Putin e a guerra em Gaza (Parte II)

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O presidente russo, Vladimir Putin, com seu homólogo iraniano, Ebrahim Raisi e o Líder Supremo do Irã, Aiatolá Ali Khamenei, em Teerã, julho de 2022 (Gabinete do Líder Supremo Iraniano/ZUMA).

O presidente russo, Vladimir Putin, com seu homólogo iraniano, Ebrahim Raisi e o Líder Supremo do Irã, Aiatolá Ali Khamenei, em Teerã, julho de 2022 (Gabinete do Líder Supremo Iraniano/ZUMA).

No jogo geopolítico do atual conflito com Israel, que o Hamas iniciou no dia do aniversário de Vladimir Putin, Moscou pode estar jogando com duas cartas.


A guerra que o Hamas iniciou contra Israel se desenrola agora na Faixa de Gaza, uma guerra que parece simplesmente imparável. Como disse Benjamin Netanyahu em um telefonema para Putin, agora Israel não está disposto a se comprometer e, na verdade, quer desferir um grande golpe na existência do Hamas.

Portanto, existem apenas três possibilidades na continuidade desta guerra. Primeira, o mundo, especialmente os países que apoiam o Hamas, aguardam e apenas assistem aos danos graves causados ao grupo palestino. Na segunda opção, os países que apoiam o Hamas se dispõem a assumir riscos entrando em uma guerra de apoio destruidora. E a terceira e última, através de meios diplomáticos, o Hamas seria convencido a mudar sua posição, a fim de reduzir as perdas humanas e materiais na Faixa de Gaza, aceitar o governo da Autoridade Palestina e possivelmente até a retirar-se de Gaza.

Qualquer que seja o futuro desta guerra, o fato é que já causou perdas irreparáveis de vidas e materiais até agora. Portanto, no futuro, a opinião pública mundial terá sérias dúvidas sobre as razões do início deste conflito desastroso. Uma das questões que têm sido levantadas é o papel dos países que apoiam o Hamas. Entre estes, o Irã é sempre mencionado, enquanto à sombra das acusações, é esquecido o papel de duas nações: a primeira, o Qatar, que adotou posições duais e tem uma história muito mais longa que o Irã no apoio ao Hamas, e a segunda, a Rússia, que embora esteja tentando desempenhar o papel de mediadora, há muitas razões que mostram que Moscou pode ter perseguido interesses nesta guerra.

Agora há um esforço em curso para mascarar questões e dúvidas sobre a Rússia, à sombra das acusações ao Irã. Por exemplo, ao rever as palavras de Alexander Ben Zvi, embaixador de Israel na Federação Russa, pode ser dito que ele considerou um completo absurdo as acusações sobre o envolvimento russo no ataque do Hamas a Israel e também responsabilizou o Irã. É claro que essa justificativa pode ser considerada devido à sua presença em Moscou e suas relações com o governo russo.

Alguns analistas acreditam que a população de judeus no território da Rússia é maior do que em Israel. Dizem que a maioria dos cargos políticos na Duma russa é ocupada por judeus russos. Portanto, a alegação de que a Rússia avançou no sentido de uma cooperação estratégica com grupos de resistência é improvável. Dizem que basicamente, as relações entre a Rússia e Israel, especialmente no campo militar e de segurança, têm sido tão extensas que não há espaço para grupos de resistência. No entanto, vale a pena olhar mais cuidadosamente para os pontos ambíguos da posição da Rússia nesta guerra.

Histórico dos russos jogando com cartas árabes

A história lembra que a União Soviética, ao fornecer armas a Abdel Nasser do Egito e criar um guarda-chuva de apoio, estava na verdade direcionando Cairo, que tinha então um papel de liderança do mundo árabe. Naquela época, os egípcios eram como uma alavanca de pressão dos velhos bolcheviques sobre os EUA. Por outro lado, Israel estava ancorado no colo dos EUA e, como resultado, os soviéticos teriam interações políticas com os americanos. Eles inclusive vetaram a resolução de Israel contra a Palestina em 4 de novembro de 1979 para provar seu apoio ao Egito.

Após o devastador ataque de Israel ao Egito, os líderes soviéticos contataram os americanos através da linha vermelha e declararam: “Israel deve parar os ataques e avanços, ou nós apoiaremos o Egito.”

Esta ameaça funcionou até certo ponto, fazendo com que os britânicos e os franceses parassem de enviar armas a Israel para extinguir a guerra. Mas os soviéticos não deixaram de apoiar o Egito e voltaram a lhe fornecer armas. Apesar disso, não conseguiu impedir a derrota do seu aliado e, de fato, foram considerados os principais perdedores com essa tentativa. O resultado foi que a União Soviética causou descontentamento entre os árabes devido ao seu conservadorismo. Na verdade, a diplomacia daquele país falhou porque, em vez de apoiar o plano americano de cessar-fogo nas Nações Unidas, não tomou qualquer medida para impedir a captura de Sharm el-Sheikh e Jerusalém pelos israelenses.

