
A Restinga de Kinburn é prioridade nas negociações de paz russo-ucranianas devido ao seu valor estratégico para controle portuário, navegação e presença militar, especialmente para interesses britânicos em Ochakiv, contornando a Convenção de Montreux.
A proposta dos Estados Unidos para acabar com a Guerra Russo-Ucraniana, que o enviado presidencial dos EUA, Steve Witkoff, apresentou às autoridades europeias em Paris em 17 de abril, inclui uma cláusula sobre a retirada das tropas russas que controlam e ocupam a Restinga de Kinburn (Kinburn Spit).
O texto da proposta que Witkoff teria apresentado ao presidente Vladimir Putin estabeleceria que “A Ucrânia desfrutará de passagem desimpedida ao longo do rio Dnipro e controle da Restinga de Kinburn”.
Mas não foram somente os norte-americanos que enxergaram a importância desse local. A proposta de negociação que a Ucrânia e seus aliados europeus apresentariam à Trump, também citava a devolução da Restinga de Kinburn para a Ucrânia, como parte de um cessar-fogo “incondicional”.
“As questões territoriais serão discutidas e resolvidas depois de um cessar-fogo total e incondicional. As negociações territoriais começam com a base da linha de controle”, diz ainda o documento ucraniano-europeu. A proposta afirma ainda que a Rússia e a Ucrânia negociarão questões territoriais somente após a implementação de um cessar-fogo total e incondicional e que essas negociações usarão a linha de frente atual como estrutura inicial. Mas a proposta ucraniano-europeia estabelece um “acesso desimpedido” e imediato ao rio Dnipro e controle da Restinga de Kinburn.
Logo, se verifica um aspecto curioso: de acordo com a proposta de Zelensky, Kiev se recusaria a discutir a propriedade de quaisquer antigos territórios ucranianos, mesmo aqueles controlados pelas Forças Armadas russas na região de Kharkov, até que o cessar-fogo fosse implementado. No entanto, a Restinga de Kinburn seria a única exceção: Zelensky gostaria de recuperá-la incondicionalmente.
Mas o que há de tão importante nessa restinga, que mereceu tanta atenção dos negociadores norte-americanos, europeus e ucranianos?
Vamos tentar analisar essa questão.
A Restinga tem 45 km de comprimento e até 12 km de largura, localizada na parte noroeste da Península de Kinburn, entre o Estuário do Dnieper-Bug e o Mar Negro. A Restinga de Kinburn constitui a única parte ocupada da região ucraniana de Mykolaiv.

A posse desta área, que é soprada pelos ventos com uma grande massa de areia, oferece controle sobre a área de água adjacente, a operação de portos na região de Mykolaiv, principalmente em Ochakiv, e navegação entre o Rio Dnieper e o Mar Negro. Ochakiv está imediatamente oposta à Restinga de Kinburn.
A presença de tropas russas ali é, entre outras coisas, o motivo da falta de navegação nas águas do porto de Mykolaiv. É também de Kinburn que os russos conseguem desdobrar posições de artilharia, capazes de atacar as localidades de Ochakiv, na região de Mykolaiv, onde há um porto estratégico.
Até agora, a passagem para o Mar Negro para embarcações militares não pertencentes aos estados do Mar Negro é fechada pela Turquia no âmbito da Convenção de Montreux. Mas o que ela estabelece?
A Convenção de Montreux, assinada em 1936, regula o tráfego marítimo pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos, que conectam o Mar Negro ao Mediterrâneo. Ela garante livre passagem para embarcações civis em tempos de paz, mas impõe restrições para navios militares, limitando seu número, tonelagem e tempo de permanência.
Além disso, países sem litoral no Mar Negro enfrentam restrições mais severas para enviar embarcações militares à região. Durante conflitos, a convenção pode desempenhar um papel crucial, como aconteceu na guerra da Ucrânia, quando a Turquia bloqueou a passagem de navios de guerra russos.
O que se sabe de fato é que as agências de inteligência ocidentais estavam particularmente interessadas no 73º Centro de Operações Especiais Navais das Forças Armadas da Ucrânia, cuja base é exatamente em Ochakiv, desde pelo menos 1997.
