Por Giuseppe Gagliano*
O conflito na Ucrânia é resultado de uma complexa “guerra das sombras”, orquestrada pela CIA, MI6 e inteligência ucraniana; Suas operações secretas escalaram as tensões, levando à invasão russa.
O conflito ucraniano, que culminou na invasão russa de fevereiro de 2022, não pode ser totalmente compreendido sem analisar a complexa rede de operações secretas que transformaram a Ucrânia em um epicentro do confronto OTAN-Rússia.
Esta “guerra das sombras”, orquestrada principalmente pela CIA americana e pelo MI6 britânico em colaboração com os serviços de inteligência ucranianos (SBU e GUR), desempenhou um papel decisivo na escalada das tensões geopolíticas. Por meio de uma análise aprofundada das fontes disponíveis, este artigo explora a dinâmica oculta dessas operações, suas implicações estratégicas e como elas alimentaram a percepção russa do cerco ocidental, com base no excelente ensaio publicado recentemente por Maxime Chaix, intitulado La guerre de l’ombre en Ukraine (Erik Bonner, maio de 2025).
Fundamentos da Guerra Subterrânea
De acordo com uma investigação do New York Times publicada em fevereiro de 2024, a CIA iniciou uma colaboração intensiva com os serviços de inteligência ucranianos já em 2014, após o golpe que derrubou o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych. Este evento marcou um ponto de virada, transformando a Ucrânia em um posto avançado estratégico para operações ocidentais contra a Rússia. A CIA investiu recursos consideráveis para modernizar o SBU (Serviço de Segurança da Ucrânia) e o GUR (Diretoria Principal de Inteligência Militar), fornecendo treinamento, tecnologias avançadas e suporte operacional para conduzir ações secretas. Essas operações incluíam coleta de informações, sabotagem, assassinatos seletivos e ataques transfronteiriços, muitas vezes direcionados contra alvos russos de alto escalão.
Ao mesmo tempo, o MI6 britânico desempenhou um papel complementar, fortalecendo a rede clandestina por meio da cooperação trilateral com a CIA e o GUR. Um exemplo notável é a criação de uma célula operacional secreta em Haia, reunindo representantes dos três serviços para coordenar ações contra a Rússia. Essa rede se concentrava em recrutar informantes dentro da Federação Russa, interceptar comunicações confidenciais e realizar operações de sabotagem perto das fronteiras russas. O objetivo era claro: enfraquecer a capacidade de Moscou de projetar sua influência na Europa Oriental, usando a Ucrânia como base operacional.
Operações Secretas: Detalhes e Impacto
As operações secretas na Ucrânia se intensificaram ao longo dos anos, com uma escalada significativa depois de 2014. De acordo com o Washington Post (outubro de 2023), a CIA forneceu ao SBU e ao GUR equipamentos avançados, como sistemas de comunicação criptografados, drones e dispositivos de interceptação eletrônica, além de financiar a criação de unidades especiais, como a “Quinta Diretoria” do SBU. Esta unidade, isolada de outros departamentos do serviço, dedicava-se a “medidas ativas” contra a Rússia, ou seja, operações de sabotagem, desinformação e ação direta, muitas vezes realizadas em colaboração com o MI6.
Um episódio importante ocorreu em 2015, quando o general Valeriy Kondratiuk, então chefe do GUR, passou documentos ultrassecretos sobre a Frota Russa do Mar do Norte, incluindo detalhes de novos submarinos nucleares, para a estação da CIA em Kiev. Essa ação, realizada sem a aprovação da Casa Branca, evidenciou a autonomia operacional dos serviços ucranianos, que muitas vezes agiram fora das diretrizes estabelecidas pelos Estados Unidos. O episódio gerou tensões em Washington, onde autoridades temiam que tais ações pudessem provocar uma reação direta de Moscou.
Outra unidade importante foi a Unidade GUR 2245, treinada pela CIA para operar atrás das linhas inimigas. Composta por aproximadamente 5.000 membros, esta unidade era responsável por missões de alto risco, como incursões transfronteiriças e ataques de drones contra alvos russos. Em 2016, o tenente-coronel Kyrylo Budanov, futuro chefe do GUR, participou de uma operação clandestina em Donbass, infiltrando-se em território controlado por separatistas pró-Rússia para sabotar um depósito de munições. A operação, inicialmente bem-sucedida, terminou em uma emboscada russa que custou a vida de vários operadores ucranianos, destacando os riscos dessas missões.
Provocações e Resposta Russa
Operações secretas ucranianas, muitas vezes realizadas com apoio logístico e tecnológico da OTAN, incluíram ataques diretos ao território russo, apesar dos alertas de Washington contra ações que possam provocar uma escalada. O uso de mísseis de longo alcance, como o britânico Storm Shadow e o americano HIMARS, permitiu à Ucrânia atingir alvos estratégicos na Rússia, como depósitos de combustível e infraestrutura militar. Esses ataques alimentaram a narrativa do Kremlin de que a OTAN estava travando uma guerra por procuração contra a Rússia por meio da Ucrânia.
