Marinha americana: Um tigre de papel-moeda?

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O cruzador USS Bunker Hill, da Marinha dos EUA, navega no Oceano Atlântico durante o exercício Southern Seas, em 4 de março de 2010 (Seaman Aaron Shelley/US Navy).

O cruzador USS Bunker Hill, da Marinha dos EUA, navega no Oceano Atlântico durante o exercício Southern Seas, em 4 de março de 2010 (Seaman Aaron Shelley/US Navy).

A análise fria dos gastos das Marinhas dos EUA e da China mostram que frota americana se torna a cada ano mais velha, mais cara e menor frente à sua principal concorrente.


Por uma década e meia, no período compreendido entre os anos de 2005 e 2020, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos recebeu um orçamento cuja soma total alcança, em valores corrigidos para 2023, cerca de 14 TRILHÕES de dólares (dados do Banco Mundial).

Em percentual acumulado de Produto Interno Bruto (PIB), o contribuinte americano desembolsou o equivalente a 61,21% de um ano de sua economia nacional nesse período.

Isso significa que, em média, um cidadão americano que comece a trabalhar aos 18 anos de idade e se aposente aos 60, terá dedicado um ano e oito meses de sua vida para pagar guerras (nem todas vencidas), armas muitas vezes ineficientes e salários dos militares.


GRÁFICO 1: Gastos com defesa dos EUA entre 2005 e 2020.

TABELA 1: Gastos com defesa dos EUA entre 2005 e 2020.

Observada a tabela acima, constata-se que, entre 2005 e 2020, o orçamento de defesa americano aumentou cerca de 6,1% em valores corrigidos para 2023 (de US$ 852,15 bilhões para US$ 904,81), embora deva ser reconhecido a seu favor que o percentual em relação ao PIB tenha caído de 4,09 para 3,72%.

No entanto, diante dos custos, observemos os resultados: no período de tempo considerado nesta análise, a Marinha americana (USN, United States Navy) aumentou seu plantel de 291 para 296 navios (um delta de meras cinco unidades), conforme a figura abaixo:


TABELA 2: Número de tipos de navios da Marinha americana entre 2005 e 2020.

Antes que se levante a hipótese que nesse período a frota da USN foi renovada (isto é, muitos navios velhos desativados e substituídos por novos, deixando o saldo de acréscimo diminuto), adiantamos que a média de idade dos meios navais americanos cresceu durante esse período, conforme se constatará mais adiante neste artigo.

Logicamente, não se pode deixar de considerar o fato que, durante todo esse tempo, os EUA estiveram envolvidos nas malogradas, intermináveis e caras guerras do Iraque e do Afeganistão, que sangraram o contribuinte americano e drenaram preciosos recursos financeiros que poderiam ter sido mais bem aproveitados em prol da modernização das suas forças armadas, bem como no aumento na quantidade de seus meios operativos, como pode ser observado no Gráfico 2.


GRÁFICO 2: Custos dos EUA na Guerra do Afeganistão entre 2001 e 2022.

No mesmo intervalo de tempo (2005/2020), a Marinha chinesa (PLAN, People’s Liberation Army Navy, a Marinha do Exército de Libertação Popular da China) aumentou sua frota de 216 para 333 navios, acrescentando, portanto, 117 meios navais. Para tal, gastou apenas o equivalente a 20% do total do orçamento americano (US$ 3 trilhões contra US$ 14 trilhões), comprometendo 28% do PIB chinês em total acumulado no período contra 61% dos EUA.

Comparados os gastos e resultados de ambos os países, constatamos que as discrepâncias na relação custo/benefício entre EUA e China são muito grandes.


TABELA 3: Gastos com defesa da China entre 2005 e 2020.

Um contribuinte americano mais atento e criterioso constatará facilmente que a conta não fecha, pois o governo de seu país gasta muito com defesa e entrega pouco. Mesmo que os números relativos aos gastos militares chineses não correspondam totalmente à realidade e tenham sido subfaturados, como defendem alguns analistas, fica difícil mascarar o “increase” de meios operativos das forças armadas chineses em contraponto ao crescimento anêmico da frota e o fracasso de muitos programas militares americanos.

A verdade é que Pentágono paga muito caro e recebe muito pouco em armas (e nem todas elas funcionam direito).

