Influência do estresse e das emoções nas percepções e memórias de policiais durante confrontos armados

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Policiais militares de São Paulo durante uma ocorrência de roubo a dois bancos na cidade de Guararema-SP, em abril de 2019 (Jonny Ueda/Futura Press/Estadão Conteúdo).

Policiais militares de São Paulo durante uma ocorrência de roubo a dois bancos na cidade de Guararema-SP, em abril de 2019 (Jonny Ueda/Futura Press/Estadão Conteúdo).

A compreensão das distorções sensoriais e cognitivas que ocorrem em situações de estresse reforça a necessidade de treinamento e apoio adequados para a atuação policial, contribuindo para a segurança de todos.


Introdução

Em situações de confronto, a expectativa de que os policiais retenham uma memória precisa das sequências frenéticas e tensas dos eventos é um desafio considerável. Este artigo busca abordar as complexidades das percepções e memórias dos policiais em situações de alto estresse, evitando acusações de falsidade baseadas em memórias imprecisas, inconsistentes ou lacunares.

Não fosse pelo recuo, talvez eu jamais tivesse percebido que a minha arma estava realmente em ação. Para minha surpresa, os tiros foram silenciosos e, após o disparo, meus ouvidos permaneceram em um estranho silêncio, sem sequer um zumbido.

Ao comunicar à equipe da ROTA COMANDO que o suspeito estava disparando em minha direção através de um corredor longo e escuro, com cerca de 12 metros de extensão, fiquei surpreso. Contudo, ao observar as imagens apresentadas pelo meu comandante, percebi que o suspeito estava, na verdade, a apenas 1,5 metro de distância, em uma sala aberta. Não havia, de fato, nenhum corredor escuro.

Uma lembrança nítida ecoa em minha mente. O suspeito rapidamente girou seu corpo, apontando sua arma em direção ao meu parceiro. Meus instintos entraram em ação, atirando quase que automaticamente, testemunhando meu parceiro cair envolto em um jato de sangue. Minha urgência em alcançá-lo e prestar auxílio era palpável. No entanto, ao chegar até ele, para minha perplexidade, estava ileso, sem ferimentos. Ao sentir uma dor na minha perna, percebi que eu é que estava baleado.

Em pleno tiroteio, minha atenção foi capturada pelo súbito caos, e minha curiosidade foi despertada ao notar objetos metálicos flutuando serenamente pelo ar, passando diante do meu rosto. Mais tarde, compreendi que eram os cartuchos ejetados pelo policial que estava atirando ao meu lado.

O indivíduo havia feito o motorista do ônibus de refém. No momento em que ele engatilhou a arma, senti confiança para disparar. Após o criminoso cair no chão, percebi uma mulher e uma criança atrás dele. Se tivesse notado a presença deles antes, não teria efetuado os disparos.

Comentário

Os depoimentos essenciais fornecidos acima, extraídos de incidentes reais de tiroteios envolvendo a atuação policial, evidenciam de forma marcante a singularidade da percepção e da memória. Não é incomum encontrar relatos semelhantes entre os policiais que se veem envolvidos em situações de confronto. Minha trajetória de quase 34 anos na atividade policial, dos quais 20 foram dedicados à área intensamente exigente de operações táticas, abrangendo diversos papéis, desde Comandante de Pelotão, Comandante de Companhia e Coordenador Operacional no 1º Batalhão de Polícia de Choque – ROTA, Comandante do Grupo de Ações Táticas Especiais – GATE do 4º Batalhão de Polícia de Choque e, por fim, Comandante do 4º Batalhão de Polícia de Choque “Operações Especiais”, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, me permitiu inúmeras oportunidades de interagir com policiais após confrontos. Essas experiências verdadeiramente testam os limites da compreensão humana.

As narrativas acumuladas ao longo desses anos ilustram a intrincada natureza do trabalho policial, especialmente em operações de alto risco. Cada memória contribui para o quebra-cabeça, enfatizando a imprevisibilidade do ambiente em que atuamos e a necessidade de adaptação ágil. A mente humana, um complexo labirinto de emoções e reações, continua a desafiar o nosso entendimento, recordando-nos constantemente de sua complexidade.

Essa trajetória me proporcionou um profundo entendimento das complexidades envolvidas na tomada de decisões sob pressão extrema. Ao longo desses anos, pude observar, em primeira mão, como o estresse impacta a habilidade do cérebro humano para tomar decisões eficazes. Em momentos de intensa tensão, notei que o excesso de estresse pode redirecionar a tomada de decisão para a parte límbica do cérebro, uma área associada à resposta de sobrevivência.

