
Ao avaliar a “Guerra do Futuro” de Slipchenko à luz do conflito russo-ucraniano, suas previsões de guerra sem contato e obsolescência nuclear se confirmaram? Uma análise crítica da guerra informacional, operações multidomínio e o papel ainda crucial da infantaria na era moderna.
Neste artigo analisamos a evolução da guerra moderna à luz das previsões do major-general Vladimir Slipchenko, expostas em sua obra Future War. O autor propôs que os avanços tecnológicos eliminariam o combate corpo a corpo, tornando obsoleta a guerra nuclear e dando primazia ao guerrear informacional.
Entretanto, a guerra russo-ucraniana revela que algumas de suas previsões ainda não se concretizaram. Neste estudo, confrontamos as ideias de Slipchenko com a realidade contemporânea e discutimos sua aplicabilidade ao ambiente de guerra multidomínio. Além disso, apresentamos uma análise crítica de artigos recentes que abordam a doutrina militar russa e o papel da infantaria na guerra moderna.
Introdução
O major-general Vladimir Slipchenko foi um dos principais estrategistas militares russos, propondo uma visão inovadora sobre os conflitos do futuro. Em Future War, ele introduziu o conceito de Guerra Sexta Geração, baseado na ideia de que os avanços tecnológicos reduziriam a necessidade do combate direto, tornando obsoletas as batalhas convencionais.
Slipchenko desenvolveu sua teoria da Guerra Sexta Geração ao longo da década de 1990, ainda sob os reflexos da queda da União Soviética. Um de seus artigos fundamentais sobre o tema foi publicado em outubro de 1993 na revista The Field Artillery, e republicada no Brasil na revista Defesa Nacional (Slipchenko, 1994). Ele refinou essa teoria em estudos posteriores, argumentando que os conflitos futuros seriam dominados por operações sem contato, utilizando munições guiadas de precisão, guerra eletrônica e sistemas de informação avançados.
No presente, entretanto, ao analisar a Guerra Russo-Ucraniana, observamos a crescente importância de avanços tecnológicos, dentre os quais podemos destacar a cibernética, a inteligência artificial, os drones e a computação quântica. Mas também podemos observar que ainda nem todas as previsões de Slipchenko se concretizaram. Seu conceito de guerra sem contato, por exemplo, além de não ter se materializado da forma que ele previu, tem mesmo se intensificado, o que se reflete na quantidade crescente de baixas no campo de batalha. Também podemos citar a ameaça nuclear, que continua sendo um fator determinante nas estratégias de dissuasão, mas não as únicas, como nos revelou o incidente com o emprego do míssil com hipersônico Oreshnik, já utilizados pelos russos em 2024.
O objetivo aqui é revisar criticamente as ideias de Slipchenko, comparando-as com eventos reais e explorando como os conceitos de guerra informacional e operações multidomínio estão sendo aplicados no campo de batalha atual.
Slipchenko serviu como vice-presidente da Academia Russa de Ciências Militares, onde desenvolveu estudos sobre a transição da guerra convencional para conflitos de alta tecnologia. Sua teoria propõe que a guerra moderna é marcada pelo uso intensivo de tecnologias avançadas, que minimizam a necessidade de tropas no campo de batalha.
Uma de suas obras mais importantes foi Future War, onde ele apresenta três pilares fundamentais para a guerra do futuro, as quais analisaremos seguir.
A Guerra de Sexta Geração e Slipchenko
A teoria da Guerra de Sexta Geração, desenvolvida por Vladimir Slipchenko na década de 1990, foi fortemente influenciada pelo contexto geopolítico da época, especialmente pela queda da União Soviética em 1991.
