A logística militar russa na Campanha de 1812

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Mikhail Kutuzov na Batalha de Borodino (Anatoly Pavlovich Shepelyuk, óleo sobre tela).

Por Marco Antonio de Freitas Coutinho e Julia Kornitskaia*

Mikhail Kutuzov na Batalha de Borodino (Anatoly Pavlovich Shepelyuk, óleo sobre tela).

Uma análise da logística militar russa na guerra contra as tropas napoleônicas durante a Campanha de 1812.


Este artigo apresenta um estudo sobre a logística militar russa na campanha contra as tropas napoleônicas, evento ocorrido no ano de 1812. No âmbito da historiografia existente no Brasil, muito pode ser lido sobre o citado conflito, mas pouco pode ser encontrado sobre o papel da logística, e menos ainda sob o ponto de vista de autores russos.

A logística das Forças Armadas russas possui uma tradição centenária, tendo suas origens no reinado do czar Pedro I, ainda no ano de 1700. A bibliografia russa sobre o tema é rica e constitui uma importante fonte de lições aprendidas e ensinamentos.

A metodologia adotada pelos autores foi direcionada, prioritariamente, para a pesquisa em textos originais de autores russos, o que permitiu descortinar novos horizontes. Por meio deste estudo, os autores buscaram identificar a influência da logística para a vitória das tropas russas contra os exércitos de Napoleão Bonaparte, assim como verificar a importância dos ensinamentos colhidos para a evolução da logística militar.

Introdução

A importância da logística militar para as ações de combate nas guerras e nos conflitos militares adquiriu crescente importância a partir do século XVIII, ao ponto de constituir um dos sistemas operacionais mais complexos para as Forças Armadas atuais, e cuja eficácia contribuirá em grande medida para o sucesso das operações militares.

O estudo das lições aprendidas pela logística militar de outros países pode contribuir em muito para o aperfeiçoamento da doutrina militar brasileira. Tais lições podem revelar caminhos seguidos por Forças Armadas que vivenciaram conflitos militares das mais variadas intensidades, e particularmente, quais soluções foram adotadas para a solução dos problemas logísticos enfrentados.

A logística para o apoio aos conflitos armados não pode ser improvisada ou baseada em estruturas temporárias, e mesmo as experiências vividas em tempo de paz são parte importante do processo de aperfeiçoamento contínuo que deve ser observado para a evolução das estruturas e da doutrina.

Estudar a evolução da logística militar nas Forças Armadas da Rússia, no período compreendido entre o início do século XVIII e o início do século XIX, pode constituir um empreendimento inovador para aqueles que se dedicam ao estudo das ciências militares, particularmente para aqueles que buscam o aperfeiçoamento da doutrina militar brasileira em geral, e do sistema operacional logístico em particular.

De fato, a partir do início do século XVIII tiveram lugar diversos acontecimentos na história militar da Rússia de grande interesse para o estudo da logística, dos quais podem ser destacadas as reformas militares implementadas por Pedro I e a Guerra Napoleônica de 1812.

No que diz respeito ao conflito verificado no ano de 1812, muitos autores o classificam como uma guerra total, no qual todo o potencial da nação russa foi canalizado para o esforço bélico. É justamente devido a esta característica que a campanha contra as tropas de Napoleão ficou conhecida na literatura russa como Guerra Patriótica. Neste contexto, a logística militar teve papel de relevo.

O próprio barão Henri Jomini, militar de origem suíça considerado um dos maiores teóricos da arte da guerra e que cunhou o próprio termo logística, serviu como oficial general do Exército russo no período da invasão napoleônica. Seu retrato encontra-se exposto no Museu Hermitage, localizado na cidade de São Petersburgo, em uma sala dedicada aos principais generais da Guerra Patriótica de 1812. Coube a ele a seguinte definição:

Logística é a arte de mover exércitos. Ela compreende as ordens e os detalhes das marchas e dos estacionamentos, assim como do abastecimento das tropas. Em outras palavras, é a base para a execução dos planejamentos estratégicos e táticos (JOMINI, 2015).


FIGURA 1: General Henri Jomini (Acervo do Museu Hermitage, São Petersburgo).

É importante destacar que as experiências vividas nos conflitos militares verificados a partir do século XVIII ainda são consideradas importantes para as Forças Armadas russas. Sobre o processo histórico de evolução da logística militar russa, o atual vice-ministro da Defesa e comandante logístico das Forças Armadas russas, general-de-exército Dmitri Bulgakov assim se pronunciou:

Por 311 anos, os órgãos de logística e de abastecimento de tropas sofreram mudanças drásticas, evoluindo com a melhoria dos métodos e meios empregados nos conflitos armados. Tudo isso foi determinado por uma série de fatores importantes: a situação econômica e política do país à época, o fornecimento para as Forças Armadas de novos equipamentos e armamentos, mudanças nas táticas e na doutrina das forças em operações, e tudo isso foi exigindo uma melhoria radical na nossa logística. Esta situação provocou ao longo do tempo mudanças organizacionais e estruturais, necessárias à gestão das forças como um todo, particularmente para a logística. Portanto, o processo de reforma e reestruturação em curso na logística das Forças Armadas russas não é um evento novo e nem isolado. (RÚSSIA, 2015).

