Reflexões sobre Poder: A China, o Ocidente e o Brasil

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Imagem: VG.

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Com a queda da URSS e o fim da bipolaridade da Guerra Fria, os Estados Unidos se consolidaram como potência hegemônica, impondo sua visão e valores durante as décadas seguintes. No Século XXI, o crescimento da China e consequente embate com os EUA requer uma análise cuidadosa. O fato é que avaliar a ascensão da China por uma ótica puramente ocidental levará inevitavelmente a erros de avaliação.


1ª parte

Amigos, vou elencar alguns fatos, talvez venham a ser de utilidade para alguns.

Entre os anos de 1945 e 1991, vigorou no mundo uma ordem mundial bipolar que dividiu o planeta entre o bloco comunista da União Soviética e sua contraparte capitalista do Ocidente. Havia certo equilíbrio entre os lados e as previsões eram relativamente fáceis.

Com o fim da URSS em 1991, sobreveio uma era de hegemonia dos Estados Unidos que duraria aproximadamente um quarto de século, começando a dar sinais de esgotamento por volta de 2015. Foi uma era de verdadeiro reinado americano: invadiram o Afeganistão, em seguida o Iraque, derrubaram Khadafi e balançaram Bashar al-Assad na Síria.

Nessa fase hegemônica, os EUA efetivamente tentaram moldar o mundo à sua imagem e semelhança. O modelo de democracia americana espalhou-se pelo planeta, com bons resultados em alguns países e noutros, nem tanto.

E por que esse sistema falhou em alguns lugares? Simplesmente porque ele não leva em conta a cultura local e a natureza de cada sociedade. Mas, ancorado nas pressões econômicas e militares americanas, o modelo se alastrou.

Porém, o sistema de sanções econômicas que forçou a adoção do modelo dito democrático pelas nações começou a dar sinais de que não era infalível. A Coreia do Norte se nuclearizou. A China continuou a não dar importância àquilo que o Ocidente tem como direitos humanos e a Rússia fincou o pé na Crimeia para não mais sair de lá.

No ano de 2015, num lance genial, Vladimir Putin começa a virar o jogo na Síria. Em paralelo, a proposta democrática americana no Iraque e Afeganistão começa a se mostrar inviável pelos motivos que elenquei acima.

Eis que adentra o cenário um ator que se mantivera até então silencioso nas coxias: a China.

2ª parte

Então a China entra no cenário mundial.

O chinês gosta de um jogo chamado Wei Qi (conhecido no Ocidente como Go), onde o objetivo não é conquistar territórios, mas sim não ser cercado. Todos os movimentos de Pequim têm mantido essa orientação, norteados sempre pelas lembranças do “Século da Humilhação” (circa de 1820 a 1949), quando a China perdeu diversos territórios para o Japão e países ocidentais e teve dezenas de milhões de mortos em suas inúmeras guerras civis.

Trata-se de um erro grosseiro analisar a China pelo ponto de vista do Marxismo: o dito “socialismo com características chinesas” tem muito mais a ver com raízes confucionistas alicerçadas por um forte nacionalismo do que com a pueril visão política ocidental de esquerda (visão de mundo essa que os chineses olham com desdém).

Calcado nessas premissas:

  1. A China defenderá sua soberania com unhas e dentes;
  2. Taiwan será reincorporada;
  3. A China buscará a vanguarda. Vejam bem, eu disse VANGUARDA, e não DOMINAÇÃO.

Para entender o sentimento chinês, ver artigo e ilustrações a seguir:

Artigo: Concessions in China (Wikipedia, em inglês).


Charge francesa de 1898, de autoria de Henri Meyer, mostra a atitude imperialista do Japão e das potências ocidentais em relação à China. Uma torta representa a China sendo repartida entre a Rainha Vitória do Reino Unido, Guilherme II da Alemanha, Nicolau II da Rússia, a personagem francesa Marianne e um samurai representando o Japão, enquanto um funcionário Qing se desespera, impotente.

Charge mostra que a China era um suculento butim a ser disputado: potências ocidentais e o Japão rasgam o país em pedaços, enquanto John Bull (personagem representando o Império Britânico) grita embaixo deles. A legenda diz “Pobre John Bull, estão zombando de você. Em suas costas, eles arrancam os pedaços mais suculentos. Levante-se rápido… se você puder!”.