Dentre as principais causas do excessivo gasto americano, destacamos:

  • Salários e bonificações milionárias dos CEOs das principais fábricas de armas dos EUA;
  • Remuneração de acionistas da indústria bélica na forma de lucros e dividendos (Wall Street importa mais que os militares);
  • Pagamento de contribuição de campanhas eleitorais das empresas aos congressistas (um “seguro” que pode garantir apoio a novos projetos bilionários – na verdade, mera corrupção legalizada);
  • Aventuras financeiras bilionárias com projetos mirabolantes de eficácia duvidosa (as infames “wunderwaffe”), onde se parte para a escala sem validar o conceito, tendo como consequências nefastas a baixa disponibilidade operacional, falhas frequentes, acidentes muitas vezes fatais e, como não poderia deixar de ser, custoso (e vultoso) retrabalho;
  • Gastos com milhares de lobistas, que percorrem freneticamente os gabinetes do Congresso americano em busca de aprovação para projetos bilionários;
  • Investimento em programas caros, secretos e de resultados duvidosos como a operação “Timber Sycamore”, que armou insurgentes contra o regime de Bashar Assad na Síria, inclusive a Al Qaeda – Assad continua lá, mas o dinheiro do pagador de impostos americano sumiu.

Em adição aos custos, convém lembrar que a guerra na Ucrânia provou que a indústria de defesa dos EUA, na prática, se mostra incapaz de atender a uma demanda de escala adequada a um conflito de alta intensidade – ou seja, além de cara, é impotente. A imprensa não publica uma única linha a respeito, mas está tudo documentado e pode ser facilmente constatado em fontes abertas.

No contraponto, as forças armadas da China têm à sua disposição uma cadeia de suprimentos autossuficiente, seu parque industrial de defesa é robustamente integrado com os setores de matéria prima por uma ágil rede de transportes, a mão de obra é mais barata e inexistem os pesados custos acessórios e vícios que pesam na indústria de defesa dos Estados Unidos. Enquanto os gastos americanos se destinam a atender a remuneração do patriciado americano e almejam apenas lucros imediatos, o orçamento chinês tem um propósito político definido e busca resultados de longo prazo.

Obsolescência

A dita eficiência da indústria militar americana (de saudosa memória dos anos da Segunda Guerra Mundial) já não é mais a mesma: dezenas de estaleiros foram fechados, a corrida de misseis hipersônicos foi perdida para a China e a Rússia, os chineses ultrapassaram os Estados Unidos em número de lançadores de ICBM (Intercontinental Ballistic Missile, Míssil Balístico Intercontinental), o Golfo Persico transformou-se em área de risco para s US Navy em função das novas tecnologias de drones e mísseis iranianos, e o que é pior: pelas recentes declarações em veículos de imprensa e documentos oficiais, intui-se que a liderança naval americana ainda não se conscientizou de que as coisas mudaram e que os novos desafios exigem uma abordagem diferente.

O secretário da Marinha dos EUA, Carlos Del Toro, disse que seu país mantêm uma grande vantagem sobre a China: “nosso povo”: “De muitas maneiras, nossos armadores são melhores construtores navais, é por isso que temos uma Marinha mais moderna, mais capaz e mais letal do que eles”, disse. O pessoal militar dos EUA também é melhor que o equivalente chinês, afirmou Del Toro: “Eles direcionam seu pessoal para lutar, nós, na verdade, treinamos nosso pessoal para pensar”, bravateou ele.

“Há uma diferença fundamental em como treinamos nossos fuzileiros navais, nossos marinheiros, nossos soldados, nossos aviadores e nossa Força Espacial neste país, o que nos dá uma vantagem inerente sobre qualquer coisa que os chineses possam oferecer.”

A verdade é que o governo que emprega o secretário Del Toro não tem cuidado muito bem de seus militares, pois há 38.000 veteranos americanos sem teto nos Estados Unidos.

O CNO (Chief of Naval Operations, Comandante de Operações Navais) da US Navy, almirante Mike Gilday, reconheceu recentemente alguns problemas, mas na visão dele as soluções são simples. Ele está errado, não são. E boa parte da oficialidade pensa como ele.