O presente trabalho se propõe a buscar subsídios, na vastíssima literatura militar russa, que permitam levar a um entendimento geral sobre como sua logística militar evoluiu a partir do século XVIII, assim como sua influência no resultado da campanha de 1812. Da mesma forma que se observa no âmbito das Forças Armadas russas atuais, tais subsídios podem vir a contribuir para estudos que visem ao aperfeiçoamento da doutrina militar brasileira referente ao apoio logístico.

As origens da logística militar russa

O Czar Pedro I, Imperador e Autocrata de todas as Rússias, teve seu reinado (1682 a 1725) caracterizado pela implementação de medidas revolucionárias: construiu a cidade de São Petersburgo para ser a nova capital do Império e “abrir as portas para a Europa” (BUSHKOVITCH, 2012); tomou inúmeras medidas para modernizar a Rússia e sua sociedade; realizou reformas militares inovadoras. Pedro I pode ser considerado um governante que esteve muito à frente de seu tempo.


FIGURA 2: Czar Pedro I (Acervo do Museu Hermitage, São Petersburgo).

Sua obsessão em criar uma Marinha de Guerra e transformar a Rússia em um poderoso império foi notável. De forma a atingir seus objetivos com os meios e recursos de que dispunha, Pedro I procurou organizar seu reinado de forma bastante espartana, racionalizando custos e estruturas em vários órgãos da administração pública e nas Forças Armadas.

A criação dos cargos de intendência-geral e comissariado militar

No dia 18 de fevereiro de 1700, Pedro I assinou um decreto denominado “Sobre a superintendência por parte do Senhor Yazikov para gerir todos os estoques de gêneros destinados às tropas, passando a exercer o cargo denominado intendente-geral” (RÚSSIA, 2015). No mesmo dia, outro decreto do czar criou um órgão, denominado Comissariado Militar. Este órgão foi encarregado de adquirir e distribuir, de forma centralizada, as dotações de fardamentos, trens de guerra, cavalos e outros meios para as forças armadas (ILIN, 2015).

Tais decretos estabeleceram o embrião de uma estrutura unificada, destinada a atender em melhores condições as necessidades da Força Terrestre e da recém-criada Marinha de Guerra russa.

Por meio dos referidos decretos foi estabelecido o primeiro corpo de aquisições independente, sendo encarregado de prover suprimentos para as Forças Armadas e passando a realizar as tarefas de abastecimento, o que até hoje constitui uma das tarefas da logística de material para o apoio às tropas.

É interessante observar que tais estruturas não pertenciam diretamente às Forças Armadas (ILIN, 2015). No entanto, a criação dos referidos órgãos no ano de 1700 é considerada a raiz histórica da logística das Forças Armadas da Federação da Rússia (RÚSSIA, 2015).

Em 1711 foi estabelecida uma estrutura militar para as aquisições, guardando a estrutura básica civil que já havia sido adotada em 1700. Para a gestão do abastecimento no nível dos Exércitos de Campanha foram estabelecidos dois cargos de direção: o comissário-general e o intendente-general. Por sua vez, nos Regimentos foram criados os cargos de comissário e de intendente, a estes cabendo à realização das atividades logísticas e aquisições no nível da tropa, a fim de atender suas necessidades imediatas.

O Regulamento Militar de 1716

As medidas inovadoras de Pedro I para criar um Exército e uma Marinha modernos demandaram novos passos no sentido do aperfeiçoamento da estrutura existente. Estabelecido no início do século XVIII, o modelo adotado para o funcionamento da estrutura de comando e controle das Forças Armadas da Rússia foi resultado da experiência da Grande Guerra do Norte, contra a Suécia (de 1700 a 1721). A consolidação de tais experiências nos primeiros anos da referida guerra deu origem ao Regulamento Militar de 1716 (RÚSSIA, 2015).

No que se refere aos aspectos logísticos, a responsabilidade pelo abastecimento das tropas cabia ao Comandante do Exército (marechal-de-campo), por intermédio do comissário-general de campo, cujas atribuições eram as de fornecer às tropas recursos financeiros, uniformes, equipamentos, provisões diversas, armas e cavalos.

