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O então conselheiro presidencial Henry Kissinger em junho de 1972, antes de partir em sua quarta viagem à República Popular da China. (James Palmer/AP).

O então conselheiro presidencial Henry Kissinger em junho de 1972, antes de partir em sua quarta viagem à República Popular da China. (James Palmer/AP).

Homem de confiança de Nixon e um dos diplomatas mais influentes do século XX, Kissinger exerceu enorme influência na política externa americana.


O ex-secretário de Estado Henry Kissinger, o diplomata que dominou a política externa quando os Estados Unidos deixaram o Vietnã e se aproximaram da China, morreu na quarta-feira aos 100 anos.

Com presença imponente, voz rouca e hábil manipulação do poder nos bastidores, Kissinger exerceu uma enorme influência nos assuntos globais sob os presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, ganhando tanto detratores como um Prêmio Nobel da Paz em 1973, por seu envolvimento nas conversações destinadas a pôr fim à Guerra do Vietnã. Décadas mais tarde, seu nome ainda provoca debates apaixonados sobre marcos da política externa americana.

O poder de Kissinger cresceu durante a turbulência do caso Watergate, quando ele assumiu um papel semelhante ao de co-presidente do enfraquecido Nixon. “Sem dúvida minha vaidade foi despertada”, escreveu Kissinger mais tarde sobre sua influência. “Mas a emoção dominante foi uma premonição de catástrofe.”

Nos últimos anos Kissinger cultivou a reputação de estadista respeitado, proferindo discursos, aconselhando republicanos e democratas e administrando sua empresa de consultoria. Mas os documentos e fitas da era Nixon, à medida que foram surgindo ao longo dos anos, trouxeram revelações – muitas, nas palavras do próprio Kissinger, que às vezes o colocaram sob uma luz pouco favorável.

Depois de deixar o governo, Kissinger foi perseguido por críticos que argumentavam que ele deveria ser chamado a prestar contas por suas políticas no Sudeste Asiático e pelo apoio aos regimes repressivos na América Latina.

Durante oito anos – primeiro como conselheiro de segurança nacional, depois como secretário de Estado e, durante algum tempo, mantendo ambos os cargos – Kissinger percorreu toda a amplitude das principais questões da política externa dos Washington. Ele conduziu a primeira “diplomacia de vaivém” na busca pela paz no Oriente Médio. Usou canais secretos para estabelecer laços entre os Estados Unidos e a China, pondo fim a décadas de isolamento. Kissinger iniciou as negociações de Paris que, em última análise, proporcionaram um meio de salvar as aparências – um “intervalo decente”, como ele chamou – para tirar os Estados Unidos da guerra no Vietnã. Conduziu uma política com a União Soviética que acabou levando a acordos de controle de armas, levantando a possibilidade de que as tensões da Guerra Fria e a ameaça nuclear talvez não tivessem que durar para sempre.

Aos 99 anos, Kissinger ainda estava em turnê lançando seu livro sobre liderança. Questionado em uma entrevista de julho de 2022 à ABC se gostaria de poder voltar atrás em alguma de suas decisões, Kissinger disse: “Tenho pensado sobre esses problemas durante toda a minha vida. É meu hobby e também minha ocupação. E assim as recomendações que fiz foram as melhores que eu era capaz de fazer na época.”

Mesmo então, ele tinha opiniões divergentes sobre o histórico de Nixon, dizendo que “sua política externa se manteve firme e ele foi bastante eficaz na política interna”, ao mesmo tempo em que admitiu que ele “se permitiu envolver-se em uma série de medidas inadequadas para um presidente.”

Questionado durante uma entrevista à CBS antes do seu 100º aniversário sobre aqueles que vêem a sua conduta na política externa ao longo dos anos como uma espécie de criminalidade, Kissinger foi desdenhoso: “Isso é reflexo da ignorância deles”, disse. “Não foi concebido dessa forma. Não foi conduzido dessa forma.”