3ª parte

A China não tem pressa, mas se move de maneira bastante rápida. Ocidentais não gostam de estudar os chineses, mas estes observam o Ocidente com uma lupa.

Eles já entenderam que a ruína dos Estados Unidos vem sendo o famoso “excepcionalismo americano” e a sensação de triunfo que tomou conta da América com o fim da URSS. Os chineses não cometerão os mesmos erros (como não repetiram os erros dos soviéticos).

Eles também já perceberam que os EUA se perderam com seu excesso de liberdade e que estão a caminho da ingovernabilidade (a China tem uma triste lembrança disso em (des)virtude do seu “Século da Humilhação”, conhecem bem o caminho para o abismo que drogas e ausência de autoridade reservam para um país e vão evitar isso a qualquer custo). O caos libertário tão louvado por nossa democracia é um demônio a ser evitado por Pequim.

Aliás, valores como democracia, liberdade e individualismo não querem dizer nada para eles. Ao contrário, família, ordem e a meritocracia confucionista são o que lhes faz brilhar os olhos.

Para que se tenha uma ideia da visão chinesa do Ocidente, vou lhes contar uma breve história:

Um oficial brasileiro conversava com seu colega argentino numa academia militar chinesa. Falavam sobre o Papa Bergoglio. Eis que chega um oficial chinês e pergunta: mas o que é um papa?

É preciso que lembremos sempre que, para 60% da humanidade, Francisco é apenas um velho que se veste de maneira exótica. Isso diz muito sobre o resto do mundo.

Mas vamos agora analisar a relação da China com o Brasil.

4ª parte

Em 1976, Eduardo Suplicy visitou a China (foto abaixo). Na época, o PIB chinês era metade do brasileiro. Passados 45 anos, é oito vezes maior.


Eduardo Matarazzo Suplicy em visita à China em 1976.

As relações entre Pequim e Brasília sempre foram boas, e nos próximos 10 anos os dois países devem realizar trocas comerciais de mais de 1,5 trilhão de dólares, numa balança extremamente favorável para o Brasil. Os chineses negociaram com Geisel, Figueiredo, FHC, Lula etc. Para eles, tanto faz quem está no poder, e não tem fricotes morais com rupturas ou golpes de estado (vide Mianmar e Zimbábue) DESDE QUE OS CONTRATOS CHINESES SEJAM MANTIDOS.

No mundo em que vivemos até 2020, eram raros os golpes de estado e rupturas por receio das retaliações euro-americanas. Porém, a enorme confusão ocorrida nas eleições do EUA seguida pela ascensão comercial chinesa jogou por terra a aura de infalibilidade da democracia americana (e por tabela, dos sistemas democráticos mundo afora).

Bastou virar o ano para que os militares de Mianmar derrubassem o governo civil eleito que fraudou as eleições no país. A seguir o presidente de El Salvador destituiu a Suprema Corte de seu país. Por fim, o presidente da Tunísia suspendeu o congresso, e o ano está só na metade.

Os EUA e a Europa nada puderam fazer, porque, principalmente no caso de Mianmar (onde o golpe foi mais brutal com milhares de mortes e prisões), havia um enorme retaguarda russo-chinesa apoiando os militares.

Mas Biden não pode ser culpado por tudo. Anos antes, seu antecessor Donald Trump havia saído do acordo nuclear com o Irã (acordo esse que era péssimo, mas existia). Os iranianos, pressionados pelas sanções, estavam próximos de aceitar outro acordo mais duro, mas a China foi mais rápida e atropelou os EUA. Ofereceram um acordo de 400 bilhões de dólares aos iranianos e na sequência Teerã deu uma banana para Washington.