Por sua vez, o Regulamento de 1716 estabelecia que os chamados trens de guerra devessem ficar subordinados ao intendente-general, que assumiu o encargo de realizar a supervisão e coordenação do desdobramento das tropas em campanha. Nestas condições, cabia ao intendente-general, entre outras funções, criar a infraestrutura logística do exército de campanha, organizando o apoio logístico, desdobrando os meios e controlando a atividade de transporte.

As tarefas do apoio médico passaram a ser coordenadas e executadas por estruturas específicas, chefiadas no nível de exército de campanha por um cirurgião-general; no nível divisão por um doutor; nos regimentos por um farmacêutico; e nas companhias por um enfermeiro.

Portanto, a definição de onde seriam localizadas as instalações logísticas e de como e quando seriam realizadas as tarefas de transporte permaneciam como atribuições afetas ao intendente-general. Por outro lado, a definição do material a ser transportado, seu volume e quando e onde seria necessário seriam atribuições do comissário-general. Por sua vez, ao cirurgião-general caberia definir a organização da cadeia de tratamento e evacuação de feridos, mas sem ter controle algum sobre os meios necessários para tal.

A compartimentalização das tarefas de suprimento, saúde e transporte por diferentes chefias teria à época os seus motivos e condicionantes. Como exemplo pode ser citada especificamente a atividade de transporte, pois as carroças utilizadas à época eram consideradas como sendo equipamentos escassos e valiosos, fazendo com que a maior parte da frota fosse obtida por meio de mobilização e requisição de veículos civis (BRAGIN, 2013).


FIGURA 3: Carroça modelo padrão 1812 (Acervo do Museu Histórico do Estado da Rússia, Moscou).

A doutrina da época previa que, em casos de necessidade, as carroças poderiam ainda ser usadas para compor obstáculos e fortificações das linhas defensivas (ILIN, 2015) e que, portanto, seu emprego tinha também um caráter operativo, daí a decisão sobre o emprego delas ficar diretamente afeta ao intendente-general.

Neste sentido, a divisão das tarefas logísticas em campanha era complexa e fragmentada, contradições que foram mantidas no âmbito das Forças Armadas russas até o começo da guerra contra Napoleão, em 1812 (ILIN, 2015).

A guerra de 1812

A Guerra Patriótica de 1812, caracterizada pela invasão da Rússia pelos Exércitos Napoleônicos, foi pródiga em ensinamentos para a logística. Foi, sem dúvida, o evento central da história russa nas primeiras duas décadas do século XIX. Neste contexto, o estudo da logística na véspera e no decorrer da guerra ganha um significado especial.

Pelo lado francês, Napoleão pessoalmente se debruçou sobre os aspectos relativos aos preparativos logísticos para a campanha destinada a conquistar o Império Russo. Questões como transporte, apoio médico e suprimento receberam atenção especial nos planejamentos realizados, pois o imperador da França antevia as dificuldades que lhe reservaria o deslocamento de um exército de quase 500.000 homens, combatendo por distâncias imensas e em condições inóspitas até a conquista de seus objetivos finais.

Pelo lado russo, por sua vez, boa parte da estrutura existente e da doutrina logística obedecia aos princípios gerais de organização estabelecidos ainda no reinado de Pedro I, já sabidamente marcados por deficiências de coordenação entre as gestões do abastecimento e do transporte.

Estruturas da logística às vésperas da Guerra de 1812

O evento mais significativo para a evolução da logística nas Forças Armadas russas, adotado desde o reinado de Pedro I, foi a criação do Ministério dos Assuntos Militares Terrestres (Ministério da Guerra), ocorrido no ano de 1802. O primeiro ocupante do cargo foi o general Sergey Vyazmitinov, que havia ocupado durante muitos anos o cargo de comissário-general.

Uma de suas primeiras medidas foi reunir, sob uma única estrutura, os escritórios do comissário-general e do intendente-general, criando o Departamento de Intendência. No nível dos corpos de exércitos, divisões e regimentos, as funções equivalentes também foram unificadas, dando origem ao cargo de intendente.

Entretanto, as campanhas militares da Prússia, nos anos 1805 a 1807, quando as tropas russas integraram a aliança contra Napoleão, revelaram deficiências significativas na organização do apoio logístico às tropas. Os comandantes não tinham planos de abastecimento para os gêneros alimentícios, as tropas não tinham meios para transporte à longa distância e não foram tomadas medidas para disciplinar o fluxo nas estradas militares. O planejamento logístico baseado no aproveitamento de recursos locais na Prússia revelou-se equivocado (KUZMIN, 2001).