Hoje (março de 2023) a média de idade dos navios da Marinha chinesa é de 13,8 anos contra 23,3 da USN, outro problema de difícil solução que é o envelhecimento da frota. Além de menor, a marinha americana está se tornando idosa. E navios mais velhos demandam maior cuidado na manutenção, outro ponto que também não vai bem: senadores e deputados mais conscientes começam a questionar, pois registram-se vários casos de navios que entram em PMG (Período de Manutenção Geral) no início de ano na doca, gastam-se milhões e no final do ano a Marinha pede baixa do navio. Há algo errado: alguém ganhou com essa manutenção fake, e com certeza não foi o contribuinte americano.

Fundamentalmente, o que se observa nas declarações das autoridades americanas a respeito do tema é que eles são pródigos em designar gordos “budgets” para seus programas militares, mas ninguém parece preocupado com a eficácia desses gastos ou a eficiência de seus resultados.

Alguns congressistas republicanos entenderam a problemática, mas não conseguem (ou não podem) admitir que a solução é uma troca total de paradigmas. E substituir “mindset” é uma das tarefas mais difíceis que existe. Essa gente será atropelada por um novo mundo que não querem aceitar e muito menos compreendem.

E o futuro?

O governo chinês planeja uma marinha de 400 navios para os próximos anos, enquanto os planejadores americanos acreditam que, na melhor das hipóteses, a US Navy poderá contar com 350 navios apenas em 2045. Em termos realistas, dificilmente Washington reverterá a longa marcha em direção a supremacia naval de Pequim, pois a indústria naval chinesa conta com 13 estaleiros, e somente um deles tem mais capacidade do que todos os similares americanos juntos.

Tudo posto, conclui-se que a marinha americana está mais velha, mais cara e se torna menor a cada ano frente à sua principal concorrente. No fim das contas, a defesa dos EUA revelou-se um tigre de papel.

Neste caso, papel moeda.

Referências

Comparativo marinha chinesa x marinha EUA:

https://www.wdmmw.org/peoples-liberation-army-navy-china.php

https://www.wdmmw.org/united-states-navy.php

Orçamento de defesa de US$ 1 trilhão no horizonte:

https://americanmilitarynews.com/2023/03/watershed-1-trillion-defense-budget-on-the-horizon/

China tem mais lançadores de ICBM que os EUA:

https://www.wsj.com/articles/china-has-more-icbm-launchers-than-u-s-american-military-reports-11675779463

Veteranos americanos sem teto:

https://www.militarytimes.com/news/pentagon-congress/2023/03/15/va-aims-to-help-38000-homeless-veterans-again-this-year/

Custo das guerras Iraque e Afeganistão:

https://watson.brown.edu/costsofwar/figures/2021/human-and-budgetary-costs-date-us-war-afghanistan-2001-2022

https://www.militarytimes.com/news/your-military/2023/03/17/wars-in-iraq-and-syria-cost-half-a-million-lives-nearly-3t-report/

O que há no orçamento de defesa do Pentágono:

https://breakingdefense.com/2023/03/whats-in-the-pentagons-budget-heres-what-to-know-updating-tracker/

Incapacidade da indústria em atender demanda:

https://www.defensenews.com/congress/2023/02/08/lawmakers-worry-about-weapons-makers-ability-to-meet-demand/

https://breakingdefense.com/2023/03/america-needs-to-grow-its-capacity-to-produces-weapons-heres-four-steps-to-do-it/

Problemas no Osprey:

https://breakingdefense.com/2023/02/pentagon-grounds-subset-of-osprey-fleet-over-safety-concerns/

Extensão da vida dos Arleigh Burke e envelhecimento da frota:

https://www.navytimes.com/news/your-navy/2023/03/16/navy-will-extend-service-life-of-destroyer-arleigh-burke/

https://www.defensenews.com/naval/2018/06/07/the-us-navys-ships-are-getting-old-they-might-be-getting-a-lot-older/

https://news.usni.org/2018/10/04/heritage-foundation-index-aging-navy-fleet-complicates-tradeoff-between-spending-on-new-ships-maintaining-old-ones

Questão dos estaleiros:

https://www.defensenews.com/industry/2023/03/20/how-the-us-navys-five-year-spending-plan-affects-shipyards-suppliers/

https://www.nationaldefensemagazine.org/articles/2023/1/26/analysis-shipyard-capacity-chinas-naval-buildup-worries-us-military-leaders

https://edition.cnn.com/2023/02/22/asia/us-navy-chief-china-pla-advantages-intl-hnk-ml/index.html