Com o colapso da URSS, a Rússia passou por uma redefinição estratégica, buscando adaptar-se a um novo cenário global onde sua capacidade militar convencional estava enfraquecida. Isso levou teóricos militares, como Slipchenko, a repensar o desenvolvimento das forma de como os conflitos seriam travados no futuro. Algumas influências diretas desse período na formulação de sua teoria incluem:
• Perda da paridade militar com os EUA: Com a dissolução da URSS, a Rússia enfrentou dificuldades econômicas e militares, tornando inviável competir diretamente com o Ocidente em termos de forças convencionais. Isso impulsionou a busca por novas formas de guerra, como o uso de munições guiadas de precisão e guerra eletrônica;
• Guerra do Golfo (1991): O conflito no Oriente Médio demonstrou o poder das armas de precisão e da guerra aérea, algo que Slipchenko incorporou em sua teoria ao prever que a guerra sem contato seria dominante no futuro;
• Necessidade de adaptação tecnológica: Com menos recursos para manter um exército massivo, a Rússia começou a investir em estratégias assimétricas, incluindo guerra informacional e cibernética – elementos centrais na teoria de Slipchenko.
As principais ideias de Future War e e evolução da guerra moderna
Guerra sem contato e o papel da informação
Slipchenko previa que os conflitos futuros seriam cada vez mais baseados em armas de precisão, guerra eletrônica e operações sem contato. No entanto, a realidade dos conflitos modernos demonstra que, embora esses elementos tenham transformado profundamente a maneira de guerrear, eles não eliminaram completamente o combate físico, pois a ocupação territorial ainda depende da presença de tropas.
Além disso, a guerra informacional emergiu como um fator tão decisivo quanto as batalhas convencionais. O controle do espaço informacional, por meio de manipulação narrativa, operações psicológicas e ataques cibernéticos, tornou-se um pilar estratégico da guerra moderna, impactando profundamente percepção pública, moral das tropas e tomada de decisão política.
Dissuasão estratégica ampliada: nuclear e convencional
Slipchenko argumentava que, à medida em que as armas convencionais evoluíssem, elas poderiam reduzir a dependência da dissuasão nuclear, pois novos sistemas de ataque permitiriam atingir objetivos estratégicos sem destruição em massa.
Essa previsão se confirma com o desenvolvimento de estratégias de Anti-acesso e Negação de Área (A2/AD) e mísseis hipersônicos, que hoje desempenham um papel dissuasório comparável ao nuclear em certos cenários. O surgimento de armas como o Oreshnik russo, capaz de impactar profundamente a segurança de adversários sem recorrer ao nuclear, mostra que a dissuasão convencional agora complementa e reforça a lógica da dissuasão nuclear, criando um ambiente estratégico mais flexível e complexo.
Contudo, essa evolução também introduz novos dilemas estratégicos. Se por um lado a dependência da ameaça nuclear explícita pode ser reduzida, por outro, a existência de capacidades convencionais de alto impacto pode expandir os limites do confronto entre potências nucleares, criando zonas cinzentas de escalada militar que não eram tão frequentes na época da Guerra Fria.
O impacto da guerra espacial e a multiplicidade dos domínios de conflito
Um dos pontos mais visionários de Slipchenko foi sua previsão de que a guerra do futuro seria fortemente influenciada pelas operações no espaço.
Hoje, vemos que o controle de satélites, comunicações globais, sistemas de posicionamento e guerra eletrônica espacial são fatores críticos para o sucesso operacional de qualquer força militar. O uso de satélites para vigilância estratégica, bloqueio de comunicações adversárias e orientação de mísseis de precisão reforça que a guerra espacial já se tornou uma realidade, consolidando-se como um novo domínio de batalha essencial.
As potências militares modernas estão desenvolvendo defesas espaciais e capacidades antissatélite, demonstrando que o espaço não é apenas um ambiente de suporte para operações terrestres, mas um campo de batalha autônomo, onde o domínio informacional e a capacidade de projeção estratégica são cruciais para a superioridade militar.
Guerrear informacional
Esta pode ser a previsão de Slipchenko cujos reflexos mais se observam nos dias de hoje. Ele antecipou que a manipulação da informação, guerra cognitiva e ataques cibernéticos moldariam os desfechos dos conflitos, tornando-se tão relevantes quanto as operações militares tradicionais.
Também hoje já se compreende as operações militares sob um contexto multidomínio, onde a obtenção da superioridade na dimensão informacional e no domínio cibernético, constituem um desafio para as Forças Armadas.

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A Guerra Russo-Ucraniana e uma crítica às ideias de Slipchenko
A guerra na Ucrânia fornece um campo de testes real para as teorias de Slipchenko. Algumas de suas previsões não se concretizaram, enquanto outras demonstram sua relevância para os conflitos contemporâneos.