O insucesso das Forças Armadas russas na campanha de 1805 a 1807 contra a França levou à liderança militar do país a imputar à logística a culpa pelo fracasso militar, fazendo com que o Departamento de Intendência fosse desativado no nível do Ministério da Guerra no ano de 1807 (ILIN, 2015).

A preparação da Rússia para uma nova guerra contra a França iniciou-se ainda em janeiro de 1810, com a nomeação do general Barclay de Tolly para o cargo de Ministro da Guerra. Sabedor dos preparativos em andamento, na França e em outros países europeus, para uma invasão em larga escala da Rússia, De Tolly buscou rapidamente programar reformas para modernizar as Forças Armadas, cujas diretrizes gerais constaram de um memorando denominado “A preparação das fronteiras ocidentais da Rússia” (RÚSSIA, 2014a).


FIGURA 4: General Barclay de Tolly (Acervo do Museu da Guerra Patriótica de 1812, Moscou).

Ainda em janeiro de 1812, o general Barclay de Tolly publicou um importante documento normativo, denominado “Normas para gerenciamento de um grande exército em ação” (RÚSSIA, 2014). Tal norma constituiu um marco importantíssimo no desenvolvimento da arte da guerra e, particularmente, sobre o funcionamento da logística em campanha. Ficou definido o regulamento de abastecimento das tropas tanto no território da Rússia, quanto nas situações em que estivesse operando no exterior.

As referidas normas para funcionamento dos órgãos da logística levaram em consideração a experiência de abastecimento das tropas em guerras e campanhas militares da primeira década do século XIX, e reservaram grande atenção ao estabelecimento antecipado de reservas de armamentos, munições, produtos alimentícios e rações no teatro de operações.

O foco das reformas de Barclay de Tolly foram as medidas para aperfeiçoar a estrutura de comando e controle e a preparação das reservas de pessoal e material, com o pré-posicionamento de tropas e reservas de suprimento ao longo da fronteira. Para tal, estimativas logísticas foram elaboradas para quantificar as necessidades de gêneros alimentícios, forragens, cavalos, carroças, munições e armamentos. Também foram estimadas as prováveis baixas em combate, a fim de se adequar a estrutura de hospitais existentes, assim como prever o recompletamento de pessoal.

Tal esforço permitiu reunir reservas orgânicas significativas de produtos necessários para as tropas. Como exemplo, antes da invasão napoleônica foi possível estabelecer uma reserva de farinha suficiente para alimentar todo o pessoal dos três Exércitos de Campanha existentes (totalizando 205.000 homens) por um período de seis meses (ILIN, 2015).

No que diz respeito ao aperfeiçoamento da estrutura de comando e controle, foi alterada a organização e os quadros de pessoal dos setores responsáveis pela logística. Nos quadros de pessoal das divisões, corpos de exército e exércitos foram criadas estruturas de intendência de campanha, assim como elementos de estado-maior no nível de exércitos e corpos de exércitos, ficando estes responsáveis pelo planejamento do abastecimento de suas tropas.

No que se refere ao apoio de saúde, foram tomadas medidas para melhorar o atendimento de pacientes em hospitais. A norma de alimentação passou a ter mais calorias, levando em consideração os hábitos alimentares da tropa, assim como adotados procedimentos visando a prevenção de doenças. No ano de 1810 foi tomada a decisão de adotar a instrução denominada “Sobre a prevenção de doenças nas tropas” (ILIN, 2015).

Ainda no que se refere à saúde, o Departamento do Serviço Médico nas tropas foi separado da medicina civil. Como resultado, foram elaborados projetos de organização de hospitais móveis para garantir a remoção dos feridos do campo de batalha até os hospitais militares fixos. Entretanto, as referidas medidas não foram implementadas antes da Guerra de 1812. Ao eclodir o conflito, faltava pessoal médico qualificado e comissários capazes de organizar o funcionamento de hospitais. Não existiam planos detalhados para a organização dos estabelecimentos médicos previstos e para a evacuação de doentes e feridos.

No que se refere ao fornecimento de uniformes, equipamentos e outros produtos para consumo das tropas, foram organizados depósitos móveis para que o abastecimento pudesse ser realizado de forma mais rápida. Como preparação para o possível conflito que se visualizava, tais depósitos foram desdobrados nas províncias da fronteira oeste, tendo sido estabelecidas consideráveis reservas de suprimentos de toda ordem. Além disso, foi declarado o estado militar nas províncias ocidentais, o que permitiria a mobilização de recursos eventualmente escassos.


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Particularmente no que diz respeito ao fardamento, foi prevista inclusive a aquisição de uniformes de inverno, que foram estocados nas bases permanentes dos regimentos e demais unidades.

Em termos de estruturas de coordenação da logística, o Ministério da Guerra possuía no ano de 1812 três departamentos: o Departamento de Provisões, o Comissariado (finanças) e o Departamento do Serviço Médico.