Os policiais estão cientes de que seus superiores, as autoridades legais e o público a que eles servem estarão prontos para responsabilizá-los por toda ação realizada durante um confronto. Estes mesmos indivíduos também avaliarão a precisão e a veracidade das declarações feitas pelos agentes que estiveram envolvidos nesses incidentes. Portanto, é crucial reconhecer que a expectativa de que os policiais retenham uma memória absolutamente precisa das sequências frenéticas e tensas dos eventos é, de fato, um desafio.

As complexidades do estresse, combinadas com as intensas emoções que permeiam essas situações, moldam nossas percepções e memórias de forma única. A linha de frente, onde a pressão é constante e a adrenalina pulsa nas veias, transforma momentos de segundos em eternidades quando refletidos posteriormente. O treinamento meticuloso, o acúmulo de experiência e a confiança na equipe desempenham papéis cruciais para a tomada de decisões rápidas e frequentemente instintivas.

As decisões geradas nas atividades policiais revelam, muitas vezes, características reflexivas, evitando riscos e, por vezes, restringindo-se a uma visão de túnel. Minha busca de conhecimento no mundo científico, com o intuito de compreender todos os fatores e influências em jogo numa tomada de decisão sob estresse, contribuiu para moldar essa compreensão profunda e minha abordagem como parte das equipes de ação policial. Isso me incentivou a encontrar maneiras de equilibrar a necessidade de intervenção imediata com a consideração cuidadosa de todos os elementos nela envolvidos.

Este artigo, embasado em minha experiência prática, explora minuciosamente, portanto, o impacto profundo que o estresse e as emoções exercem sobre as percepções e memórias dos policiais em situações de tiroteio. A pesquisa conduzida por D. Grossman e B. K. Siddle, sob o título Amnésia de incidente crítico: a base fisiológica e as implicações da perda de memória durante situações extremas de estresse de sobrevivência (Millstadt, IL: PPCT Management Systems, Inc., 1998), juntamente com o estudo realizado por David Klinger, do Departamento de Justiça dos EUA, Instituto Nacional de Justiça, intitulado “Respostas da Polícia a Tiroteios Envolvidos por Policiais, NCJ 192285 (Washington, DC, outubro de 2001), e a pesquisa conduzida por R. P. Fisher e R. E. Geiselman, intitulada Técnicas de aprimoramento da memória para entrevistas investigativas (Springfield, IL: Charles C. Thomas, 1992), lançam luz de maneira conjunta sobre a complexidade das reações dos policiais em momentos de alto risco.

Ao examinar esses estudos, fica evidente que a interação entre estresse, emoções e memória é fundamental para entender como os profissionais de segurança pública lidam com situações extremas. A análise dessas pesquisas contribui para a ampliação da nossa compreensão sobre as dinâmicas cognitivas e emocionais que entram em jogo no contexto dos tiroteios e confrontos policiais.

Diferenças entre pensamento racional e experiencial

Os seres humanos possuem dois modos distintos de processar informações. Um deles é o modo de pensamento racional, que se manifesta predominantemente quando a excitação emocional está em níveis mais baixos e é mediado pela parte cerebral conhecida como o neocórtex. O segundo é o modo de pensamento experiencial, que tem origem na amígdala cerebral e tende a emergir durante períodos de alto estresse e excitação emocional. Um exemplo disso pode ser observado em situações intensas, como um tiroteio envolvendo um policial.

O papel crucial do neocórtex na compreensão do processo de pensamento é inegável. Isso se deve ao fato de que o pensamento envolve a complexa habilidade de identificar pistas cruciais, empregar a memória, realizar comparações mentais e aplicar julgamento. Contudo, essa capacidade demanda um período significativo, geralmente envolvendo vários segundos, um intervalo que, em muitos casos, se mostra excessivamente longo para enfrentar ameaças letais.

Quando as pessoas não estão enfrentando níveis elevados de estresse, têm a capacidade de se engajar de maneira tranquila no processamento cognitivo consciente, deliberativo e analítico, característico do pensamento racional. No entanto, diante de uma emergência percebida e que exige ação rápida, elas não têm o luxo de optar por esse modo de processamento. Nesse caso, seu sistema cognitivo automaticamente muda para o pensamento experiencial.