Políticos Republicanos e o orçamento:

https://www.defensenews.com/pentagon/2023/03/20/gop-budget-plan-will-undermine-security-warns-biden-administration/

Míssil hipersônico falha:

https://edition.cnn.com/2022/06/30/politics/us-hypersonic-missile-test-fails/index.html

https://news.usni.org/2023/03/16/army-and-navy-cancelled-march-hypersonic-test-due-to-battery-failure

https://www.defensenews.com/air/2023/03/28/arrw-hypersonic-missile-test-failed-us-air-force-admits/

Falhas do bombardeiro B-2:

https://www.nytimes.com/1997/08/23/world/the-2-billion-stealth-bomber-can-t-go-out-in-the-rain.html

https://www.airandspaceforces.com/article/1109edit/

Questões de orçamento:

https://www.military.com/daily-news/2023/03/23/not-stopping-russia-ukraine-would-force-doubling-of-us-defense-budget-milley-says.html

https://breakingdefense.com/2023/03/the-pentagons-fy24-defense-budget-falls-40-billion-short/

https://breakingdefense.com/2023/03/1t-in-new-defense-spending-pledged-by-key-us-partners-in-1-year-analysis/

https://www.defensenews.com/naval/2023/03/27/coast-guard-wants-16-billion-extra-to-hasten-modernization-projects/

https://news.usni.org/category/budget-industry

https://news.usni.org/2023/03/16/fiscal-year-2024-department-of-the-navy-budget-materials

Balanços da Marinha americana:

https://www.csis.org/analysis/us-military-forces-fy-2021-navy

Modernização chinesa:

https://www.everycrsreport.com/reports/RL33153.html

https://sgp.fas.org/crs/row/RL33153.pdf

Deterioração dos quartéis do Exército:

https://www.military.com/daily-news/2023/03/27/army-finds-mold-2100-buildings-following-service-wide-inspection.html

Wunderwaffe B-21:

https://breakingdefense.com/2023/03/go-big-air-force-should-double-b-21-raider-buy-think-tank-says/

Questões de comercio marítimo:

https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2023/04/us-navy-oceanic-trade-impact-russia-china/673090/

Número de navios desde 2005:

http://www.andrewerickson.com/wp-content/uploads/2020/09/Screen-Shot-2020-09-03-at-2.00.08-PM.png

https://www.history.navy.mil/research/histories/ship-histories/us-ship-force-levels.html

Vulnerabilidade do ocidente face aos mísseis hipersônicos:

https://www.washingtonpost.com/world/2023/03/10/russia-hypersonic-missiles-western-vulnerability/

Gastos militares:

https://www.pgpf.org/national-debt-clock

https://www.macrotrends.net/countries/USA/united-states/military-spending-defense-budget

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4 comentários

  1. E a Marinha do Brasil? Ela tem sido mais responsável com o dinheiro do contribuinte brasileiro? Alguém saberia dizer o motivo de termos comprado um ferro velho francês, o porta aviões Foch, para poluirmos o oceano poucos anos depois a fim de nos livrarmos de um lixo que nenhum outro país aceitou receber?

  2. Artigo ficaria melhor com algumas informações como:

    1) uma corveta possui o mesmo valor econômico e militar de um porta aviões?

    2) qual a tonelagem de navios jogadas ao mar durante o período?

    3) qual o valor gasto em paridade de poder de compra por tonelagem de navio?

    4) incluiu o custo de uma ala aérea de um porta-aviões?

    Sem essas informações não temos simplesmente nada, afinal, seria como falar que gastamos 5bi no Gripen E para não ter qualquer saldo na FAB, já que mais F-5Ms irão se aposentar. Isso sem levar em consideração a qualitativa de um F-5M e Gripen E.

  3. Parabéns pelo artigo. Mesmo que falte algumas informações você conseguiu entregar a mensagem. E citando as fontes, isso é muito bom.

  4. Se alguém precisar de mais informações do que as detalhadas no artigo, hoje o mundo é um livro aberto, incluindo um tal de Google, para que todos se informem. Obrigado pelo texto, muito explicativo.

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