Jiang Zemin: o presidente que levou a China de pária da Praça da Paz Celestial à potência ascendente

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Jiang Zemin acena ao público depois de ser reeleito como presidente da Comissão Militar Central em Pequim em 15 de março de 2003 (Reuters).

Por Stella Chen, Cary Huang e Jun Mai*

Jiang Zemin acena ao público depois de ser reeleito como presidente da Comissão Militar Central em Pequim em 15 de março de 2003 (Reuters).

Jiang Zemin estreitou laços com o Ocidente, recuperou Hong Kong, modernizou o Partido Comunista e levou as Olimpíadas a Pequim; o “Tio Sapo” foi admirado por sua aparência distintiva e diplomacia idiossincrática.


Jiang Zemin, o principal líder da China nos anos 1990 e início dos anos 2000, deixou um país com uma posição global muito mais elevada e uma economia muito mais integrada com o mundo do que os governantes comunistas que o antecederam. Tendo governado o país de 1989 a 2002, Jiang morreu em Xangai de leucemia e falência de múltiplos órgãos pouco depois do meio-dia da quarta-feira (30 de novembro), de acordo com o anúncio oficial da agência de notícias estatal Xinhua. Ele tinha 96 anos.

Foi sob a supervisão de Jiang que a China passou por alguns dos maiores desenvolvimentos que a integrariam ainda mais ao sistema global liderado pelos EUA e elevariam seu status de potência mundial. Isso inclui o retorno de Hong Kong em 1997, quando a cidade voltou à soberania chinesa do domínio colonial britânico, e a entrada da China como membro formal da Organização Mundial do Comércio em 2001.

Foi também sob o comando de Jiang, em 2001, que Pequim garantiu o status de nação anfitriã dos Jogos Olímpicos de Verão de 2008, uma novidade no país.

Jiang renunciou voluntariamente, primeiro como líder do partido em 2002 e depois como chefe militar em 2004, para entregar o comando a Hu Jintao, com a China testemunhando a primeira transferência de poder pacífica e ordenada desde que o Partido Comunista foi fundado em 1921.

Mas sabe-se que ele permaneceu influente por uma década depois de deixar o cargo, e é considerado um dos principais atores por trás da decisão de Pequim de instalar Xi Jinping como herdeiro aparente de Hu em 2007. Desde que ascendeu à liderança do partido em 2012, Xi tornou-se o homem mais poderoso do país desde o líder supremo Deng Xiaoping.

“Jiang deve ser lembrado como um líder que tentou modernizar e abrir o Partido Comunista, enquanto seus sucessores tentaram minar muitas reformas políticas de Jiang e [conselheiro sênior de Jiang] Zeng Qinghong”, disse o professor David Shambaugh, diretor da China Policy Program na Elliott School of International Affairs da George Washington University.

Vida pregressa

Jiang, que serviu como secretário-geral do partido de 1989 a 2002, foi o primeiro líder de alto escalão a não ter lutado na revolução comunista de Mao Zedong, que culminou na criação da República Popular da China após a vitória na guerra civil em 1949.


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Jiang nasceu em 1926 em uma família de intelectuais em Yangzhou, na província de Jiangsu, leste da China, então sob ocupação japonesa. Seu pai adotivo, Jiang Shangqing, também membro do Partido Comunista, morreu jovem em uma emboscada de senhores da guerra chineses locais e foi reconhecido como um dos primeiros mártires do partido.

Na juventude, Jiang foi um estudante apaixonado de línguas estrangeiras e aprendeu inglês estudando os discursos dos presidentes dos Estados Unidos, Thomas Jefferson e Abraham Lincoln. Formou-se em engenharia elétrica na Shanghai Jiao Tong University, tendo se juntado ao partido enquanto ainda estava na universidade.

Ele trabalhou pela primeira vez em uma fábrica de automóveis em Moscou, então capital da União Soviética, na década de 1950 e foi transferido para Xangai como vice-diretor de um instituto estatal de máquinas na década de 1960.

Depois da Revolução Cultural – uma década de convulsão social e política que só terminou com a morte de Mao em 1976 – Jiang foi nomeado chefe de departamento do Ministério da Indústria de Construção de Máquinas em Pequim.

Em 1985, assumiu o comando de Xangai, primeiro como prefeito e depois como chefe do partido. A posição o expôs a eventos importantes, incluindo recepcionar a Rainha Elizabeth da Grã-Bretanha quando visitou a cidade em 1986.

