Por que o Não Alinhamento é um imperativo urgente para o Sul Global

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Jawaharlal Nehru, da Índia, Kwame Nkrumah, de Gana, Gamal Abdel Nasser, do Egito, Sukarno, da Indonésia, e Josip Broz Tito, da Iugoslávia, na Conferência de Bandung em 1955 (Medium).

Jawaharlal Nehru, da Índia, Kwame Nkrumah, de Gana, Gamal Abdel Nasser, do Egito, Sukarno, da Indonésia, e Josip Broz Tito, da Iugoslávia, na Conferência de Bandung em 1955 (Medium).

O não alinhamento com os Estados Unidos e seus aliados, ou com a Rússia, é uma posição de princípios, além de um engajamento tático astuto com as realidades geopolíticas.


A África do Sul e outros países que se abstiveram de votar contra a Rússia na Assembleia Geral das Nações Unidas em resposta à guerra na Ucrânia enfrentam intensas críticas internacionais. Na África do Sul, as críticas domésticas foram extraordinariamente estridentes e muitas vezes claramente racializadas. Supõe-se frequentemente que a abstenção significa que a África do Sul apoia a invasão russa, e isso se deve a relações corruptas entre as elites russas e sul-africanas, ou a nostalgia do apoio dado à luta antiapartheid pela União Soviética, ou ambas.

Raramente há qualquer reconhecimento de que o não alinhamento, neste caso recusando-se a se alinhar com os Estados Unidos e seus aliados ou com a Rússia, pode ser uma posição de princípios, bem como um engajamento tático astuto com as realidades geopolíticas. Como duas figuras fundadoras do Movimento dos Não-Alinhados[1] (NAM, Non-Aligned Movement), o então presidente da Iugoslávia, Josip Broz Tito, e o então primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, disseram em uma declaração conjunta assinada em 22 de dezembro de 1954, “a política de não alinhamento com blocos… não representa ‘neutralidade’ ou ‘neutralismo’; nem representa passividade, como às vezes é alegado. Representa a política positiva, ativa e construtiva que, como objetivo, tem a paz coletiva como fundamento da segurança coletiva”.

O Sul Global abriga mais de 80% da população mundial, mas seus países são sistematicamente excluídos de qualquer tomada de decisão nas organizações internacionais que tomam decisões em nome da “comunidade internacional”. Por décadas, os países do Sul Global têm defendido que as Nações Unidas sejam reformadas para que se afastem do jogo de soma zero da mentalidade da Guerra Fria que continua a conduzi-la. Gabriel Valdés, então ministro das Relações Exteriores do Chile, contou que em junho de 1969, Henry Kissinger lhe disse: “Nada importante pode vir do Sul. A história nunca foi produzida no Sul. O eixo da história começa em Moscou, vai para Bonn, cruza para Washington e depois vai para Tóquio. O que acontece no Sul não tem importância”.

Jaja Wachuku, então ministro das Relações Exteriores da Nigéria, fez uma pergunta, ainda urgente, à 18ª Sessão da ONU em 30 de setembro de 1963: “Esta Organização quer que… [os] Estados africanos sejam apenas membros vocais, sem o direito de expressar suas opiniões sobre qualquer assunto em particular em órgãos importantes das Nações Unidas…[?] Vamos continuar sendo apenas garotos da varanda?” Os países do Sul Global ainda são “garotos da varanda”[2] observando os adultos fazendo as regras e decidindo o caminho que o mundo deve tomar. Eles continuam a ser repreendidos e a receber sermões quando não agem como esperado.

É o momento de um NAM (Non-Aligned Movement, Movimento Não Alinhado) revitalizado. O NAM só terá sucesso se os líderes dos países do Sul Global colocarem seus egos de lado, pensarem estrategicamente em escala global e colocarem seu considerável capital humano, recursos naturais e engenhosidade tecnológica para melhor uso. O Sul Global tem uma China ascendente, a segunda maior economia do mundo. Tem a Índia, um dos países líderes em assistência médica e inovação tecnológica. A África é rica com uma população crescente e os recursos naturais necessários para a multiplicação das indústrias de IA e energia mais limpa. No entanto, esses recursos ainda são extraídos para o acúmulo de lucro em capitais distantes, enquanto a África e grande parte do Sul Global permanecem subdesenvolvidos, com milhões ainda presos no desespero do empobrecimento.