A dissuasão estratégica como um efeito de capacidades nucleares e convencionais avançadas
Sobre o pensamento de Slipchenko no sentido de que ocorreria uma queda na relevância das armas nucleares, observamos o seguinte:
• A dissuasão estratégica hoje não depende exclusivamente das armas nucleares, pois capacidades convencionais avançadas já podem cumprir esse papel em muitos cenários menos críticos;
• Novas tecnologias militares, como os mísseis hipersônicos e as capacidades de A2/AD criam um efeito de dissuasão complementar ao nuclear, ampliando as opções estratégicas para Estados que buscam evitar conflitos diretos;
• Slipchenko estava certo ao prever uma evolução da dissuasão, pois ela se desloca para ferramentas convencionais altamente sofisticadas, reduzindo a necessidade da ameaça nuclear explícita. Ao mesmo tempo em que contribui para reduzir o risco de uma destruição mútua assegurada, também gera um dilema, no qual o limite de confronto entre potências nucleares possa avançar para além do que se verificava na época da guerra fria.
A guerra sem contato ainda é uma utopia
Apesar do uso de drones e munições guiadas, os combates terrestres continuam brutais:
• Tropas e infantaria permanecem essenciais para conquistar e manter território;
• A ocupação física do terreno ainda depende de soldados, pois a tecnologia sozinha não consegue consolidar objetivos estratégicos;
• A guerra sem contato ainda não se materializou como Slipchenko previa.
O guerrear informacional como pilar estratégico
Slipchenko acertou em cheio neste ponto:
• O domínio da informação é essencial para o processo decisório e para a própria vitória nos conflitos modernos;
• A guerra da informação molda os desdobramentos do conflito;
• Ataques cibernéticos, manipulação narrativa e guerra cognitiva são tão relevantes quanto os confrontos físicos;
• O guerrear informacional e o domínio cibernético não são apenas complementares às operações militares, mas são parte essencial da estratégia de guerra moderna.
Revisão crítica de artigos relacionados
Military Strategy in Contemporary Russia: Hybrid, but Violent Way of War, de Koizumi Yu
Este artigo de Koizumi Yu se mostra importante para essa discussão, pois analisa as ideias de Slipchenko sob a ótica da guerra híbrida, mas apresenta fragilidades conceituais que destacaremos a seguir.
Emprego do conceito de Guerra Híbrida
O termo “guerra híbrida” não é oficialmente reconhecido na doutrina russa e não reflete integralmente seu pensamento estratégico.
A ideia de guerra híbrida é comumente utilizada por alguns analistas ocidentais, mas não é um conceito oficialmente reconhecido nem na doutrina russa e nem mesmo nas doutrinas ocidentais mais atuais.
A Rússia opera dentro de um modelo de operações multidomínio, sem encaixar sua estratégia em uma definição específica de guerra híbrida. O artigo parte da premissa de que Moscou conduz um plano híbrido sistemático, ignorando que sua doutrina ainda prioriza operações convencionais e dissuasão nuclear.
Confusão entre conflito no campo político e o warfare (o fazer a guerra)
O artigo estabelece um certa confusão entre o conflito no campo político e a guerra real, particularmente a convencional, sugerindo que a Rússia adota um conceito de guerra híbrida, mesmo fora de conflitos declarados. No entanto:
• O pensamento estratégico russo distingue estratégias de dissuasão (não militares) e estratégias de combate (militares), o que não é devidamente abordado no artigo;
• A narrativa de guerra híbrida imposta por análises ocidentais não corresponde à realidade da doutrina russa;
• A própria Guerra Russo-Ucraniana desmente essa visão do emprego de uma tipologia híbrida da guerra pelos russos, pois os conceitos de Hoffman (principal formulador da teoria da guerra híbrida) não se aplicam.
Neste sentido, o artigo ignora a centralidade da guerra convencional e da dissuasão nuclear na estratégia russa.