Mesmo nos últimos meses, ele se encontrou com o líder chinês Xi Jinping em Pequim, em julho, quando as relações EUA-China estavam em seu ponto mais baixo. E 50 anos depois de ter ajudado a encerrar a guerra no Oriente Médio de 1973, quando Israel foi atacado pelo Egito e pela Síria, Kissinger alertou para os riscos desse conflito se repetir depois do ataque do Hamas em 7 de outubro.

Kissinger era praticante da realpolitik – usando a diplomacia para alcançar objetivos práticos ao invés de promover ideais elevados. Seus apoiadores dizem que sua tendência pragmática servia aos interesses dos EUA; seus críticos viam nisso uma abordagem maquiavélica que ia contra os ideais democráticos.

Ele foi criticado por autorizar escutas telefônicas de repórteres e de sua própria equipe do Conselho de Segurança Nacional em busca de vazamentos de notícias na Casa Branca do governo Nixon. Foi denunciado pelo bombardeio e invasão do Camboja em abril de 1970, com o objetivo de destruir as linhas de abastecimento norte-vietnamitas às forças comunistas no Vietnã do Sul.

Essa “incursão”, como Nixon e Kissinger a chamaram, recebeu acusações de ter contribuído para a ascensão do regime do Khmer Vermelho, que mais tarde massacrou cerca de dois milhões de cambojanos. O chefe do Centro de Documentação independente do Camboja, Youk Chhang, descreveu o legado de Kissinger como “controverso”. “Bem mais de metade da população nasceu depois do Khmer Vermelho ter sido deposto em 1979 e Kissinger deixar o governo, por isso não há muita consciência entre os cambojanos sobre seu histórico”, disse ele.

Kissinger, por sua vez, assumiu como missão desmascarar aquilo a que ele se referiu em 2007 como um “mito predominante” – que ele e Nixon haviam concordado em 1972 com termos de paz que estavam disponíveis em 1969 e assim, portanto, prolongaram desnecessariamente a Guerra do Vietnã ao custo de dezenas de milhares de vidas americanas. Ele insistiu que a única forma de acelerar a retirada teria sido concordar com as exigências de Hanói de que os EUA derrubassem o governo sul-vietnamita e o substituíssem por uma liderança dominada pelos comunistas.


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Kissinger adquiriu reputação de mulherengo. Divorciado da primeira esposa, Anneliese Fleischer, em 1964, ele chamava as mulheres de “uma diversão, um hobby”. Foi visto frequentemente na companhia de Jill St. John, atriz de cinema e televisão, mas mais tarde constatou-se que seu verdadeiro interesse amoroso era Nancy Maginnes, assessora do governador de Nova York, Nelson Rockefeller, recomendada pelo próprio Kissinger em 1964, quando ele era professor em Harvard e Nancy era estudante.

Em uma pesquisa de 1972 da Playboy Club Bunnies, o homem apelidado de “Super-K” pela Newsweek terminou em primeiro lugar como “o homem com quem eu mais gostaria de sair”. A explicação de Kissinger: “O poder é o afrodisíaco definitivo”.

No entanto, Kissinger foi insultado por muitos por seu trabalho diplomático em tempo de guerra. Isso continuou mesmo décadas depois: em 2015, uma aparição de Kissinger, então aos 91 anos, perante o Comitê de Serviços Armados do Senado, foi interrompida por manifestantes que exigiam sua prisão por crimes de guerra e denunciavam suas ações no Sudeste Asiático, no Chile e outros lugares.

Mais recentemente, no início de 2020, Kissinger disse que o futuro governo Biden deveria agir rapidamente para restaurar as linhas de comunicação com a China, que se desgastaram durante o governo Trump, sob o risco de que a crise se transforme em um conflito militar. “A menos que haja base para alguma ação cooperativa, o mundo cairá em uma catástrofe comparável à Primeira Guerra Mundial”, disse ele, em durante um fórum da Bloomberg. Então com 97 anos, ele disse à Bloomberg News que “o perigo é que ocorra alguma crise que vá além da retórica para um conflito militar real.”

