O ótimo é inimigo do bom

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Veículo de combate de infantaria Puma do Exército alemão (Dirk Vorderstraße/CC-BY-2.0).

Por Olivier Dujardin*

Veículo de combate de infantaria Puma do Exército alemão (Dirk Vorderstraße/CC-BY-2.0).

Uma breve anedota sobre a síndrome das “Wunder Waffen” [1]: para travar uma guerra, é preciso equipamentos confiáveis e não necessariamente os melhores no papel.


Os veículos blindados alemães Puma [2], mas também em menor grau os canhões autopropulsados ​​PzH-2000 [3], apresentam uma confiabilidade muito reduzida e uma grande fragilidade, a ponto de comprometer sua utilidade operacional por falta de disponibilidade suficiente. Os contratempos observados nessas máquinas, talvez complexas demais para realmente travar uma guerra, me lembram uma situação que vivi no início dos anos 2000.

Eu havia feito uma viagem turística ao norte do Níger, região ainda calma na época. O grupo de turistas do qual eu fazia parte tinha que percorrer o maciço de Aïr (situado a norte de Agadèz) para descer ao longo do deserto do Ténéré. O guia então tinha três veículos para nos levar a partir de Agadèz, cerca de cinquenta quilômetros ao sul da cidade mineira de Arlit, o início da expedição. Tínhamos um Range Rover Classic do início dos anos 1980, um Land Rover Série III do final dos anos 1970 e, por empréstimo, um Porsche Cayenne que acabava de ser colocado no mercado. O objetivo da Porsche era testar a confiabilidade do veículo e suas capacidades off-road em ambientes desérticos. O guia me disse que os testes feitos com o Porsche nas dunas tinham sido conclusivos, tendo o veículo capacidades reais de travessia e uma apreciável potência para ultrapassar os mais difíceis obstáculos.

Então aqui estamos nós nestes três carros. Não estamos apertados porque, com o Porsche, temos um veículo adicional. Os três sortudos que se sentaram no Porsche apreciam ter ar-condicionado porque, apesar de ser novembro, faz bastante calor no meio do dia. Pessoalmente, sento-me no velho Land Rover.

Começamos dirigindo para o norte nas trilhas esburacadas e empoeiradas características da África. Embora as distâncias a percorrer não sejam muito grandes, a estrada é longa porque dirige-se muito devagar. Comemos a poeira que as janelas abertas dos carros deixam entrar em grandes nuvens; apenas os passageiros do Porsche Cayenne são poupados graças ao ar-condicionado. No entanto, depois de uma ou duas horas de condução, os filtros do ar-condicionado ficam entupidos com poeira e os ocupantes do veículo são obrigados a abrir as janelas. Infelizmente, os vidros elétricos também são caprichosos, e a poeira, fina como farinha, também entupiu seus motores elétricos. No final, os passageiros só têm uma abertura maior ou menor dependendo da janela. Além das suspensões mais confortáveis, os passageiros do Cayenne estão finalmente alojados no mesmo barco que nós.

Ao meio-dia, começam os problemas técnicos. Primeiro no Range Rover com eixo traseiro quebrado. Os três guias locais conseguem, com muita engenhosidade, fazer um conserto na areia e na rocha. O conserto improvisado, feito em menos de duas horas, vai durar o resto do percurso. Por outro lado, o Porsche Cayenne se recusa a dar partida pois a poeira fina entrou no sistema de injeção direta do motor a diesel. A limpeza do filtro de ar não adianta, é necessário desmontar e limpar o sistema de injeção, mas é impossível fazer isso no local. O guia explica-nos então que por vezes, durante as tempestades de areia, era imprescindível desmontar os motores para limpá-los e voltar a funcionar. A viatura ficará no local com um dos guias e regressará a Agadèz carregada num caminhão.

Do nosso lado, continuamos na estrada sem incidentes com os dois veículos antigos restantes. No final, são os dois veículos com mais de 20 anos, tendo ultrapassado largamente a contagem de um milhão de quilômetros, que vão nos levar e trazer de volta, duas semanas depois.

Desde este episódio, eu continuo muito desconfiado da robustez da tecnologia (mecânica ou eletrônica). Minha carreira militar e operações de campo também me lembraram dessa verdade. O terreno pode ser muito agressivo para o material e, em geral, quanto mais simples for tecnicamente, mais robusto e confiável ele é. Esta não é uma regra absoluta, existem exceções; mas na grande maioria dos casos isso permanece verdadeiro. Por isso, às vezes me pergunto sobre as ambições declaradas de certos materiais. Estamos falando de hibridização de veículos blindados para reduzir o consumo de combustível (mas como isso torna o veículo mais pesado, o ganho continua a ser relativo), vetrônica [4] integrada, uma profusão de eletrônica em todos os níveis, etc. Tudo isso é muito bom no papel, mas na poeira do deserto, sob temperaturas extremas, na lama, na neve, como é? Se a propulsão híbrida apresentar algum problema, poderá ser reparada na areia ou na lama ou a máquina terá de ser rebocada para um centro de manutenção?

Por fim, as derrotas do alemão Puma são da mesma ordem. Se confiarmos nas brochuras comerciais, este veículo é muito mais eficiente do que aquele que deveria substituir e muitos de seus concorrentes no mercado. No papel, ele supera o seu antecessor em todas as áreas, mas com a condição de funcionar!

Um dia alguém me disse que, para ir à guerra, preferia ter um Ford Mustang a um 2CV [5]; respondi que, se eu tivesse que atravessar um campo lamacento, era melhor escolher o 2CV…

Para travar uma guerra, precisamos principalmente de equipamentos nos quais possamos confiar e que não sejam necessariamente os melhores [6] no papel. Para ver os custos adicionais e os contratempos de muitos programas de armamento (B2, F-35, DDG1000, Puma, Ajax, T-14, etc.), pode-se legitimamente se perguntar se não estamos almejando desempenhos teóricos muito altos, o que às vezes pode colocar em questão a relevância operacional e prejudicar a real empregabilidade.


Publicado no Cf2R.


*Olivier Dujardin tem 20 anos de experiência em guerra eletrônica e processamento de sinais de radar. Exerceu sucessivamente funções operacionais em guerra eletrônica, no estudo de sistemas de radar e guerra eletrônica, e na análise e coleta de sinais. Ele também atuou como especialista técnico em sistemas de coleta de dados.


Notas

[1] Wunderwaffen foi um termo usado durante a 2ª Guerra Mundial pelo Ministério da Propaganda do Terceiro Reich da Alemanha para se referir às “superarmas” criadas pela indústria bélica alemã.

[2] http://www.opex360.com/2022/12/19/defaillant-le-blinde-allemand-puma-ne-sera-pas-engage-au-sein-de-la-force-de-reaction-tres-rapide-de-lotan/

[3] https://meta-defense.fr/2022/12/20/apres-le-puma-la-disponibilite-des-canons-automoteurs-pzh2000-handicape-la-bundeswehr/

[4] Vetrônica: termo empregado no jargão militar, seria o equivalente da aviônica para veículos terrestres.

[5] O Citroën 2CV (deux chevaux: dois cavalos, em francês) foi um automóvel de baixo custo da montadora francesa Citroën produzido entre 1948 e 1990, tendo sido um dos modelos mais populares da marca, com mais de cinco milhões de unidades produzidas.

[6] https://velhogeneral.com.br/2022/11/14/o-que-significa-ter-armas-melhores/

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