Houve significativos avanços no campo do comando e controle da logística, pois os planejadores logísticos passaram a fazer parte dos estados-maiores, e ainda, passaram a ter que elaborar planejamentos para abastecer o exército com armamentos, munições, gêneros alimentícios, fardamento, equipamento, pagamento de pessoal, assim como organizar as atividades de transporte e de saúde.

A logística durante a ofensiva napoleônica

A preparação logística do campo de batalha para a Guerra de 1812, realizada pelos planejadores militares da Rússia, deixou de considerar um fator de grande importância: as possibilidades do inimigo.

Napoleão, de forma oposta, procurou obter o máximo de informações sobre o dispositivo russo, particularmente sobre a localização dos depósitos de suprimentos, cuja captura era um dos objetivos essenciais para viabilizar o avanço previsto nas fases posteriores da guerra.

Logo após a invasão pelas tropas napoleônicas, o comando das forças russas rapidamente identificou que o desdobramento dos armazéns e depósitos não correspondia à localização das próprias tropas e à natureza das ações inimigas em andamento. Como resultado, até 40% dos estoques das principais reservas ficaram fora da zona de ação das grandes unidades envolvidas.

A decisão do general Barclay de Tolly de evitar uma batalha decisiva fez com que as tropas em constante retraimento não tivessem condições de evacuar suas reservas de suprimentos. Portanto, as reservas logísticas russas tiveram de ser queimadas, assim como uma parte considerável acabou por cair em mãos do inimigo. Agravando a situação resultante do colapso no sistema de abastecimento, as tropas em retirada passaram a recolher alimentos dos moradores locais.

Como resultado, as grandes reservas de alimentos estocadas nas províncias ocidentais foram destruídas ou tomadas pelo inimigo. As áreas à retaguarda do teatro de operações passaram a sofrer uma grande sobrecarga, uma vez que tiveram de suprir com recursos locais as tropas que recuavam em direção à Moscou.


FIGURA 5: As localidades onde se armazenavam estoques de suprimentos foram incendiadas (Acervo do Museu da Guerra Patriótica de 1812, Moscou).

O Departamento de Provisões do Ministério da Guerra recebeu a missão de reorganizar a estrutura existente e realizar um planejamento de contingência. Para tal, decidiu fornecer às tropas as reservas existentes nas províncias mais distantes do teatro de operações, inclusive por meio de mobilização. Neste sentido, os governadores das regiões de Tula, Kaluga, Orel, Ryazan e Vladimir receberam missão de preparar pão seco, carne salgada e feno, ficando em condições de despachar tais produtos para as tropas.

Devido ao caráter mais móvel que assumiu a campanha, a necessidade de aumentar a quantidade de cavalos disponível obrigou a elaboração de um planejamento específico para essa finalidade, inclusive para o aumento considerável do consumo de ração para os equinos (feno).

No decorrer da campanha, o objetivo principal das ações militares russas passou a ser o desgaste das tropas de Napoleão. A Batalha de Borodino, realizada no dia 7 de setembro de 1812, embora inconclusiva em seu resultado imediato, representou um grande revés para as forças de Napoleão Bonaparte, pois não foi atingido o objetivo de fixar e destruir os exércitos russos, já sob o comando do marechal Kutuzov.

Nesta fase defensiva da campanha, a etapa mais importante na organização de apoio médico às tropas russas foi vivenciada justamente na preparação para a Batalha de Borodino, quando os hospitais móveis e unidades de transporte de feridos foram formados e abastecidos com os meios necessários.

Prevendo baixas significativas, o comandante-em-chefe, marechal Kutuzov, determinou ao general-intendente Vassiliy Sergeyevich Lanskoi que fosse organizada a alimentação e a assistência médica aos feridos a serem evacuados para a cidade de Moscou. O plano de apoio médico da batalha partia de uma previsão de baixas estimada em 20 mil feridos e cinco mil mortos. Do número total das baixas previstas, estimou-se ainda um total de quatro mil feridos graves a serem evacuados em meios de transporte e 16 mil feridos leves, capazes de deslocar-se a pé.

Entretanto, as baixas totais atingiram o dobro do previsto inicialmente, provocando enormes transtornos para a hospitalização e a evacuação de feridos.

Após a Batalha de Borodino, as tropas francesas haviam esgotado seus recursos logísticos, obrigando Napoleão a tomar a difícil decisão de continuar avançando, conquistar Moscou e capturar os preciosos recursos locais que supunha ali existir. Entretanto, Napoleão encontrou em Moscou apenas uma cidade evacuada e incendiada.


FIGURA 6: Napoleão examina as ruínas de Moscou (Acervo do Museu da Guerra Patriótica de 1812, Moscou).

