Por Fernando Capez e Robinson Farinazzo*
Em geopolítica, não se pode ser ingênuo, deve-se questionar a versão oficial e estar atento aos detalhes; à luz dessas regras, é possível que a investigação do atentado em Moscou indique uma trama bem mais ampla do que a ação isolada de uma organização terrorista.
Ainda é cedo para tirar conclusões definitivas sobre a autoria intelectual do atentado de 22 de março na casa de shows Crocus City Hall, nos arredores de Moscou, que matou dezenas de inocentes e feriu outros tantos.
Por ora, há duas versões: os Estados Unidos apontam a responsabilidade integral para o grupo terrorista Isis-Khorasan, enquanto a Rússia afirma que esta organização apenas executou um plano engendrado pelo serviço secreto ucraniano, com a cumplicidade do Ocidente. É possível, no entanto, analisar fatos e conexões que permitam uma ideia aproximada do que ocorreu.
Realpolitik
Expressão alemã que significa colocar interesses econômicos e estratégicos acima das preocupações morais. Em matéria de geopolítica, há três regras básicas: 1) não ser ingênuo; 2) questionar a versão oficial; 3) prestar atenção nos detalhes.
Agências de espionagem como a CIA, MI6, SVR, dentre outras, cumprem pragmaticamente objetivos estratégicos, ainda que por meios criminosos. É com base nisso que analisaremos os subterrâneos do maior atentado terrorista em solo russo, desde o massacre da escola de Beslan em 2004.
O atentado
No último dia 22 de março, quatro terroristas fizeram um ousado ataque, muito bem planejado e executado, na casa de shows Crocus City Hall, localizada em Krasnogorsk, noroeste da capital russa, matando 144 pessoas até o momento.
De acordo com o porta-voz do presidente turco, Recep Erdogan, o atentado não poderia jamais ser perpetrado sem o apoio de inteligência oficial, sugerindo participação do governo de outro país, embora sem afirmá-lo.
Antecedentes imediatos
Em dezembro de 2023, o general Mark Milley, ex-presidente do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, que havia acabado de se aposentar (em setembro), propagou a quem quisesse ouvir que os russos “não iriam mais dormir em paz, sabendo que seu pescoço seria cortado” (o grupo terrorista Estado Islâmico, conhecido como ISIS, costuma decapitar suas vítimas).
Em janeiro de 2024, o comandante ucraniano Budanov, chefe da agência de inteligência GUR, afirmou que a Rússia pagaria caro pela invasão da Ucrânia.
No dia 31 de janeiro de 2024, Victoria Nuland, subsecretária de Estado norte-americana, pivô da crise que levou à guerra da Ucrânia em 2022, após uma reunião com o mesmo Budanov, deu uma entrevista no centro de Kiev, dizendo que a Rússia teria surpresas desagradáveis em seu território muito em breve.
Em 5 de março de 2024, a mesma Victoria Nuland é demitida. Embora não haja nenhum elemento concreto que possa apontar seu envolvimento na ação terrorista, alguns analistas indicam ter sido sua demissão uma medida de prudência para evitar qualquer possível ligação entre o provável e futuro atentado com os EUA.
No dia 7 de março de 2024, coincidentemente dois dias após o afastamento de Victoria Nuland, as embaixadas dos Estados Unidos e do Reino Unido emitiram um alerta a seus cidadãos para que evitassem locais de aglomeração na Rússia nas 48 horas seguintes.
Com Victoria Nuland no cargo, uma vinculação dos Estados Unidos com o futuro atentado terrorista poderia ser feita pela Rússia.
No dia 9 de março de 2024, exatamente 48 horas depois do alerta das embaixadas americana e britânica, aconteceu o show do cantor nacionalista Shamam, um artista que, para os russos, equivale à Taylor Swift em termos de popularidade.
A segurança reforçada no local frustrou o ataque naquela data. O objetivo provável era criar instabilidade às vésperas da eleição presidencial na Rússia, que se iniciaria seis dias depois, em 15 de março.
Um site patrocinado pela agência norte-americana de inteligência (CIA), o Open Source Intelligence, no mesmo dia do atentado, ou seja, 22 de março, informou que a Casa Branca já vinha demonstrando preocupação com ações tresloucadas da inteligência ucraniana, que estavam saindo do controle.
No mesmo dia do atentado, ou seja, 22 de março, apenas 55 minutos após o atentado terrorista, sem que ainda houvesse quaisquer informações sobre a autoria, os armamentos utilizados e a motivação, o Departamento de Estado americano se apressava para desvincular a Ucrânia da tragédia.
