uma lição para aqueles que querem destruir nosso sistema de produção de defesa. A Argentina deve fortalecer seu aparato militar-industrial. Há coisas que não podem ser privatizadas! (Nota do Editor: esse comentário é extremamente válido também para o Brasil: basta olhar para o desmantelamento de nossa indústria de defesa – não apenas o caso da Avibrás, por exemplo, que vem se arrastando, mas todo o histórico de Engesa, Bernardini, etc.).


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Em parte… Ilusões

Voltando à guerra na Europa. Então. Por que a narrativa do esgotamento persiste na mídia ocidental? Em parte, são ilusões. Para governos e populações cansados de financiar a defesa da Ucrânia, a ideia de que a Rússia está à beira do colapso é reconfortante. Ajuda a justificar atrasos na ajuda ou mudanças de políticas. Também funciona como guerra psicológica, você acha que eles estão “minando o moral russo enquanto fortalecem a determinação ucraniana”. Ilusão…

De acordo com nossa análise, isso reflete um mal-entendido mais profundo sobre como a Rússia faz a guerra. Analistas ocidentais geralmente esperam vitórias rápidas e de alta tecnologia. A Rússia, por outro lado, aposta no desgaste, resistência e escalada. Não precisa de equipamento novo e reluzente. Precisa de equipamento que funcione e possa ser produzido em grandes quantidades. Tome nota: outra lição para a defesa nacional (Nota do Editor: novamente, comentário válido também para o Brasil).

A ênfase em sinais visuais de fraqueza, como caminhões velhos ou uniformes remendados, desvia a atenção do fato subjacente de que a Rússia continua a produzir, acumular e lutar.

O perigo de se aprofundar demais na narrativa da exaustão é que isso leva a erros de cálculo estratégicos. Se o Ocidente acredita que o esforço de guerra da Rússia é insustentável, ele pode erroneamente assumir que o tempo está do lado da Ucrânia. Mas as tendências atuais sugerem o contrário.

A capacidade da Rússia de manter altos níveis de produção de mísseis, reformar sistemas antigos e continuar as operações de linha de frente demonstra que ela está se preparando para uma longa guerra.

A Ucrânia continua a demandar munição, e a indústria ocidental ainda está lutando para atender à demanda com rapidez suficiente. E se, em vez da Rússia, fosse o Ocidente que ficasse para trás na corrida armamentista?

A narrativa de que a Rússia está ficando sem armas pode ter refletido esperança, mas esperança não é uma estratégia.

A realidade é que a Rússia, longe de entrar em colapso, está caminhando para uma guerra prolongada. Ela tem a base industrial, a vontade política e a paciência estratégica para avançar. Isso não significa que a Rússia seja invencível, mas significa que subestimar suas capacidades é um erro que o Ocidente não pode mais cometer. Se quisermos entender a trajetória desta guerra, é hora de olhar além das manchetes e começar a prestar atenção às cadeias de montagem e fornecimento.

Negociações

Sobre os resultados da reunião de Istambul, Sergey Sysoev nos disse em 19 de maio no The Disagreement: “Uma coisa deve ser lembrada: todos os conflitos têm dois lados, duas posições, dois argumentos, e resolvê-los significa ouvir e compreender.

Sergey nos diz:

Analisando o desenvolvimento das negociações, a pré-história deste evento e as posições de todas as partes envolvidas, podemos tirar algumas conclusões:

1) A disposição das partes em se engajar na diplomacia foi maior do que o esperado. Eles esperavam um escândalo e uma separação, mas isso não aconteceu. Claro, isso não equivale à capacidade de chegar a um acordo (pelo menos nesta fase), mas não há rejeição fatal.

2) O papel fundamental dos Estados Unidos, mais especificamente de Trump. Sinceramente ou não, cada um por suas razões, mas tanto Moscou quanto Kiev consideram necessário mantê-lo como um elemento do processo. Ele tem razão para reivindicar seu próprio sucesso e afirmar que foi ele quem trouxe os oponentes de volta à mesa de negociações. O que está claro é que todas as partes, incluindo a Europa do lado ucraniano, continuarão a lutar pelo apoio de Trump e a conquistá-lo para o seu lado no conflito. Com uma nuance muito importante. Para a Rússia, basta que Trump permaneça como intermediário e como parte não diretamente envolvida no conflito…

3) A Rússia, em geral, impôs seu cenário, apesar das tentativas de outros (Ucrânia, Europa, em parte os Estados Unidos) de impor o seu. As negociações ocorreram conforme Putin anunciou. A Ucrânia se adaptou ao formato e até mesmo formou uma delegação de alto nível. A Europa, com sua ideia de ultimato a Putin, entrou em colapso: ninguém se lembrou da questão do armistício como pré-condição, declarada pelos líderes dos quatro principais países europeus. As exigências da Rússia são consistentes. Na verdade, a mesma coisa foi dita desde o início, com ajustes relacionados à situação no campo de batalha. Acontece que, como disse Putin, a parte principal permanece, e as condições específicas para cada retorno subsequente à discussão serão piores para o oponente.

4) As figuras-chave em todo o processo de resolução do conflito continuam sendo (e até reforçam esse status) Putin e Trump. Todos os outros são de importância decrescente.

5) Foi dado um passo que pode ser visto como bastante notável quando olhamos para o que ficou para trás e é insignificante comparado ao que está à frente. O fim da guerra ainda não está previsto.


Publicado no La Prensa.

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