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É relevante destacar que as emoções, como raiva, tristeza ou medo, não surgem diretamente como resultado objetivo dos eventos, mas sim a partir da interpretação que as pessoas fazem do que está acontecendo. Essas interpretações automáticas e pré-conscientes atuam como catalisadores efetivos dessas emoções. Elas ocorrem de forma tão rápida e automática que dificultam o engajamento no pensamento deliberativo, sequencial e analítico característico do sistema racional.

É crucial observar as diferenças significativas entre esses modos cognitivos. O pensamento experiencial, predominante em situações estressantes, é impulsivo e guiado por emoções, concentrando o foco na ação imediata. Esse modo de processamento é uma adaptação evolutiva que favorece a sobrevivência em momentos de perigo. No entanto, ele pode distorcer percepções e memórias, levando a avaliações imprecisas dos eventos.

Desvendando a psicologia operacional em cenários de alto risco

Com base em minha vivência prática e ancorado nas pesquisas aqui apresentadas, este capítulo tem por objetivo lançar luz sobre a intricada complexidade das reações dos policiais em situações de elevado risco. Mais do que isso, busca elucidar as diversas distorções que impactam as percepções e memórias dos agentes em meio a confrontos armados.

1. Distorções Temporais e a Viscosidade do Tempo: A noção de tempo, muitas vezes, se distorce em relatos que descrevem experiências em câmera lenta ou em aceleração, ressaltando a fluidez da percepção temporal em contextos de alta tensão.

2. Sinfonia dissonante – mudanças na intensidade dos sons: Alterações na intensidade dos sons são observadas, incluindo relatos de sons que se tornam excessivamente altos ou abafados. Essa cacofonia auditiva desafia a acuidade sensorial dos policiais em momentos críticos.

3. Estreitamento da visão – A emergência da “visão de túnel”: A “visão de túnel” surge, estreitando o foco visual e resultando na perda de informações periféricas. Este fenômeno representa um desafio fundamental na capacidade de perceber o ambiente circundante de forma abrangente.

4. Memórias fragmentadas – O quebra-cabeça desordenado dos eventos: A memória se fragmenta, criando lembranças desconexas e estilhaçadas dos eventos. Este fenômeno reflete a complexidade do armazenamento de informações durante situações de extrema pressão.

5. A sombra do passado – Confiança excessiva nas experiências anteriores: Observa-se uma propensão a confiar excessivamente em experiências passadas, prejudicando a avaliação consciente dos eventos presentes. Este padrão comportamental pode impactar as decisões cruciais em tempo real.

6. Do analítico ao holístico – Inclinação para o processamento intuitivo: Há uma inclinação inata para o processamento intuitivo e holístico, contrastando com a abordagem analítica e minuciosa. Este aspecto ressalta a complexidade do raciocínio em situações críticas.

Esses fenômenos, respaldados por pesquisas inovadoras, destacam a complexa operação mental durante situações de alto estresse, influenciando diretamente a percepção e a memória dos policiais. A compreensão dessas distorções é imperativa para aprimorar a preparação, o treinamento e o apoio oferecidos aos profissionais que atuam em circunstâncias de risco, assegurando uma abordagem mais completa e eficaz para lidar com esses desafios complexos.

Complexidade das memórias em situações de alto risco: Análise à luz da experiência policial

É importante a compreensão de que a memória não constitui uma gravação perfeita de eventos passados. Influências emocionais e desgaste temporal têm capacidade de moldar as lembranças ao longo do tempo. Comandantes, delegados, Ministério Público, imprensa e judiciário devem ter plena ciência de que as memórias são processos criativos e suscetíveis a modificações. A confrontação de testemunhas com evidências contraditórias pode revelar discrepâncias entre a vivência inicial e o que é recordado.

Os pesquisadores Grossman e B. K. Siddle, assim como David Klinger, acuradamente apontam que a memória não se assemelha a uma “fita de vídeo” perfeita que possa ser repetida de maneira idêntica a cada tentativa de evocar um evento passado. Ao contrário, a memória é um processo criativo e complexo, cujos mecanismos ainda não são completamente compreendidos. Se um policial relata um evento, sua lembrança não constitui uma representação totalmente precisa da realidade; essa discrepância não implica necessariamente em mentira ou tentativa de dissimulação.

Da mesma forma, é normal que as memórias se transformem com o tempo, podendo as modificações ou inclusões representar ou não a realidade com maior precisão. Esse princípio é aplicável igualmente a outras testemunhas oculares e aos suspeitos. É fundamental, portanto, evitar acusações de falsidade baseadas em memórias imprecisas, inconsistentes ou lacunares.