Tal açodamento despertou desconfiança nos analistas de geopolítica. Em menos de 24 horas, os quatro executores da ação terrorista já estavam presos e interrogados (claramente sob emprego de violência física).
Eram do Tajiquistão, falavam russo e estavam se dirigindo à Ucrânia, onde, segundo o serviço de inteligência russo, teria sido aberto um corredor seguro de passagem e onde receberiam seu pagamento.
O ISIS-K rapidamente reivindicou a autoria do atentado, embora houvesse um padrão bem diferente na execução dessa ação. Os executores eram mercenários e não fanáticos. Sua motivação foi dinheiro, o que foge completamente dos padrões da organização jihadista radical islâmica, que visa ao extermínio dos “infiéis” do Ocidente e age por ódio.
São assassinos cruéis, mas não atuam em troca de pagamento. Os quatro executores estavam indubitavelmente motivados apenas por interesse econômico.
Até agora 14 envolvidos na trama foram presos e estão sendo interrogados. A essa altura, o FSB, (serviço de inteligência russo que substituiu as antigas 8ª e 16ª Diretorias do extinto KGB), já possui elementos para apontar a origem do atentado.
No dia 26 de março de 2024, quatro dias após o atentado, ao sair da reunião do Conselho de Segurança Nacional da Rússia, o seu secretário-geral, Nikolai Patrushev, ao ser indagado de forma direta por um repórter, sobre quem teria sido o responsável pelo atentado, respondeu secamente em russo: “Ukraina”.
Investigação do serviço secreto russo
A Rússia responsabiliza o GUR (inteligência ucraniana), e a SBU (agência de segurança da Ucrânia), pelo treinamento e planejamento do atentado. O ISIS seria uma cobertura para desviar a atenção e evitar a responsabilização pela autoria. É o princípio da negação plausível. A par disso tudo, o ISIS-K assumiu a autoria sozinho.
Antecedentes históricos
O Isis-K é uma denominação artificial derivada da abreviatura de Isis Khorasan, uma miríade de grupos terroristas que se aninham em uma região que vai do nordeste do Irã até o norte do Afeganistão, passando pelo Turquestão e Tajiquistão.
Na linguagem do analista Pepe Escobar, trata-se de uma “concha vazia”, uma estrutura oca, dentro da qual podem ser contratados e inseridos alguns dos mais de 150 grupos terroristas islâmicos daquela região.
Uma denominação que serve para assumir a responsabilidade por atentados organizados pelos mais variados serviços de inteligência. Trata-se, portanto, de uma estrutura amorfa a ser moldada de acordo com a conveniência do momento.
O ISIS-Khorasan é um resíduo do ISIS-Iraq, organização terrorista similar que surgiu após a invasão do Iraque em 2003 pelos Estados Unidos, sob a falsa alegação de que aquele país possuía armas de destruição em massa.
Com a aniquilação do exército iraquiano, milhares de militares desempregados uniram-se a jihadistas islâmicos da Al-Qaeda, aproveitando-se que todos estavam juntos no campo de detenção Camp Bucca, na fronteira com o Kuwait.
Esse novo grupo de malfeitores foi o embrião do ISIS, de origem sunita, que, antes da invasão americana, estava sob a proteção de Saddam Hussein e dominava a maioria xiita no Iraque.
Com a queda do regime de Saddam, os xiitas tomaram o poder e, agora, havia um novo problema para o Ocidente. O Irã xiita, inimigo existencial de Israel, passou a ter sua influência ampliada por todo o Iraque, já que os sunitas haviam sido eliminados.
Tal influência se estendeu até a Síria alauita de Bashar al-Assad, aliada dos xiitas. Esse novo bolsão passou a representar uma ameaça maior do que a do Iraque de Saddam Hussein, já esfacelado após a primeira guerra do Golfo.
Os EUA precisavam então consertar o erro provocado pela segunda invasão, que liquidou um inimigo sunita moribundo (Saddam Hussein), e fortaleceu um inimigo xiita muito mais perigoso e em plena ascensão, o Irã.
A solução foi reparar o erro com outro maior. A CIA resolveu então, criar um bloco sunita entre o Irã e a Síria, organizando o ISIS, resultante da união entre combatentes do extinto exército iraquiano e os terroristas da Al-Qaeda.
Os antigos inimigos, responsáveis pelo atentado de 11 de setembro, tornaram-se aliados de conveniência. É aí que surge o Estado Islâmico. Segundo o ex-presidente Donald Trump, o ISIS é criação de Hillary Clinton e Barack Obama.