Com relação à evacuação da cidade de Moscou, uma das principais dificuldades enfrentadas foi a retirada da cidade dos doentes e feridos baixados nos hospitais da cidade. Cerca de 30 mil pacientes ficaram ali inicialmente concentrados, aguardando transporte. Com a ordem de evacuação da cidade, em três dias se logrou retirar de Moscou cerca de 20 mil feridos, mediante o emprego de carroças. Cerca de quatro mil feridos foram evacuados em 10 navios, pelo rio Moscou. Mesmo com este esforço, um total de quase seis mil feridos teve que ser abandonado na cidade. Aqueles que eram capazes de andar saíam por conta própria de Moscou, mas eram obrigados a tentar conseguir alimentos com a população local, criando desordens e atrapalhando movimento das tropas.


FIGURA 7: Incêndio e evacuação de Moscou (Acervo do Museu da Guerra Patriótica de 1812, Moscou).

A logística durante a contraofensiva russa

Com o exército preservado, Kutuzov aguardou a chegada do inverno e a acumulação de novas reservas de suprimentos, o momento que considerava ideal para o início de uma contraofensiva.

De fato, até o início da fase ofensiva, o esforço concentrado do Departamento de Provisões do Ministério da Guerra da Rússia permitiu que fossem criadas as reservas necessárias. Segundo o relatório do general-intendente Lanskoi, no dia 5 de outubro havia uma reserva de suprimento suficiente para alimentação de 120 mil homens durante 20 dias.

No que diz respeito ao transporte, somente no período de 14 a 18 de outubro de 1812, um total de 3.200 carroças pôde ser reunido, o que ainda se mostrou insuficiente, uma vez que permitiu o embarque de apenas uma parte da reserva orgânica prevista.

Após o início da ofensiva russa, uma manobra logística foi implementada, na qual os transportes passaram a se deslocar num eixo paralelo ao de deslocamento do grosso das tropas, ficando em condições de entregar gêneros e suprimentos de forma rápida, inclusive para a vanguarda.

Entretanto, devido às dificuldades do inverno rigoroso, os deslocamentos dos comboios de suprimento começaram a enfrentar dificuldades, dando origem a problemas com abastecimento das tropas e na reposição dos estoques. O marechal Kutuzov destacou a importância do abastecimento para o sucesso das operações ofensivas:

Eu não encontro palavras para descrever as vantagens que poderiam ser obtidas se o fornecimento do material às tropas fosse ininterrupto, para atender as necessidades. E ao contrário, uma entrega lenta de produtos às tropas é capaz de interromper o movimento das tropas e parar completamente a perseguição ao inimigo. (KUZMIN, 2001).

Em função destas dificuldades, o general-intendente Lanskoi reorganizou o dispositivo do apoio logístico, e em coordenação com os governadores locais conseguiu reunir 10 mil carroças procedentes das províncias de Kaluga e Ryazan, e com isso pode encaminhar para as tropas as reservas que haviam sido armazenadas nas cidades de Kaluga, Trubchevsk e Pskov.

Outro aspecto que se tornou problemático foi o material salvatado e capturado, pois na retaguarda dos regimentos acumulava-se um grande número de armamentos e munições recolhidos dos mortos e feridos. Com isso, os comboios ficavam progressivamente mais pesados e atrapalhavam o movimento das tropas. A situação precisou de uma solução no mais alto nível. Na sua ordem do dia de 13 de agosto, o próprio imperador da Rússia, Alexandre I, escreveu:

Devido ao movimento constante dos regimentos, acontece que os bens dos mortos, como por exemplo, as munições, armas etc., em sua maior parte são repassados aos hospitais e outros locais na retaguarda do Exército. Com isso, acho necessário ordenar que funcionários especiais devam recolher todas as munições e armamentos em excesso e enviar para Moscou. (KUZMIN, 2001).

No que diz respeito aos uniformes de inverno, absolutamente necessários para se enfrentar o rigoroso inverno russo, a decisão inicial de armazená-los nos depósitos das bases permanentes dos regimentos se mostrou inadequada, criando problemas adicionais para a sua distribuição às tropas em meio às ações ofensivas.

A mobilidade passou a ser uma característica marcante deste conflito. Neste mister, cresceu de importância a capacidade de transporte, requerendo uma quantidade enorme de cavalos e carroças para viabilizar o abastecimento e a evacuação de feridos.


FIGURA 8: Marechal Kutuzov (Acervo do Museu da Guerra Patriótica de 1812, Moscou).