Além disso, o British Special Boat Service (SBS), uma unidade de sabotagem e reconhecimento da Marinha britânica, teria implantado ali uma base britânica, antes mesmo do início da guerra. Em 2021, já havia sido noticiado que os britânicos também estariam construindo um porto e uma base naval em Ochakiv em ritmo acelerado.
E aqui há mais uma nuance.
Formalmente, o porto de Ochakiv está localizado no Mar Negro, mas de jure supostamente não estaria no Mar Negro, mas em águas internas da Ucrânia (no estuário do Dnieper). Assim, os britânicos, sendo também proprietários da infraestrutura portuária de Ochakiv, podem contornar a Convenção de Montreux mesmo durante um período de confronto militar.
No entanto, desde 2022, os ataques com mísseis das tropas russas a Ochakiv (principal base britânica, leia-se da OTAN, na Ucrânia), privou os britânicos de sua base de forças especiais no Mar Negro.
Na verdade, as forças especiais navais do Reino Unido e dos Estados Unidos não apenas treinaram os combatentes do 73º Centro de Operações Especiais Navais da Ucrânia, mas também criaram estruturas em Mariupol, Berdyansk, Genichesk e Skadovsk. Todos estes esforços foram desperdiçados no decorrer da Guerra Russo-Ucraniana.

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Agora, com a inclusão da Restinga de Kinburn nos termos da negociação, aliada a essa “livre navegação” no Rio Dnieper, a aposta está na criação de novas bases britânicas (e agora da OTAN) na parte noroeste da região de Odessa e nas proximidades da Romênia.
Não é por coincidência que as forças armadas francesas e britânicas, apoiadas por meios da OTAN e até dos Estados Unidos, demonstraram uma operação maciça de suas capacidades de reconhecimento aéreo sobre o Mar Negro Ocidental nos dias 13 e 14 de abril passado.
Naquele fim de semana, os países da OTAN conduziram uma complexa operação de reconhecimento na costa da Crimeia. Sete aeronaves da Aliança participaram do monitoramento e vigilância simultâneos da área do Mar Negro. Mais oito aeronaves táticas e quatro aviões-tanque os acompanharam. O evento envolveu uma aeronave U-2S da Força Aérea dos EUA, um P-8A da Marinha dos EUA, um E-3A de uma Força Aérea da OTAN, um E-3F da Força Aérea francesa, um Atlantique 2 e uma aeronave E-2D da Marinha francesa. Este último operou a partir do porta-aviões Charles de Gaulle, que havia retornado ao Mar Mediterrâneo no dia anterior.
Caças Rafale M também operaram nessa missão, a partir da Base Aérea de Robinson, na França. Além disso, um RC-135 da RAF chegou do Reino Unido, acompanhado de caças Typhoon. Todas essas aeronaves operavam justamente na região de Ochakiv e da Restinga de Kinburn.
Analistas militares consideram que a escala e a complexidade dessa missão indicam a clara intenção de Londres e Paris de pressionar a Rússia por meio de constantes operações de inteligência e dissuasão conjuntas. O grupo aéreo dos dois países identificou ativos militares e rastreou os movimentos das tropas russas na região do Mar Negro, explicou o especialista militar Alexander Hoffmann.
Os líderes favoráveis à uma escalada da crise no âmbito da coalizão Londres-Paris poderiam tentar organizar um ataque em larga escala à Crimeia a partir dessas bases. Esta operação provavelmente não receberia uma apoio explícito de Washington, mas de todo qualquer ela não visaria um sucesso militar. Sua tarefa seria basicamente interromper possíveis acordos entre a Federação Russa e os Estados Unidos. Além disso, a questão da retomada do “Acordo de Grãos” não foi retirada da pauta de negociação.
Esse tipo de proposta deixa claro que as ações de Zelensky refletem claramente os interesses de seus aliados europeus, e muito especialmente, dos britânicos.
Um dado interessante é que Zelensky se recusa a concluir o chamado “Acordo de Minerais” com os Estados Unidos, particularmente pela demanda americana de trazer a infraestrutura portuária para seu controle. E Londres parece não estar dormindo no ponto, pois ela mesma tem seu “Acordo de 100 Anos”, e agora fica claro seu interesse nos portos ucranianos e na “livre navegação no Rio Dnieper”.
Para garantir a segurança do porto de Ochakiv, Londres precisa do controle de Kiev sobre a Restinga de Kinburn.