Com a revolução da primavera árabe, iniciada na Tunísia e alastrada para a Líbia, Egito e ditaduras árabes, explode uma guerra armada em 15 de março de 2011 na Síria, apelidada impropriamente de “guerra civil”.
Os rebeldes insurgentes se opunham à ditadura de Bashar al-Assad, sucessor de seu pai Hafez Assad, no poder desde 1970 e aproveitaram o momento para se rebelar. A CIA viu nisso uma oportunidade. O interesse americano era agora derrubar Assad e, para tanto, aliou-se ao Catar, conhecido por patrocinar grupos terroristas.
Ambos turbinaram a revolta com a entrada de seu novo aliado útil, o ISIS, com o objetivo maior de desestabilizar o regime sírio. Foi então que a Rússia interveio. E o fez por uma razão: EUA e Catar pretendiam derrubar Assad para instalar um regime subalterno sob seu controle e assim, passar um gasoduto do Catar até a Europa passando pela Síria.
Putin percebeu que o plano americano era enfraquecer a economia russa e fixar uma zona de influência bem na sua fronteira. Não deu outra. A Rússia interveio e destruiu o ISIS em sua forma original. Enfraquecido, o que sobrou do ISIS-Iraq migra para o Afeganistão, onde assume o rótulo de ISIS-K (ISIS-Khorasan) e passa a combater o Talibã, organização islâmica rival, com apoio secreto da CIA.
Um dos líderes do ISIS-K era o braço direito e principal aliado do títere afegão colocado no poder pela CIA e derrubado pelo Talibã. Em 2021, os EUA saem do Afeganistão, deixando seus aliados afegãos à própria sorte.
O Talibã toma o poder. Para combater o grupo radical que deixaram retomar o poder, os EUA realizam operações ocultas (deep cover), transportando terroristas do ISIS para combater o Talibã no Afeganistão, sob a nova roupagem de ISIS-K.
O ISIS original e sua nova versão afegã, ISIS-K, nunca realizaram ações terroristas em alvos de interesse americano, como Arábia Saudita, Catar, Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Israel. Agora, no Afeganistão, os novos terroristas contratados se unem aos rebeldes chechenos anti-Rússia (responsáveis pelo atentado na escola de Beslan).
Esses rebeldes se opõem ao aliado checheno de Putin, Ramzan Kadyrov. Forma-se então, um novo grupo: a nova denominação ISIS-K, dentro da qual estão os terroristas da Al-Qaeda, ex-militares iraquianos de origem sunita e os terroristas chechenos.
Conclusão
É fundamental aguardar a investigação feita pelo Serviço Federal de Inteligência russo, o FSB (sucessor do KGB), assim como as futuras manifestações do bloco ocidental, antes de tirar qualquer conclusão.
Devemos considerar que somente há um país investigando o atentado, no caso, a Rússia, uma vez que foi lá que ocorreu o ataque. Há, por ora, duas possibilidades: ou o ISIS-K agiu isoladamente ou contou com a colaboração de um ou estados estrangeiros, por meio de seus respectivos serviços secretos.
Neste último caso, a Ucrânia e provavelmente a CIA e o MI6 estariam envolvidos no planejamento e estruturação da ação terrorista. É importante evitar teorias conspiratórias, mas também não convém aceitar com ingenuidade qualquer versão.
No mais recente desdobramento das investigações, o FSB desbaratou uma rota de contrabando de explosivos inseridos em ícones ortodoxos e utensílios de igreja vindos da Ucrânia para a Rússia através da Letônia. Longe dali, na cidade de Qom, no Irã, as forças de segurança prenderam dois membros do ISIS-K que preparavam um atentado com explosivos.
Todos os alvos do ISIS são adversários dos EUA e nenhum aliado jamais foi atacado enquanto país. É bem possível que as conclusões caminhem para uma trama bem mais ampla do que a ação isolada de uma organização terrorista artificialmente criada.
Publicado no Consultor Jurídico.
*Fernando Capez é procurador de Justiça do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.
*Robinson Farinazzo é capitão-de-fragata (Fuzileiro Naval) da reserva da Marinha do Brasil, expert em tecnologia aeronáutica e consultor de Defesa. Com mais de trinta e cinco anos de carreira militar, extensa experiência de campo e formação superior em Administração de Empresas, Robinson é o editor do Canal Arte da Guerra no YouTube e articulista do Blog Velho General.
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https://www.washingtonpost.com/national-security/2024/04/02/us-warning-russia-isis-crocus
Análise perfeita sobre os possíveis mandantes desse atentado terrorista na Rússia!