Eleição presidencial turca em nova perspectiva

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O atual presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o candidato Kemal Kilicdaroglu, cumprimentam-se durante evento em abril de 2015 (Erhan Elaldi/Agência Anadolu).

O atual presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o candidato Kemal Kilicdaroglu, cumprimentam-se durante um evento em abril de 2015 (Erhan Elaldi/Agência Anadolu).

Não é errado dizer que as eleições na Turquia se tornaram uma competição entre o islamismo e o secularismo.


Os cabelos grisalhos e os óculos característicos de Kilicdaroglu o colocam em uma perspectiva que reflete sua formação como contador e alguém que ascendeu à chefia da Agência de Seguridade Social da Turquia. Como secular, ele está de um lado da corrida presidencial turca, e do outro está Erdogan, que é islâmico. Não é incorreto dizer que essas eleições se tornaram uma competição entre o islamismo e o secularismo.

As eleições presidenciais turcas terminaram com resultados surpreendentes no primeiro turno. É uma eleição importante para os povos da região e do mundo, porque não só determina o futuro líder da Turquia, país com 85 milhões de habitantes e membro da OTAN, mas também desempenha um papel importante no passo do caminho secular da Turquia.

Esta eleição tem um efeito significativo na crise do custo de vida na Turquia, nas relações com a Rússia e até no futuro político do Oriente Médio e do Ocidente. As eleições presidenciais turcas são o melhor estudo de caso para o entendimento de sociologia política, porque mostram mais claramente do que qualquer outro, a relação entre as forças sociais e políticas e a extensão do poder dos grupos sociais.

A comunidade da Turquia, um país ao mesmo tempo europeu e asiático dada sua geografia, inclui duas grandes tendências sociais: de um lado, tradicionalismo e conservadorismo, e de outro, modernismo e secularismo. É fato que o mundo da tradição contra o mundo do liberalismo sobrevive e se reproduz em novas formas. Os conservadores de hoje não são como os de antigamente, o tempo mudou sua forma e figura. Embora Erdogan tenha dito, quando era prefeito de Istambul, que aprendeu com o Irã e o Imam Khomeini, na prática ele mostrou que segue um estilo diferente de islamismo, um islamismo na forma de nacionalismo.

Surpresas desta eleição

Contrariando as pesquisas de opinião e as previsões de alguns especialistas que esperavam a derrota de Erdogan, ele permanece na corrida. Porém, por não ter conseguido mais de 50% dos votos, ele vai concorrer com Kilicdaroglu no segundo turno das eleições. A segunda fase das eleições, em 28 de maio, proporcionará uma oportunidade para Kilicdaroglu compensar sua derrota eleitoral na corrida de 2009 para a prefeitura de Istambul. Suas posições políticas o assemelham ao fundador do nacionalismo turco, Mustafa Kemal Ataturk – o primeiro e principal líder do Partido Republicano do Povo (CHP), cujo dirigente atual é o próprio Kilicdaroglu. O nome Ataturk assumiu o significado de pai da Turquia, sendo Kemal Ataturk o fundador da Turquia moderna. Não apenas Adolf Hitler o definiu como o “brilhante criador da nova Turquia”, mas também o mundo e a história contemporânea lhe atribuíram esse status.

Esta eleição mostrou que mesmo uma inflação de 80% não foi capaz de derrotar Erdogan. A ocorrência de um terremoto, que costuma causar também crises sociais, tampouco afetou negativamente os resultados eleitorais do atual presidente turco, já que ele recebeu mais votos em áreas afetadas pelo terremoto. Essas áreas são consideradas bases fortes de longa data de seu Partido da Justiça e Desenvolvimento e, mesmo após o terremoto, a lealdade do povo dessas regiões a Erdogan não vacilou.

Mesmo alguém como Kilicdaroglu, conhecido por sua simplicidade, não conseguiu convencer o povo turco a votar nele. O fato é que Erdogan não perde uma eleição desde 1994, quando venceu o pleito municipal de Istambul, e nesses 20 anos de governo ele teve uma boa oportunidade de usar diversos instrumentos para cativar a opinião pública. Erdogan é um político astuto e mostrou que não deixa de aproveitar nenhum meio para vencer eleições. Ele também aumentou o salário dos funcionários do governo em 45% apenas cinco dias antes das cruciais eleições parlamentares e presidenciais do país.

Os verdadeiros vencedores

Independentemente do resultado, a eleição turca tem vários vencedores até aqui:

  • O povo turco: a população da Turquia foi a vencedora. Quase 90% participaram da votação, criando uma das eleições mais apaixonadas da região. Analistas dizem que o nível de participação política do povo turco é um dos critérios de seu desenvolvimento. Claro, isso pode acontecer quando os candidatos têm possibilidade de apresentar diferentes pontos de vista. Além disso, os turcos foram capazes de impulsionar o processo eleitoral sem tensionar a sociedade e sem insultar as escolhas uns dos outros. O dia seguinte à eleição na Turquia foi novamente o Dia da Amizade entre as pessoas, apesar do fato de cada voto importar porque a eleição foi muito acirrada. Além disso, ambos os competidores demonstraram um comportamento justo após a divulgação dos resultados;