Um NAM renovado tem um potencial real se houver dedicação de tempo para construir novas instituições e amortecedores contra a guerra econômica que os Estados Unidos estão travando contra países como Cuba e Venezuela e agora estão desencadeando contra a Rússia. A autonomia financeira é fundamental.


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O BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) tem um banco, e para as 16 nações da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) existe o Banco de Desenvolvimento da África Austral; no entanto, as reservas dos países vinculados a esses projetos ainda são mantidas nos Estados Unidos ou em capitais europeias. Este é o momento para os líderes do Sul Global acordarem e perceberem que, dado o tipo de guerra econômica que está sendo travada contra um país como a Rússia, os países mais fracos do Sul Global não têm autonomia significativa.

Este é o momento de repensar como conduzimos a política, a economia e a política externa quando está claro que o Ocidente pode decidir dizimar países inteiros. As armas econômicas sendo construídas contra a Rússia estarão disponíveis para serem usadas contra outros países que tenham a temeridade de não seguir a linha de Washington.

O BRICS foi decepcionante em muitos aspectos, mas abriu espaço para os países do Sul Global – com suas muitas diferenças de credo, cultura, sistemas políticos e econômicos – encontrarem uma forma de trabalhar juntos. A rejeição da intensa pressão para dobrar o joelho coletivo no Conselho de Segurança das Nações Unidas é um exemplo encorajador do Sul Global rejeitando a suposição de que eles deveriam permanecer como “garotos de varanda” (e garotas).

À medida que os Estados Unidos intensificam rapidamente sua nova guerra fria contra a Rússia e a China, e esperam que outros países sigam a mesma linha, há agora um imperativo urgente de rejeitar essa mentalidade de dividir o mundo ao longo de velhas linhas amargas. O Sul Global deve rejeitar essa visão e exigir o respeito ao direito internacional por todos os países. É escarnecer dos direitos humanos e do direito internacional quando esses conceitos só são evocados se forem violados por países dos quais o Ocidente não gosta ou discorda.

Somente unindo-se e falando a uma só voz, os países do Sul Global podem esperar ter alguma influência nos assuntos internacionais e não continuar a ser apenas carimbadores das posições do Ocidente.

O Movimento dos Não-Alinhados precisa ser confiante e ousado e não buscar permissão do Ocidente. Os líderes do NAM precisam entender que estão lá para servir a seu povo e proteger seus interesses, e não permitir que a tentação de ser incluído no “clube dos meninos grandes” influencie suas posições. Eles precisam ter sempre em mente que foram mantidos como “garotos da varanda” por muito tempo, e a menos que realmente tomem seu destino em suas mãos, estarão para sempre ao pé da mesa, com seu povo se alimentando apenas dos restos da riqueza acumulada pela economia global, grande parte pela exploração do Sul.


Este artigo foi produzido pela Globetrotter.


*Nontobeko Hlela foi a primeira secretária do Alto Comissariado da África do Sul em Nairóbi, no Quênia. Ela atualmente trabalha como pesquisadora para o escritório sul-africano do Tricontinental: Institute for Social Research, um think tank do Sul Global com escritórios em Johanesburgo, São Paulo, Buenos Aires e Nova Délhi.


Notas

[1] O Non-Aligned Movement (NAM) é um fórum de 120 países não alinhados com ou contra qualquer grande bloco de poder, criado com o objetivo de contrabalançar a bipolarização mundial no período da Guerra Fria. Foi formalmente estabelecido em 1961 em Belgrado, Iugoslávia, por iniciativa do presidente iugoslavo Josip Broz Tito, do primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru, do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, do presidente ganense Kwame Nkrumah e o presidente indonésio Sukarno (ver em: https://en.wikipedia.org/wiki/Non-Aligned_Movement).

[2] “Veranda Boys” (“Garotos da Varanda”) era um termo usado em Gana para referir-se aos pobres, sem-teto, que dormiam nas varandas de outras pessoas.

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