Lições aprendidas e projeções (Parte 1)

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O presidente francês Emmanuel Macron, à direita, e seu homólogo ucraniano Volodymyr Zelenskyy em coletiva de imprensa após assinarem um acordo bilateral de segurança, em 16 de fevereiro de 2024, no Palácio do Eliseu, em Paris (Thibault Camus/Associated Press).

O presidente francês Emmanuel Macron, à direita, e seu homólogo ucraniano Volodymyr Zelenskyy em coletiva de imprensa após assinarem um acordo bilateral de segurança, em 16 de fevereiro de 2024, no Palácio do Eliseu, em Paris (Thibault Camus/Associated Press).

Reflexões após dois anos de guerra na Ucrânia.


Depois de quase dois anos de reinício das operações na Ucrânia, podemos tentar algumas reflexões como balanço.

Em todos os fenômenos sociais, e especialmente na guerra, dadas as suas graves consequências, podem ser abordadas vias ou caminhos para seu estudo e investigação. Uma delas é a punitiva, definir responsabilidades, especialmente quando o destino das armas foi adverso; Outra é aprender com os erros, para evitar que aconteçam novamente. Esses ensinamentos são chamados de lições aprendidas. Muitas vezes, até o lado vencedor se aventura na investigação do ocorrido, para ver até que ponto as coisas poderiam ser aperfeiçoadas, ou se o mesmo objetivo poderia ter sido alcançado com menos sacrifícios e perdas. Nesta linha não seguimos o rumo punitivo, mas sim as lições aprendidas.

As lições aprendidas podem ser analisadas de acordo com o nível de liderança, o primeiro é o nível estratégico nacional, que determina o que se chama de Estado Final Estratégico Desejado que materializa, com indicadores concretos, como o propósito da guerra é alcançado.

Depois, há os níveis setoriais, incluindo a Estratégia Militar, ou seja, o Ministério da Defesa e o Estado-Maior Conjunto, que devem desenvolver uma diretiva estratégica que inclua as missões particulares dos diferentes comandos operacionais.

Em seguida, vem o nível estratégico operacional, que transforma o efeito final desejado em objetivos táticos, por meio do chamado Plano de Campanha, que deve ser executado pelos componentes aeroespacial, naval, de defesa cibernética e terrestre do Teatro.

Listaremos algumas lições aprendidas ao nível da condução (não todas, apenas algumas).

Algumas lições

a) Deve basear-se numa análise adequada e realista da situação internacional, e a posição do país nesse contexto deve ser clara.

A forma como a guerra na Ucrânia continuará em 2024 depende principalmente do apoio do “Ocidente”, especialmente dos Estados Unidos e da União Europeia, à Ucrânia. Talvez fosse melhor – embora não totalmente correto do ponto de vista geográfico – falar em “norte global”, uma vez que, além da China, muitos estados do “sul global” tendem a apoiar a posição russa a este respeito.

Se aplicarmos o direito à autodeterminação dos povos, cabe principalmente à Ucrânia decidir como quer ou pode proceder. Neste momento, o desejo claro da maioria da população é libertar completamente o país e tornar-se parte da UE e da OTAN. Uma Ucrânia influenciada pelas ideias anglo-americanas muito antes de 2014, para implementar uma nova cultura, transformar sua visão de mundo, oferecer a Sociedade Opulenta, que segundo Augusto del Noce, é um novo tipo de totalitarismo mais sutil, que não constrói gulags ou campos extermínio, mas que opera silenciosamente no espírito humano: como atua esse novo totalitarismo? Reduzir o espírito humano a um mero corpo operacional que se ajusta a um sistema instrumental da sociedade. A sociedade atual, totalmente instrumental, vê-se como um mundo onde as questões metafísicas, filosóficas e teológicas não são apenas irracionais, mas não fazem sentido perguntar, pois não respondem nada ao homem dessa sociedade.


LIVRO RECOMENDADO:

Guerra na Ucrânia: Análises e perspectivas. O conflito militar que está mudando a geopolítica mundial

• Rodolfo Laterza e Ricardo Cabral (Autores)
Pedro Silva Drummond (Editor)
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Historicamente, as pessoas naquele Ocidente Opulento não estão conscientes do efeito atrativo que este bem-estar infinito criou nos países da Europa Central e Oriental após o fim da União Soviética. Não foram os Estados Unidos e a Europa que forçaram estes países a aderirem à UE e à OTAN, mas sim estes países e suas populações queriam fazer parte desta comunidade.

Os “Europeus Centrais” já não queriam ser “Europeus Orientais”. O consumo e a prosperidade, isto é, o soft power, eram simplesmente demasiado tentadores. De certa forma, isto foi uma repetição de um desenvolvimento que ocorreu na Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial: lembremo-nos da reputação sedutora que os Estados Unidos tinham nas décadas de 1950 e 1960, em uma Europa devastada pela guerra.

Soljenitsyn

Mas… referindo-nos ao grande Alexander Soljenitsyn, “com alguns anos vivendo no Ocidente, ele pretendia refletir sobre os sinais alarmantes e perigosos que percebia da evolução do Estado de Bem-Estar.”