Observa-se que a grande evolução verificada neste conflito foi a inserção da logística nos trabalhos de estado-maior. Isto permitiu a elaboração de planejamentos iniciais para a campanha e de planejamentos contingentes no decorrer dela, situação particularmente utilizada na fase da contraofensiva russa, quando as estruturas inicialmente viabilizadas para o apoio logístico se mostraram insuficientes, tendo sido necessária a adoção de ajustes e a mobilização de um número maior de recursos e meios de transporte.

Em que pese o fato de a literatura ocidental atribuir apenas ao inverno russo a derrota dos exércitos de Napoleão na Guerra de 1812, observa-se que a logística também condicionou fortemente o resultado da campanha.

Conclusão

A adoção de estruturas para a realização das tarefas de apoio logístico no âmbito das Forças Armadas russas foi uma consequência lógica da estratégia adotada, desde os tempos de Pedro I, para a racionalização de custos e estruturas. Entretanto, as medidas adotadas para a compartimentalização de responsabilidades pela execução de tarefas por diferentes órgãos e chefias ao longo da evolução do sistema logístico foram decorrentes de motivos práticos e mesmo condicionantes operacionais, mas invariavelmente levaram ao fracasso no campo de batalha quando foi necessário empregá-lo.

Por outro lado, a elaboração de estimativas logísticas e o pré-posicionamento de suprimentos constituíram medidas de planejamento que foram consideradas inovadoras à época, mas que ainda constituem desafios para nossa logística, mesmo atualmente.

Outra grande evolução verificada no sistema logístico das Forças Armadas russas ao longo do período abrangido pelo presente trabalho foi a crescente inserção da logística nos trabalhos de estado-maior. Isto permitiu corrigir rumos e elaborar planejamentos contingentes no decorrer delas, revertendo resultados iniciais negativos e conquistando a vitória. Neste sentido, observa-se que a logística teve grande contribuição para o resultado da campanha.

A história militar brasileira não vivenciou conflitos tão intensos e que provocaram tanta destruição, mortes e violência quanto os vivenciados pela Rússia ao longo dos séculos, dos quais este trabalho logrou apresentar apenas um dos mais relevantes. Entretanto, a experiência acumulada pelas Forças Armadas da Federação da Rússia em tais conflitos permitiu moldar a estrutura e a doutrina atualmente existentes naquele país, inclusive na sua logística, e tais ensinamentos podem ser de interesse para a evolução da doutrina militar brasileira referente ao apoio logístico em operações.


*Marco Antonio de Freitas Coutinho, coronel da reserva do Exército Brasileiro, é bacharel em Ciências Militares pela AMAN, mestre em Operações Militares pela EsAO e em Ciências Militares pela ECEME. É pós-graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e mestrando em Ciência Política Internacional pela Fundação Universitária Iberoamericana (Espanha). Pode ser contatado pelo e-mail: marcoutinho@hotmail.com.

*Julia Kornitskaia é pós-graduada em Letras pela Universidade Estatal de Moscou, com especialização em Tradução/Interpretação, Filologia e Docência do Ensino Superior. Atualmente é Secretária da Aditância de Defesa, Naval, do Exército e Aeronáutica do Brasil na Federação da Rússia.


Referências

BRAGIN, Mikhail G. Em tempos difíceis: 1812. Moscou: Labirinto, 2013.

BULGAKOV, Dimitri V. A Logística em Combate: 65º aniversário da vitória na Grande Guerra Patriótica. Moscou: Jornal Estrela Vermelha, 2010.

BUSHKOVITCH, Paul. História concisa da Rússia. Nova Iorque: Cambridge, 2012.

ILIN, Igor L. A logística das Forças Armadas da Federação Russa: nota histórica. Disponível em: http://armyrus.ru/index.php?option=com_content&task=view&id=47&Itemid=76

JOMINI, Henri. A Arte da Guerra. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/13549/13549-h/13549-h.htm

KUZMIN, Anatoly A. A Logística do Exército Russo na Guerra de 1812: um estudo histórico. 2001. 46 f. Dissertação. Universidade Militar, Moscou, 2001.

RÚSSIA. Ministério da Defesa. Normas para gerenciamento de um grande exército em ação. São Petersburgo, 1812. Disponível em: http://www.knigafund.ru/books/74494/read#page8

RÚSSIA. Ministério da Defesa. Exército russo na véspera da Guerra de 1812. Moscou, 2012. Disponível em: http://mil.ru/et/war/more.htm?id=11052905@cmsArticle

RÚSSIA. Ministério da Defesa. Ordem do dia: 311º aniversário da Logística das Forças Armadas. Moscou, 2014. Disponível em: http://function.mil.ru/news_page/person/more.htm?id=10631734@cmsArticle