É claro que o comportamento avaliativo dos soviéticos teve uma razão maior. Parecia óbvio que a União Soviética não estava disposta a arriscar sua coexistência pacífica com os EUA a qualquer custo. No mesmo dia em que começou a Guerra dos Seis Dias, o embaixador soviético em Washington foi ao Departamento de Estado dos EUA e reservou algum tempo para discutir a cerimônia que seria organizada por ocasião da assinatura do tratado de não proliferação nuclear. Treze dias após o fim da guerra, o Ministro dos Negócios Estrangeiros soviético anunciou a sua disponibilidade para se reunir também com Dean Rusk, o Secretário de Estado americano de Lyndon Johnson.


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Rússia: mais profissional que a União Soviética

Agora a questão é se a Rússia retomou a política de jogar com cartas árabes. Àquela altura, a frente única dos soviéticos e do Egito se opunha à frente única de Israel e Estados Unidos. Agora a Rússia pode estar no lugar da União Soviética e o Irã no lugar do Egito.

Desta vez, porém, os russos não repetirão os erros do passado e parecem estar jogando o jogo da guerra e da paz ao mesmo tempo. Levaram um projeto de resolução ao Conselho de Segurança e exigiram o envio de ajuda humanitária e evacuação segura dos civis que precisam de ajuda. Entretanto, o Hamas também acolheu favoravelmente o projeto russo. Em um comunicado, o Hamas saudou a resolução da Rússia, que também condenava o ataque de Israel à Faixa de Gaza e apelou à sua cessação.

Um dos vários acontecimentos dignos de nota nesta guerra é o uso de armas ucranianas pelo Hamas. A posição da Ucrânia em relação ao Hamas é tão clara que poucas pessoas levaram a sério a acusação de que essas armas foram dadas ao Hamas por iniciativa de Zelensky e dos líderes da Ucrânia. Até Putin sabe que essa acusação não é muito razoável e disse: “Duvido que o carregamento de armas tenha sido enviado pela Ucrânia, mas não tenho dúvidas de que algumas armas chegaram até eles (Hamas) vindas da Ucrânia. O nível de corrupção na Ucrânia é muito elevado.” Ao mesmo tempo, afirmou que a Rússia possui informações sobre a venda de armas pela Ucrânia, inclusive ao Oriente Médio, mas nunca forneceu provas ou explicou como o país que procurava comprar armas as vendeu a outros países.

Ao mesmo tempo, a propaganda dos meios de comunicação russos, como o Sputnik, afirmou que a mídia ocidental está escondendo escândalos relacionados com a corrupção na Ucrânia e com a venda de armas à Palestina, como acusou Ghassan Jawad, um analista político libanês.

Por outro lado, existe outra possibilidade, que é a transferência de armas capturadas da Ucrânia para a Rússia. Anteriormente, esta possibilidade foi levantada de outra forma: a transferência de armas ucranianas capturadas pela Rússia para o Irã. Portanto, se armas capturadas poderiam ser enviadas ao Irã, por que não poderiam ser entregues ao Hamas? Além disso, a Rússia tem uma longa relação com o Hamas – Ismail Haniyeh, líder do Hamas, e outras lideranças do grupo visitaram Moscou recentemente, apesar de nunca terem visitado a Ucrânia e Zelensky. Há mais a considerar. Análises indicam que armas doadas pelos EUA e pelo Ocidente à Ucrânia acabaram nas mãos do Hamas. Uma teoria diz que estas armas foram vendidas no mercado negro por gangues ucranianas corruptas que as teriam repassado ao Hamas. Mas há outra teoria pela qual estas armas teriam sido capturadas pela Rússia em batalhas na Ucrânia e algumas delas teriam sido entregues ao Hamas, sendo isto um sinal do apoio da Rússia à operação.

Parece que a Rússia está na verdade jogando com duas cartas, a do Hamas e a do Irã, nesta guerra iniciada no dia do aniversário de Putin. Por um lado, possibilitou o sucesso da operação do Hamas, para que depois disso Moscou pudesse retomar negociações com Israel sobre a questão do Hamas e, por outro, utiliza a carta do Irã. Na verdade, o uso dessa carta pode desviar a atenção da guerra na Ucrânia para um assunto novo.

A possibilidade de usar a carta do Irã com a sabedoria iraniana não está em uso até agora, porque Teerã disse repetidamente que não tem qualquer papel nesta guerra e declarou recentemente: “O Irã não irá à guerra com Israel até que Israel ataque seus cidadãos ou seus interesses.”

Portanto, até aqui Teerã tem agido de forma inteligente, mas a carta do Hamas ainda está nas mãos de Moscou. Agora a Rússia é o único país que, em troca de concessões do Ocidente na Ucrânia, pode ajudar Israel nesta questão.

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