O guerrear informacional como pilar estratégico
Slipchenko acertou em cheio neste ponto:
• O domínio da informação é essencial para o processo decisório e para a própria vitória nos conflitos modernos;
• A guerra da informação molda os desdobramentos do conflito;
• Ataques cibernéticos, manipulação narrativa e guerra cognitiva são tão relevantes quanto os confrontos físicos;
• O guerrear informacional e o domínio cibernético não são apenas complementares às operações militares – eles são parte essencial da estratégia de guerra moderna.
A Infantaria e seu papel na guerra moderna, de Alexander Staver
Alexander Staver oferece uma visão tradicional da guerra, enfatizando que a infantaria permanece o fator essencial na conquista de territórios.
A Infantaria continua exercendo um papel central na guerra
Staver argumenta que o objetivo só é tomado quando soldados ocupam fisicamente o terreno. Embora Slipchenko previsse um futuro em que a tecnologia conduziria os combates, Staver nos lembra que a presença humana ainda é indispensável.
O Aumento do “custo da vida” do soldado
O artigo destaca que a guerra moderna tornou-se mais letal, aumentando significativamente o risco para os combatentes. Isso reforça nossa análise de que a guerra sem contato ainda não aconteceu, e que a tecnologia pode estar intensificando a letalidade dos conflitos ao invés de reduzir baixas.
A Guerra Multidomínio e seu impacto no combate convencional
Staver reconhece a importância do suporte tecnológico, mas não explora o impacto das operações multidomínio, onde:
• Cyberwarfare, inteligência artificial e domínio informacional influenciam diretamente a guerra;
• A infantaria não age isoladamente, mas integrada a um sistema informacional conectado em tempo real, que implicam no emprego do conceito de “Guerra Centrada em Redes” e “Operações de Convergência”.
Conclusões
Algumas conclusões podem ser retiradas da análise realizada neste estudo crítico:
• As previsões de Slipchenko sobre o guerrear informacional se confirmaram, consolidando-se como um dos pilares estratégicos da guerra moderna. O controle do espaço informacional por meio de ciberataques, manipulação narrativa e guerra cognitiva tornou-se tão relevante quanto o combate físico;
• A dissuasão estratégica evoluiu, passando a integrar ferramentas convencionais altamente sofisticadas. Mísseis hipersônicos e sistemas A2/AD complementam a lógica da dissuasão nuclear, reduzindo a necessidade da ameaça nuclear explícita em determinados cenários;
• Essa nova realidade, embora reduza o risco de destruição mútua assegurada, também gera um dilema estratégico: o limite dos confrontos entre potências nucleares pode avançar para além do que se verificava na Guerra Fria, permitindo ações militares mais agressivas sem imediatamente cruzar o limiar nuclear;
• A guerra espacial emergiu como um domínio estratégico fundamental, influenciando diretamente a capacidade de comando e controle, reconhecimento e orientação de armas de precisão. O crescente desenvolvimento de defesas antissatélite e sistemas de ataque orbital confirma que a guerra futura será fortemente influenciada pelo controle do espaço;
• A guerra sem contato permanece uma utopia, pois a ocupação de território continua dependendo da infantaria, mesmo diante dos avanços em munições guiadas e drones de combate;
• A infantaria mantém seu papel essencial, agora inserida em um contexto de guerra multidomínio, onde a integração com tecnologias avançadas e guerra informacional potencializa sua capacidade operacional no campo de batalha.
Referências
GAREEV, Makhmut; SLIPCHENKO, Vladimir. Future War. Moscou: OGI, 2007.
KOIZUMI, Yu. Military Strategy in Contemporary Russia: Hybrid, but Violent Way of War. Tokyo: The Japan Forum on International Relations, 2021. Disponível em: https://www.jfir.or.jp/en/wp-content/uploads/sites/2/2021/03/210423ky-en.pdf.
SLIPCHENKO, Vladimir I. Uma análise Russa da Guerra de Sexta Geração. A Defesa Nacional, v. 76, n. 763, 1994. Disponível em: https://ebrevistas.eb.mil.br/ADN/article/view/7144.
STAVER, Alexander. A Infantaria e seu papel na guerra moderna. Velho General, 5 de março de 2025. Disponível em: https://velhogeneral.com.br/2025/03/05/a-infantaria-e-seu-papel-na-guerra-moderna/.