RÚSSIA. Ministério da Defesa. Regulamento militar: sobre os deveres dos Generais, Marechais de Campo, Tenentes-Generais e outros postos, enquanto pertencerem às fileiras do Exército, e outras tarefas e comportamentos militares que cada posto deve adotar. São Petersburgo, 1716. Disponível em: http://www.hist.msu.ru/ER/Etext/Ystav1716.htm

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6 comentários

  1. Parece-me – e gostaria de maiores informações a respeito (talvez um artigo futuro) – que a logística do Exército Imperial Brasileiro, na Guerra do Paraguay, teve enormes dificuldades logísticas após atravessar o Passo da Pátria. O abastecimento sofrível das tropas encalhou o conjunto do exército aliado. Em que pese o gênio tático de Osório, a eficiência das baterias de Mallet e a condução hesitante de Mitre, apenas com a chegada de Caxias a questão foi encaminhada para uma solução adequada, que demandou tempo e organização que, uma vez completadas, levou os aliados à passagem do Chaco e a brilhante Dezembrada. Pessoalmente, sempre considerei que Caxias, se estivesse no exército britânico, seria um novo Wellington.

    1. Boa noite Osmar! Obrigado pela pergunta. Esse é um tema bastante interessante. Tenho um estudo sobre isso também. Vou ver se publico em breve. O detalhe da logística na Guerra do Paraguai era o apoio que era prestado pelos navios da Marinha Imperial. Os navios eram usados como depósitos móveis, e eram eles que realizavam o transporte de carga, pessoal e feridos para hospitais à retaguarda. Como o TO se desenvolveu ao longo do Rio Paraguai, isso era muito conveniente e funcionou até bem para os padrões da época. Veja, já tivemos uma logística conjunta funcionando e pouca gente se dá conta! Na campanha da cordilheira, fase final, é claro que o afastamento da tropa terrestre do eixo de suprimento, o rio, tornou tudo mais difícil. Nesta fase, certamente as tropas tiveram que se valer de meios locais e as dificuldades foram maiores. Forte abraço!

  2. Complementando o comentário anterior, não me parece que o golpe militar republicano tenha permitido a melhoria logística, tendo como pano de fundo os desastres acumulado no massacre da Canudos e do Contestado.

    1. Obrigado novamente! Excelente comentário. A experiência na Guerra do Paraguai se tentou replicar na Campanha de Canudos. Pouca gente sabe, mas uma Divisão Naval foi criada para apoio às tropas que foram enviadas para a Bahia. Mas logicamente o apoio ficava em Salvador. De lá para o sertão não havia qualquer estrutura logística ou cadeia de apoio estruturada. Como exemplo, alunos de medicina de Salvador foram convocados para prestar o apoio de saúde. Sem qualquer estrutura de campanha. Deu no que deu… as primeiras expedições resultaram num fracasso total, justamente pela falta de meios que permitissem à tropa operar e durar na ação.

    2. Obrigado novamente pelo excelente comentário Osmar. A experiência adquirida pela logística na Guerra do Paraguai, baseada no apoio naval, se buscou replicar na Campanha de Canudos. Pouca gente sabe, mas uma Divisão Naval foi criada para apoiar as operações na Bahia. Obviamente, o apoio que vinha do Rio só chegava à Salvador… e nenhuma estrutura foi prevista e organizada para apoiar as tropas que se dirigiam para o sertão, principalmente nas primeiras expedições. Isto contribuiu decisivamente para o desastre que se viu. Cito o exempo do apoio de saúde. Mobilizaram alunos de medicina da capital baiana para que desempenhassem o papel de médicos militares (os formados se recusaram a participar). Sem estrutura alguma de hospitais de campanha. Tudo mais em termos de logística foi improvisado. Somente com a intervenção do Gen Bittencourt, na fase final, foi possível minimamente estruturar um apoio logístico. Forte abraço!

  3. Obrigado novamente pelo excelente comentário Osmar. A experiência adquirida pela logística na Guerra do Paraguai, baseada no apoio naval, se buscou replicar na Campanha de Canudos. Pouca gente sabe, mas uma Divisão Naval foi criada para apoiar as operações na Bahia. Obviamente, o apoio que vinha do Rio só chegava à Salvador… e nenhuma estrutura foi prevista e organizada para apoiar as tropas que se dirigiam para o sertão, principalmente nas primeiras expedições. Isto contribuiu decisivamente para o desastre que se viu. Cito o exempo do apoio de saúde. Mobilizaram alunos de medicina da capital baiana para que desempenhassem o papel de médicos militares (os formados se recusaram a participar). Sem estrutura alguma de hospitais de campanha. Tudo mais em termos de logística foi improvisado. Somente com a intervenção do Gen Bittencourt, na fase final, foi possível minimamente estruturar um apoio logístico. Forte abraço!

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