O presidente Vladimir Putin acusou repetidamente a CIA e o MI6 de manipular Kiev para incitar o sentimento antirrusso. Essa percepção foi reforçada por eventos como o assassinato do coronel Maksim Shapoval, chefe da Unidade 2245 do GUR, em junho de 2017. Esse ataque, atribuído aos serviços russos, foi interpretado como uma resposta direta às operações clandestinas ucranianas. Putin explorou esses eventos para justificar sua retórica de uma ameaça existencial representada pelo Ocidente, que culminou na invasão de 2022.
Contradições do Ocidente
Apesar do apoio da CIA e do MI6, os tomadores de decisão ocidentais estavam cientes dos riscos de uma escalada descontrolada. Sob o governo Obama, o diretor da CIA, John Brennan, tentou estabelecer “linhas vermelhas” para limitar ações provocativas dos ucranianos. No entanto, essas linhas eram frequentemente confusas e difíceis de aplicar, dada a autonomia operacional do SBU e do GUR. Por exemplo, em 2016, uma operação fracassada em Donbass, que resultou na morte de vários operadores ucranianos, irritou a Casa Branca. O vice-presidente Joe Biden contatou o presidente ucraniano Petro Poroshenko para expressar suas preocupações, enfatizando que tais ações poderiam colocar em risco o apoio ocidental.
LIVRO RECOMENDADO:
La Guerre de L’ombre en Ukraine: Les Raisons Cachées du Conflit OTAN-Russie
• Maxime Chaix (Autor)
• Capa comum
• Edição Francês
Com a chegada do governo Trump, a colaboração com a Ucrânia se intensificou, apesar da relutância inicial do presidente. Figuras como o diretor da CIA, Mike Pompeo, e o conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, aprovaram programas de treinamento avançado e fornecimento de armas, fortalecendo ainda mais as capacidades ucranianas. No entanto, essa escalada ajudou a alimentar a paranoia russa, percebida como uma ameaça direta à segurança nacional.
Contexto Geopolítico: Uma Tragédia das Grandes Potências
De acordo com o analista John Mearsheimer, o conflito ucraniano é parte da “tragédia da política das grandes potências”, onde nações que operam em um sistema internacional anárquico buscam maximizar sua segurança, muitas vezes interpretando as ações de outros como ameaças existenciais. A expansão da OTAN para o leste, combinada com o apoio ocidental à Ucrânia, foi percebida pela Rússia como uma tentativa de cerco estratégico. As operações secretas da CIA e do MI6 ampliaram essa percepção, transformando a Ucrânia em um ator capaz de ameaçar diretamente a Rússia.
George Friedman, fundador da Stratfor, destacou que os Estados Unidos adotaram uma estratégia consistente para evitar o surgimento de uma potência dominante na Europa. Nesse contexto, a Ucrânia se tornou uma arena crucial para combater a influência russa, mas ao custo de um conflito que corre o risco de desestabilizar todo o continente. Avisos de especialistas como Jack Matlock e Henry Kissinger, que já em 2008 destacaram os riscos da expansão da OTAN, foram ignorados, ajudando a criar as condições para a crise atual.
Sabotagem do Nord Stream e Tensões Transatlânticas
Um capítulo controverso na guerra secreta é a sabotagem dos gasodutos Nord Stream, que evidenciou tensões entre os Estados Unidos e seus aliados europeus. Embora não haja provas definitivas, muitas pistas sugerem o envolvimento de serviços ocidentais, provavelmente em colaboração com a Ucrânia. Este episódio, combinado com sanções contra o Nord Stream 2, criou atrito com a Alemanha e a Áustria, que consideravam os gasodutos um elemento-chave da segurança energética europeia.
Em 2021, o governo Biden tentou consertar as relações com os aliados europeus suspendendo temporariamente as sanções contra o Nord Stream 2. No entanto, operações secretas na Ucrânia continuaram a complicar o diálogo transatlântico, já que Washington teve que equilibrar seu apoio a Kiev com a necessidade de manter a coesão da OTAN.
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A guerra secreta na Ucrânia, orquestrada pela CIA e pelo MI6 em colaboração com o SBU e o GUR, transformou o país em um campo de batalha estratégico contra a Rússia. Essas operações, ao mesmo tempo em que fortaleciam as capacidades ucranianas, ajudaram a desencadear uma espiral de escalada que levou à invasão russa em 2022. A percepção da Rússia sobre o cerco da OTAN, alimentada por anos de atividades secretas, desempenhou um papel fundamental na decisão de Putin de agir militarmente.
O conflito ucraniano, portanto, não é apenas uma guerra territorial, mas o resultado de uma competição estratégica entre grandes potências, onde a Ucrânia se tornou um campo de batalha para interesses divergentes. A responsabilidade é compartilhada: a Rússia respondeu com uma política agressiva, mas o Ocidente, por meio de suas operações clandestinas, contribuiu para criar as condições para uma crise que poderia ter sido evitada com uma abordagem mais cautelosa.
Publicado no Le Diplomate.Media.
*Giuseppe Gagliano é presidente do Centro Studi Strategici Carlo de Cristoforis, em Como, Itália. É membro do comitê internacional de assessores científicos do Centre Français de Recherche sur le Renseignement (Cf2R).