Longe de cair em uma visão binária e simplificada do mundo, o historiador russo alertou que a “divisão é muito mais profunda e alienante”. Desde o início de sua apresentação ele deixou uma análise limitada às duas grandes potências do momento e fez referência ao Terceiro Mundo e à existência de um maior número de antigas culturas autônomas “cheias de enigmas e surpresas para o pensamento ocidental” que ainda estavam longe demais para ser vistas. Mencionou nessa categoria a China, a Índia, o mundo muçulmano e a África, entendidas como unidades compactas. De certa forma, incluía também a Rússia, então “cativa” do comunismo. Uma abordagem que o papa Francisco hoje chama de “mundo poliédrico”.

Uma das frases de Soljenitsyn tem correspondência absoluta com um discurso neocolonial que continua sendo repetido na América Latina: “Há uma crença de que todos esses outros mundos estão apenas sendo impedidos temporariamente por governos fracos ou por crises fortes, ou pela sua própria barbárie ou por incompreensão” para seguir o caminho das democracias pluralistas ocidentais e adotar seu modo de vida. Os países são avaliados e julgados de acordo com o aumento do seu progresso nesta direção. No entanto, esta concepção é fruto da incompreensão ocidental da essência de outros mundos.” E isto marca um grave erro de julgamento estratégico.

O Sul Global

b) Aliados e apoiadores invisíveis.

As alianças e o apoio internacional devem ser estabelecidos e desenvolvidos antes do conflito e não durante, para que a Rússia não possa lutar ou vencer esta guerra sozinha. Mas, e isto faz uma grande diferença: pode basear-se no “Sul Global” (embora, novamente, este termo seja geograficamente impreciso!). As armas da Coreia do Norte e do Irã ajudaram os russos a cobrirem a escassez. Isto significava que as linhas de frente russas poderiam ser continuamente reforçadas e abastecidas. Através de iniciativas diplomáticas, a Rússia conseguiu consolidar sua posição no Sul Global e até formar novas parcerias. Novos conflitos, como os da Faixa de Gaza ou os ataques Houthi no Mar Vermelho, estão causando cada vez mais problemas ao “Norte Global”. Do ponto de vista russo, isto é um sucesso e dá confiança à liderança russa. Além disso, isto permite que o lado russo pareça igualmente poderoso na guerra de informação, reúna a sua própria população e continue a atacar maciçamente.

Por outro lado, a aliança atlantista também foi tecida antes, mas hoje muitos aliados ocidentais estão cada vez mais resignados e, à portas fechadas, já pensam em uma Ucrânia dividida.

Unidade nacional

c) A causa nacional.

As causas nacionais são sempre um fator de unidade da sociedade, como bem sabem os argentinos, pois a causa das Malvinas mantém uma presença indelével na consciência coletiva argentina.

A Rússia entra em 2024 com uma autoconfiança muito elevada e espera alcançar sucessos mais decisivos, especialmente militares, nos próximos meses. Está cada vez mais convencida de que tem poder de permanência, em comparação com o “Norte Global”.

O ano de 2024 é um ano eleitoral importante, não apenas nos Estados Unidos. Neste contexto, a Rússia espera que estas eleições reforcem as forças que se opõem a um maior apoio à Ucrânia. Portanto, só teríamos que esperar até o aguardado resultado eleitoral. Putin se vê em um caminho vitorioso, tornando as negociações desnecessárias neste momento; É só seguir esse caminho até o fim, apesar de todas as perdas. Putin também aguarda com confiança sua eleição em 2024. A população russa segue maciçamente a narrativa da Grande Guerra Patriótica 2.0; e neste quadro as opiniões dissidentes não encontram resposta.

Portanto, 2024 será o clímax da guerra ucraniana, o que significa que as medidas de apoio adotadas, ou não, nos próximos meses, contribuirão decisivamente para o futuro do conflito. Além das próximas eleições presidenciais com resultado incerto, os Estados Unidos estão cada vez mais preocupados com outros conflitos e desafios. A aliança marítima necessária no Mar Vermelho para proteger uma das rotas comerciais mais importantes do mundo, o apoio militar e financeiro a Israel, os ataques crescentes às bases dos EUA no Iraque e na Síria, o problema de Taiwan e a questão da fronteira política com o México estão pressionando a tomada de decisões. Por outro lado, a maioria dos cidadãos americanos tem pouco interesse em questões de política externa.

O que a Europa fará?

De acordo com nossas análises e como já salientamos anteriormente, dada a falta de recursos humanos e materiais, a Ucrânia precisa que os europeus assumam um papel mais amplo e, sobretudo, maior protagonismo na guerra na Ucrânia (seguindo del Noce, Emanuel Todd e Alexander Soljenitsyn, achamos difícil que isso aconteça).

Segundo os analistas mais sérios, não há provas de uma implementação do tão citado “ponto de virada”, para usar este termo cunhado com entusiasmo na Alemanha. Se quisermos impedir que a Rússia ganhe impulso em 2024, isto é, não só para reter os territórios ucranianos ocupados, mas até para expandir suas conquistas, então devem ser tomadas medidas rápidas e decisivas. Se isso não acontecer, existe o risco de uma situação congelada análoga à Guerra da Coreia, incluindo uma Cortina de Ferro 2.0 ou, no caso de novas perdas territoriais importantes, até mesmo uma derrota maciça da Ucrânia.

Continuaremos na próxima semana com lições e projeções no nível estratégico militar (ou seja, a Parte 2).

Publicado no La Prensa.

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