O mal funcionamento do Sistema Nervoso Central do MERCOSUL

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Canhoneira classe Humaitá (“cañonera”) ARP Paraguai, da Marinha paraguaia, em 2020 (Zona Militar).

Por Carlos Henrique Arantes de Moraes*

Canhoneira classe Humaitá (“cañonera”) ARP Paraguai, da Marinha paraguaia, em 2020 (Zona Militar).

Impasse ocorrido entre Argentina Paraguai, ambos membros do MERCOSUL, mostra que o Brasil deveria assumir um papel de liderança na condução das questões sul-americanas.


A hidrovia do Paraguai corta metade da América do Sul, desde Cáceres-MT até Nova Palmira, no Uruguai. Trata-se da principal rota comercial do Paraguai e de forte impacto na economia da Bolívia e de cidades do oeste brasileiro.

Não seria nenhum exagero reconhecer a hidrovia como Sistema Nervoso Central da integração dos países que compõem o MERCOSUL – Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela. Esta última encontra-se suspensa e seria a exceção à regra da hidrovia. Por outro lado, a Bolívia encontra-se em processo de adesão ao bloco.

A bacia do Rio Paraguai facilita a movimentação de pessoas e cargas entre o interior do continente e a foz do Rio da Prata. A maior disputa bélica da América do Sul, ocorrida há mais de um século nessa região, traduz a importância estratégica oferecida pelo acidente geográfico natural.

O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) é um processo de integração regional. Seu objetivo principal é propiciar um espaço comum que gere oportunidades comerciais e de investimentos mediante a integração competitiva das economias nacionais ao mercado internacional. Em outras palavras, integrar os estados sul-americanos de forma a fortalecê-los no Sistema Internacional.

Contudo, no dia 1º de janeiro de 2023 o governo da Argentina começou a cobrar um pedágio de US$ 1,47 (R$ 7,25) por tonelada das embarcações que atravessam o trecho do rio Paraná entre as cidades de Corrientes e de Santa Fé. Todo o trecho localiza-se na Argentina.

O país portenho cita que os custos com sinalização, dragagem e segurança daquela hidrovia recaem sobre a Argentina. Pelos cálculos do país, isso custa entre 20 e 25 milhões de dólares por ano.


MAPA 1: Trecho pedagiado pela Argentina.

Essa tarifa tem gerado descontentamento regional. Brasil, Bolívia e Paraguai apontam para um acordo assinado em 1994 por cinco países sobre essa hidrovia – Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Pelo acordo, um país só poderia impor imposto, tarifa ou tributo sobre as embarcações se houver um entendimento entre todos os membros, o que não ocorreu na cobrança desse imposto.

Ainda assim, as forças de segurança da Argentina detiveram um navio de bandeira paraguaia, no início de setembro, que transportava 30 milhões de litros de combustível até Assunção. A empresa de navegação Mercurio Group tentou evitar o pedágio em um primeiro momento, mas depois aceitou pagar os cerca de US$ 27 mil cobrados pelos argentinos. O cargueiro permaneceu detido por mais de dois dias até sanar o imbróglio, resultando em mais acirramento regional.

O Paraguai é o país mais impactado, sem dúvida. Segundo o Centro de Armadores Fluviais e Marítimos (CAFYM) do Paraguai, cerca de 80% das exportações do país e 19% das importações passam por essa hidrovia. Esse pedágio poderá custar cerca de US$ 40 milhões por ano para os paraguaios.

Como consequência, o Paraguai interrompeu a venda de energia excedente da hidrelétrica binacional de Yacyretá. De modelo idêntico ao da hidrelétrica binacional de Itaipu, a UHE de Yacyretá gera 50% para cada país – Argentina e Paraguai. Como os paraguaios não possuem demanda para sua parte, vende o excedente aos argentinos.


MAPA 2: Localização da usina hidroelétrica de Yacyretá.

O governo paraguaio afirma que esse corte de energia não possui vinculação com as tarifas da hidrovia do Rio Paraguai. “Coincidentemente” ocorreu após o pedágio criado. O argumento oficial do Paraguai para o não fornecimento de eletricidade oriunda de Yacyretá é a existência de dívidas da Argentina, que vem pagando valores abaixo do combinado desde meados de 2022. O saldo devedor atual estaria em torno de US$ 93 milhões (R$ 465 milhões).

Em 21 de setembro passado, 22 caminhões-tanque, que transportavam gás de cozinha para a estatal paraguaia Petropar, foram retidos na Argentina na fronteira entre Clorinda e a região de Assunção por cinco dias. A justificativa foi uma suposta existência de problemas com as notas de origem e destino. Não se pode negar que muitos entenderam como represália às tensões na hidrovia e em Yacyretá.

No dia 27 de setembro passado, a embaixada do Brasil em Buenos Aires conduziu uma reunião com os interessados. A Argentina cedeu e estabeleceu uma moratória de 60 dias. Durante esse período, aprofundará o estudo sobre o tema e decidirá se irá manter, ou não, o pedágio sobre a hidrovia.

De relevante, essa decisão após a moratória será tomada após a eleição presidencial que ocorrerá na Argentina.

Como conclusão, é perceptível que o incidente comprova como o MERCOSUL possui fragilidades de entendimento entre seus integrantes. O bloco econômico que teria sido criado com a finalidade de crescimento regional, não transmite confiança mútua entre seus integrantes.

Mesmo que não seja considerado o corte de energia e a retenção dos caminhões-tanque por cinco dias como represália de um contra outro, pode-se perceber que as relações entre os dois países – Argentina e Paraguai – não estão sólidas.

Mais uma vez, há demora brasileira em assumir um papel de liderança na condução de problemas sul-americanos. Especificamente nesse caso, cidades brasileiras, como Corumbá e Cáceres, foram diretamente impactadas, ainda que tenha havido o protagonismo da embaixada brasileira que resultou na moratória e, talvez, arrefecimento do tema no curto prazo. No entanto, dependendo da decisão tomada pela Argentina ao término da moratória, é possível que seja exigida uma postura mais ativa do governo brasileiro.

Ainda assim, a paz relativa regional da América do Sul não significa estabilidade e sinergia entre seus vizinhos. Incidentes como esse demonstram que se a política deixa de tomar outros meios, conforme a teoria clausewitziana, não é por falta de vontade das lideranças.


*Carlos Henrique Arantes de Moraes é major do Exército Brasileiro, turma 2003 da AMAN. Realizou os cursos de Operações na Selva no CIGS, de Aperfeiçoamento de Oficiais na EsAO, de Comando e Estado-Maior do Exército na ECEME e Avançado de Inteligência na EsIMEx. Possui pós-graduação em Ciências Políticas pela Faculdade UNILEYA e mestrado em Ciências Militares pelo Instituto Meira Mattos (IMM) da ECEME.

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