5ª parte

Muitas democracias podem vir a morrer nos próximos anos (senão a maioria delas). Trata-se de uma tendência difícil de ser derrubada por diversos fatores:

  1. O dito “arcabouço democrático” acumulou demandas demais (pautas raciais, identitárias etc.) e perdeu eficácia, tornando impraticável a governabilidade na maior parte dos países;
  2. Os sistemas democráticos se tornaram presas fáceis das grandes corporações (hoje em dia, dada a pretensa autoridade inquestionável conferida às Supremas Cortes, é muito fácil controlar um país, pois basta comprar alguns poucos juízes);
  3. Esses dois fatores combinados acabaram por afastar esse sistema das reais aspirações dos povos a ele submetidos. O dito sistema democrático imposto ao resto do mundo por EUA e Europa perdeu sua legitimidade não só por sua própria ineficácia, mas também porque as pautas impostas nada tem a ver com as culturas locais; e
  4. A maior parte dos países só mantém essa estrutura devido às pressões econômicas do Ocidente. Livres dela, certamente optarão por outros caminhos.

Isso começa a se agravar porque a China tem tomado lugar do Ocidente como parceiro comercial de vários países e nada exige do ponto de vista de regimes de governo. Esses países começam a perceber que adotar o modelo de democracia anárquica da Europa e EUA destrói a paz social e atrasa seu progresso.

Em resumo, no futuro, Europa e EUA não conseguirão mais impor seus regimes porque os Estados clientes terão outro parceiro que não exige essa cláusula, ficando livres para optar para o modelo que melhor lhes convier.

É aí que entra o caso brasileiro.

6ª parte

O Brasil caminha no fio de uma navalha onde numa ruptura parece ser inevitável. Talvez Bolsonaro não o faça, mas a esquerda seguramente o fará se voltar ao poder em 2023. Por volta de 2025 o comércio brasileiro com o Oriente estará tão intenso que quem quer que flerte com rupturas ou golpes (seja direita ou esquerda) não precisará temer por sanções do Ocidente – elas simplesmente se tornarão insignificantes (vide caso iraniano anteriormente citado).

Tudo o que a direita brasileira tem medo ou vergonha de fazer para parecer legalista e externar bom-mocismo, a esquerda fará sem piscar os olhos nem sentir embrulhos no estômago.

Quem quer que desfrute dessa situação futura de entrada abundante de capital estrangeiro, ambiente diplomático favorável e apoio político de uma superpotência poderá ficar no poder por décadas, pois não haverá mais predadores externos.

Última parte

Amigos, o poder é meritocrático. Mas não se trata de uma meritocracia moral, ética, benfazeja: a meritocracia do poder é aritmética. Se somar os insumos certos, você se torna merecedor, simples assim.

A direita, por ser formada por gente ordeira e trabalhadora, comete o erro infantil de achar que merece o poder por mandato divino – ledo engano, pois Deus não tem nada a ver com o triste destino de quem negligencia Maquiavel. É preciso saber jogar conforme os ditames pragmáticos do pensador florentino.

Seja qual for o bloco político que se assenhore do poder no Brasil nos próximos anos, ele deverá ficar por um bom tempo no trono por força das circunstâncias internacionais que lhe serão extremamente favoráveis.

Que os homens de bem tenham a luz, a sabedoria, e sobretudo a astúcia para conquistá-lo…

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13 comentários

  1. Nunca vi uma análise sobre a China feita com tanta pertinácia, sobriedade e conhecimento. Brilhante, inteligentíssimo.

    1. Defendo as ideias como arcabouço o pensamento dos mencheviques de esquerda como Martov ,e os de direita como o dos mencheviques de direita como Axelrold e Plekhanov,por questões pragmaticas mas evitando o viéis autocrata bolcheviques como Lenin e Trotsky e Bukharin,porém acredito que mesmo tendo contextointeressante não considero adequados por inteiro ao Brasil que deve modelar a reforma de base de João goulart em 1964 pois somos um povo apegado a liberdade individual que precisa da meritocracia ,nacionalismo hederiano,compartilhamento de raizes de outros povos mas sem abrir mão da sua identidade,e concordo não é uma questão de ideologia não vejo problema no liberalismo de raíz não esta palhaçada neoliberal que é nos imposta pelo pessoal da Faria Lima e dos EUA sabotando com seus asseclas a grandeza do continente até deles mesmo já imaginou uma America Latina integrada ajudando os EUA,Canadá e Europa num comercio justo num modelo de estrutura economica progressista com valores individuais mais importantes mas com forte conotação social num verdadeiro socialismo que de espaço ao liberalismo do New Deal corrigindo seus defeitos numa suposição moderna das prmissas de um Keynes,Celso Furtado, comoFranz List anulando por completo o sistema financeiro atual estabelecendo uma convivencia social e nacional adequada integrado num mercado comercial justo e também integrado a rota seda com força aprimorando o comercio mundial como o direito internacional equilibrando individual e coletivismo de um modo aceitável pode ser um jeito ingenuo de pensar mas considero razoável menos é claro por certos capitalistas regidos por uma fé imperial.