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  • Organizadores eleitorais: Os organizadores da eleição também venceram ao manter a confiabilidade. Embora alguns tenham aventado a possibilidade de uma fraude generalizada, isso não aconteceu, de acordo com muitos observadores. Isso mostrou que a realização de eleições no governo de Erdogan foi saudável e satisfatória;
  • Democracia: O principal vencedor desta fase das eleições na Turquia foi o princípio da democracia, porque a oposição teve um candidato e participou da votação sem quaisquer restrições e desfrutando de oportunidades iguais de acordo com a lei. Esta eleição foi na verdade um referendo para o povo turco escolher entre dois candidatos e duas formas de governo. O islâmico Erdogan, que acredita na profundidade estratégica e no envolvimento direto nos assuntos de seus vizinhos – alguns dizem que ele está tentando reviver o Império Otomano –, ou Kilicdaroglu, que busca o secularismo e quer seguir as ideias e ideais de Ataturk. Para lembrar o nível de democracia na Turquia comparada com outros países da Ásia Ocidental e nações árabes, basta olhar para as leis eleitorais de outros Estados da região. Não há nem mesmo algo chamado eleições com esse sentido em muitos deles. Esta é a razão pela qual os povos de países como o Irã invejam a democracia na Turquia e o Ministério das Relações Exteriores do Irã, após a realização do pleito, parabenizou o país pela alta participação popular. A democracia ainda é o desejo das pessoas nesta nação muçulmana.

Uma análise diferente

Embora os resultados do primeiro turno mostrem o relativo sucesso dos islâmicos, não devem ser cometidos enganos na análise dos resultados eleitorais. Existem alguns pontos básicos nestes resultados que merecem atenção:

  • A popularidade de Erdogan diminuiu apesar de seus esforços nos últimos sete anos para formar um regime unido, caindo de 52% em 2018 para menos de 50% agora. Isso apesar do fato de que, em 2018, havia passado pouco tempo desde o golpe fracassado contra ele, do qual Erdogan conseguiu aproveitar benefícios políticos. Como alguém que testemunhou os acontecimentos em Ancara em 16 de julho de 2016, eu nunca pude me convencer de que Erdogan e seus apoiadores estrangeiros não sabiam do golpe com antecedência. Isso apesar do fato de muitos analistas levantarem dúvidas sobre tal golpe. Seja como for, Erdogan se beneficiou ao máximo. Após a amotinação seu governo prendeu 77 mil pessoas e 13.500 pessoas foram julgadas. Cento e trinta líderes e governadores, 2.745 juízes e promotores (incluindo confisco de bens e propriedades), 1.755 reitores e vice-reitores de universidades, 36.000 professores e 9.000 funcionários do Ministério do Interior foram demitidos. Mais de 100 mil pessoas perderam seus empregos. O governo de Erdogan fechou 45 jornais, 15 revistas, 23 estações de rádio, 16 estações de TV e 29 editoras. Os resultados das novas eleições mostram que a popularidade de Erdogan diminuiu, apesar da exploração do golpe;
  • Contrariamente ao fato de que Istambul sempre foi a base dos partidários de Erdogan, ele recebeu menos atenção em grandes cidades, como Ancara, Izmir, e a própria Istambul nesta fase da eleição. Ele ganhou o primeiro turno em mais de 50 províncias e Kilicdaroglu em 30 províncias. No entanto, províncias densamente povoadas como Ancara, Istambul, Izmir e Antalya votaram em Kilicdaroglu. Além disso, os votos das províncias curdas foram principalmente para Kilicdaroglu. Os resultados das eleições parlamentares, cujas cadeiras são ajustadas com base no número de cidades, mostram que o Partido Justiça e Desenvolvimento e seu parceiro de extrema-direita, o Partido do Movimento Nacional, pró-Erdogan, também conquistaram 322 cadeiras das 600 do parlamento. O Partido Republicano do Povo (CHP), liderado por Kilicdaroglu e cinco outros partidos da oposição unidos sob o nome de Coalizão da Nação, ficou em segundo lugar com 213 assentos, e o Bloco de Esquerda liderado pelos curdos (YSP) ficou em terceiro com 65 cadeiras. Em outras palavras, Erdogan foi melhor nas cidades pequenas. Como o nível de instrução política das pessoas em cidades pequenas é menor, essa combinação de votos mostra que Erdogan é mais popular entre a comunidade tradicional e Kilicdaroglu é mais apreciado entre as pessoas mais instruídas. Isso significa que, se nada inesperado acontecer, com o passar do tempo a tendência é que as mudanças levem ao secularismo, mas, claro, isso ainda levará anos. Basicamente, o desenvolvimento político das pessoas é análogo à iluminação e à eletricidade, que progridem dos grandes centros para as pequenas cidades e aldeias;
  • Com a eliminação do jovem e nacionalista Sinan Oghan, já se analisa seu possível efeito no segundo turno. A maior parte das análises considera que sua participação de 5% na primeira etapa pode ser efetiva no resultado da segunda fase porque a distância entre Erdogan e Kilicdaroglu é de aproximadamente esse valor. Em palavras mais simples, alguns acreditam que se Oghan apoiar Kilicdaroglu, este vencerá. Esta análise se baseia em uma suposição frágil, qual seja, que se Oghan anunciar seu apoio a qualquer candidato, as pessoas que votaram nele na primeira fase automaticamente votarão no candidato apoiado por ele na segunda. Como o próprio povo escolhe em quem vai votar, essa suposição não é necessariamente verdadeira.

O fato é que as duas semanas que faltam para o segundo turno não são suficientes para convencer os tradicionalistas a pensarem como os modernistas ou os reformadores de se inclinarem ao islamismo. Se nada de importante acontecer, o resultado da segunda etapa será o mesmo da primeira. Isso significa que a Turquia insistirá em seu método atual de profundidade estratégica e continuará a interferir nos assuntos dos países vizinhos e não vizinhos, uma estratégia que na verdade trará benefícios de longo prazo para grandes potências, mesmo que o povo turco permaneça sob pressão econômica.

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2 comentários

  1. Artigo muito bem escrito.
    Acredito e espero que a vitória de Kilicdaroglu leve a Turquia a uma posição mais serena no cenário mundial.
    Recentemente um colega brasileiro esteve em Istambul e a impressão foi muito positiva.

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