Em julho passado, quando Kissinger surpreendeu ao visitar a China mais uma vez, foi recebido pelo presidente Xi Jinping, que lhe deu calorosas boas-vindas, dizendo-lhe “Estou muito feliz em vê-lo, senhor”, acrescentando que “Nunca esqueceremos nossos velhos amigos e não esqueceremos suas contribuições históricas para desenvolver as relações EUA-China e a amizade entre os dois povos”.

Na ocasião, a Casa Branca enfatizou que Kissinger visitou a China na qualidade de cidadão comum.

A empresa de consultoria de Kissinger informou que Kissinger morreu em sua casa em Connecticut. Quase que imediatamente após sua morte, diversas autoridades se manifestaram. O ex-presidente George W. Bush disse que os EUA “perderam uma das vozes mais confiáveis e distintas nas relações exteriores”. O ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, disse que Kissinger foi “infinitamente generoso com a sabedoria adquirida ao longo de uma vida extraordinária”.

O atual secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que Kissinger “realmente estabeleceu o padrão para todos que seguiram neste trabalho” e que foi “muito privilegiado por receber seu conselho muitas vezes, inclusive há cerca de um mês”.

Na China, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Wang Wenbin, chamou Kissinger de “velho amigo e bom amigo do povo chinês e um pioneiro e construtor das relações China-EUA”, e informou que o presidente Xi Jinping enviou mensagem de condolências ao presidente americano, Joe Biden. O primeiro-ministro chinês, Li Qiang, e o ministro das Relações Exteriores, Wang Yi, também enviaram mensagens de condolências à família de Kissinger e ao secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, respectivamente, disse Wang.

O ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair disse que “Ele foi um solucionador de problemas, seja no que diz respeito à Guerra Fria, ao Oriente Médio ou à China”.

O presidente de Israel, Isaac Herzog, disse em Tel Aviv que Kissinger “lançou a pedra angular do acordo de paz mais tarde assinado com o Egito, e de tantos outros processos em todo o mundo que admiro”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse em mensagem à esposa de Kissinger que ele era “um estadista sábio e clarividente” e que seu nome “está inextricavelmente ligado a uma linha pragmática de política externa, que ao mesmo tempo tornou possível alcançar a distensão nas tensões internacionais e alcançar os mais importantes acordos soviético-americanos que contribuíram para o fortalecimento da segurança global.”

No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou mensagem de condolências ao seu homólogo norte-americano, Joe Biden, lembrando as contribuições de Kissinger para a diplomacia norte-americana, sublinhando suas qualidades como diplomata, acadêmico e personalidade multifacetada, que marcou, como poucos, as relações internacionais nos últimos 50 anos.

O presidente francês Emmanuel Macron escreveu no X (ex-Twitter), que “Henry Kissinger foi um gigante da história. O século de suas ideias e de diplomacia teve uma influência duradoura no seu tempo e no nosso mundo.”

Na terra natal de Kissinger, a Alemanha, o chanceler Olaf Scholz também prestou homenagem ao ex-diplomata: “Seu compromisso com a amizade transatlântica entre os EUA e a Alemanha foi significativo e ele sempre permaneceu próximo da sua pátria alemã”, escreveu ele no X.

Mas nem todas as manifestações foram amigáveis. Uma manchete da revista Rolling Stone dizia: “Henry Kissinger, criminoso de guerra amado pela classe dominante da América, finalmente morre”.


Heinz Alfred Kissinger nasceu na cidade bávara de Fuerth em 27 de maio de 1923. Sua família deixou a Alemanha nazista em 1938 e se estabeleceu em Manhattan, Nova York, onde Heinz mudou seu nome para Henry. Kissinger teve dois filhos, Elizabeth e David, do primeiro casamento.

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