  2. O comentário do Comandante é válido, mas de visão unilateral. Fazendo um resumo dele, ele expressa que qualquer país, tendo a cobertura de uma superpotência pode fazer o que quiser. Isso está perto da verdade, mas não é verdade absoluta.
    O problema, que o Comandante não toca, é que a superpotência cobra um preço por essa proteção e é aí que o bicho pega. Até hoje estamos, queiramos ou não, sob o cobertor americano e, nos tempos de Trump, estivemos muito bem abrigados. Com Biden, ainda não se sabe bem, mormente porque não é ele que governa.
    Mas seja como for os EUA sob qualquer coloração ideológica não pode deixar seu flanco sul vulnerável a alienígenas.
    Mas no caso dos americanos, como dizia o Cristo, o fardo é leve e o jugo é suave.
    O mesmo não pode ser dito da China, ou melhor, do PCCh. Eles não se satisfazem em fazer negócios conosco, eles querem nos devorar. Eles não querem continuar comprando nossas commodities, eles querem abocanhar as fontes delas, sejam elas minerais ou agrícolas e já estão pouco a pouco conseguindo isso em uma guerra de 5ª geração que a maioria de nossos analistas ainda não percebeu. A China está em guerra conosco! Nós não estamos em guerra com ela mas ela avança a passos largos para o âmago de nosso País.
    Suponhamos que quiséssemos ficar sob um cobertor pacífico chinês. Quem acredita que isso seria possível? Se não comprarmos o 5G da Huawei por exemplo, despertaremos pesadas retaliações. Vejam o caso da Austrália!
    Enfim, é muita coisa para escrever aqui.

    1. Não sou ingênuo,numa relação de países o que prevalece é interesse,não acredito que a visão chinesa seja mais depredatoria a dos EUA mas este tem a sua concepção nacional,o que defendo para o Brasil é autonomia e fazer diferença é essencial somos do Hemisferio Sul mas somos ocidentais o que não devemos aceitar é a imcompetencia desses países levar a sua sociedade e compor aos povos mais fracos uma pauta que representa apenas uma parcela minima da sua classe dominante esta com muita habilidade fabrica fatos e medos aos povos dominados estabelecidos em preconceitos de classe e ideologico abrindo com muita facilidade o seu bem mais importante como nação que é o nacionalismo,os gringos estão apenas preocupados em tirar proveito em cima de consciencias ingenuas e atitudes de ursinho de pelucia, feroz por fora mas pacifico totalmente aceitando tudo que a seu predador faça,assim parece o meu país este sente confortável em ser escravo e capacho de seu producente opressor ianque.

  3. Artigo focado, didático e inteligente. Esclarecedor, parabéns comandante pela excelência, um verdadeiro professor!

  4. É exatamente por esse tipo de opinião do cmd Róbson que eu acompanho seu Canal, o conteúdo é de qualidade, extremamente profissional e isento de vícios políticos que reinaram no Brasil pós regime militar.

  5. “A direita, por ser formada por gente ordeira e trabalhadora, comete o erro infantil de achar que merece o poder por mandato divino – ledo engano, pois Deus não tem nada a ver com o triste destino de quem negligencia Maquiavel. É preciso saber jogar conforme os ditames pragmáticos do pensador florentino”

    Boa tarde comandante, a passagem acima deveria ser tatuada no braço de cada auxiliar da gestão Bolsonaro e até mesmo nele próprio.

    Todos os esforços deveriam ser direcionados na neutralização dos inimigos internos e num relacionamento pragmático com as potências Rússia e China.

    Acredito que ainda há tempo, apesar de ter cedido muito terreno aos seus opositores é possível “fazer de um limão uma omelete”

    Um forte abraço de Palmas-To.

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