Conclusões

Embora alguns indivíduos possam optar por fornecer informações incorretas, os responsáveis pela investigação do evento devem reservar a alegação de falsidade para situações em que existem provas adicionais indicando a tentativa deliberada de enganar. Importante notar que esses apontamentos refletem tanto os resultados da minha pesquisa quanto as conclusões dos autores citados e a visão obtida através do trabalho de campo realizado.

As observações iniciais compartilhadas pelos policiais, neste artigo, retratam, de maneira impactante, como a percepção e a memória podem significativamente moldar a compreensão individual de um incidente específico. Um policial não registrou o som de sua própria arma sendo disparada. Quatro outros notaram eventos desenrolando-se de modos que, na realidade, nunca ocorreram. Esses relatos ressaltam que todos os policiais enfrentam os desafios do processo altamente estressante e emocionalmente carregado do uso de força letal, submetendo-se posteriormente ao escrutínio tanto de suas agências quanto dos cidadãos a quem servem.

Apesar de seu treinamento avançado, que visa descrever os eventos com precisão e divulgar fatos relevantes para investigações criminais, os policiais enfrentam as mesmas complexidades que qualquer indivíduo enfrentaria ao tentar recordar o que ocorreu em situações de grande tensão. A pesquisa, incluindo o estudo do autor e outras pesquisas analisadas, destaca que a precisão na lembrança desses eventos é raramente alcançada. Isso se aplica in totum aos policiais envolvidos em tiroteios, como demonstram as evidências.

Os avanços na compreensão do funcionamento do cérebro humano têm implicações cruciais para a profissão policial, exigindo um reconhecimento profundo tanto por parte dos agentes quanto daqueles que avaliam suas ações. Em contextos de incidentes críticos, onde decisões devem ser tomadas em frações de segundo, a necessidade de treinamento de qualidade é destacada para garantir reações eficazes sob intensa pressão. Além disso, os analistas desses eventos devem compreender as complexas pressões enfrentadas pelos policiais, mantendo expectativas realistas quanto à percepção e à precisão das lembranças durante tais situações.

Ao considerar o papel intrínseco do cérebro na priorização da sobrevivência, torna-se evidente que, embora o treinamento seja valioso para proporcionar respostas adequadas, não pode subestimar a influência da seleção natural que moldou nosso pensamento. Este fator adquire uma relevância particular em missões ou atividades de alto risco, onde a sobrevivência muitas vezes supera a compreensão em termos de prioridades cerebrais. Assim, as implicações dessas descobertas destacam a necessidade de ajustes nos métodos de planejamento e treinamento, adaptando estratégias para considerar a orientação intrínseca do cérebro para a sobrevivência em situações complexas e desafiadoras.

Reconhecendo as distorções perceptivas e de memória que podem surgir em situações de tiroteio, a profissão policial pode adotar abordagens mais eficazes para auxiliar os agentes a enfrentarem essas circunstâncias desafiadoras, o que, potencialmente, pode até reduzir a ocorrência desses eventos. O entendimento e a consideração desses fatores são vitais para o desenvolvimento de uma atuação policial da lei mais informada, capaz de responder adequadamente a situações de alto estresse, promovendo a segurança tanto dos policiais quanto da comunidade a que servem.

Referências

American Psychological Association. Memory-enhancing techniques for investigative interviewing: The cognitive interview. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1992-98595-000

National Institute of Justice. Police Responses to Officer-Involved Shootings. 2006. Disponível em: https://nij.ojp.gov/topics/articles/police-responses-officer-involved-shootings

PINIZZOTTO, Anthony J.; DAVIS, Edward F.; MILLER III, Charles E. Violent Encounters: Study of Felonious Assaults on Our Nation’s Law Enforcement Officers. Federal Bureau of Investigation. FBI, Office of Justice Programs, U.S. Department of Justice, USA, 2006.

Semantic Scholar. Critical Incident Amnesia: The Physiological Basis and the Implications of Memory Loss During Extreme Survival Stress Situations. 1998. Disponível em: https://www.semanticscholar.org/paper/CRITICAL-INCIDENT-AMNESIA-%3A-The-Physiological-Basis-Grossman/51669176c25b57da34eb883c6017de98bf651a90

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3 comentários

  1. Parabéns Cel PM Racorti, um dos mais brilhantes Oficiais Operacionais que já conheci.

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