Dirigindo através da crise

Jiang era chefe do partido em Xangai quando assumiu o cargo mais importante do Partido Comunista em junho de 1989, uma decisão que surpreendeu a ele próprio. A nomeação ocorreu quando Pequim estava em crise depois que Deng Xiaoping ordenou uma repressão sangrenta aos manifestantes estudantis pró-democracia na Praça da Paz Celestial e um expurgo de longo alcance dentro do governo e do estado visando simpatizantes do movimento fracassado.

A grande mídia ocidental da época não expressou grandes esperanças na sucessão de Jiang. Eles se referiram ao destino dos chefes do partido previamente escolhidos como sucessores de Deng, como Zhao Ziyang e Hu Yaobang – ambos expurgados pelos anciãos do partido – e acreditavam que a liderança de Jiang funcionaria apenas como um governo interino para resolver a crise e as consequências do movimento.


O presidente Jiang Zemin cumprimenta o então senador Joe Biden, que presidia a Comissão de Relações Exteriores do Senado dos EUA, em reunião em Beidaihe, a leste de Pequim, em 8 de agosto de 2001 (Reuters).

Quando assumiu o comando, Jiang teve que enfrentar reformas econômicas e políticas estagnadas e o encolhimento de investimentos estrangeiros quando as capitais ocidentais aplicaram sanções à China durante a repressão de 1989. Mas com o firme apoio de Deng, Jiang não apenas estabeleceu sua própria autoridade no partido, como consertou os laços com o Ocidente e reiniciou as reformas econômicas interrompidas pelo expurgo.

John Lee, um observador da China no Centro de Estudos Independentes em Sydney e no Hudson Institute em Washington, disse que a maior conquista política de Jiang foi garantir a sobrevivência do partido após a Praça da Paz Celestial. De 1989 a 1992, ele misturou repressão seletiva com reformas econômicas parciais, disse Lee. “Jiang deve ser reconhecido por seu papel crítico em garantir a continuação de reformas parciais na economia – particularmente após o trauma político dos protestos de 1989 em todo o país”, acrescentou.

Relações EUA-China

Durante a maior parte de seu mandato como principal líder da China, Jiang enfrentou uma ordem mundial pós-Guerra Fria, com Washington como a nova potência unipolar, enquanto Pequim varria gradualmente o impacto da repressão da Praça da Paz Celestial em 1989 para debaixo do tapete.

Shambaugh disse que a diplomacia de Jiang foi astuta e ele conseguiu tirar a China das águas diplomáticas conturbadas depois de 1989. “Jiang fez muito pessoalmente para reconstruir as relações EUA-China, mas também supervisionou provavelmente o melhor período nas relações da China com seus vizinhos da Ásia, além de desenvolver fortes laços com a Europa e a América Latina”, disse ele.

Sob sua supervisão e mais de cinco visitas aos Estados Unidos como presidente da China, título que ocupou entre 1993 e 2003, os laços foram significativamente descongelados.

Pequim também resistiu a algumas das piores crises geopolíticas e diplomáticas em décadas, incluindo as sanções ocidentais que se seguiram à violenta repressão às manifestações pró-democracia em 1989, o bombardeio americano de 1999 à embaixada da China em Belgrado durante a guerra de Kosovo e uma colisão mortal entre um avião de guerra chinês e um americano que matou um piloto chinês em Hainan, no sul da China, em 2001.

Jiang conseguiu se manter calmo e pragmático durante a maior parte dessas crises diplomáticas, apesar da forte pressão da opinião pública nacionalista na China.

O atentado de 1999 em Belgrado matou três cidadãos chineses e causou uma onda de protestos antiamericanos na China. Dias depois, Jiang, ao condenar Washington, pediu a seus colegas líderes chineses que se concentrassem no desenvolvimento econômico e “dormissem no mato e provassem o fel”, uma frase chinesa que significa tolerar o insulto e focar no objetivo de longo prazo.

Capitalistas no partido

Jiang seguiu um caminho pragmático semelhante na política doméstica ao permitir formalmente que os empresários privados do país se juntassem ao partido pela primeira vez. Essa prática, vista por alguns como um avanço tanto na tolerância do partido quanto em seu apoio ao setor privado, também causou controvérsia.


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Zhang Dejiang, o chefe do partido de Zhejiang, escreveu um famoso artigo em 2000, denunciando publicamente a ideia como “embaçar a natureza do partido como partido para o proletariado”.

Jiang conseguiu reunir força política suficiente para levar essa ideia ao aparato do partido perto do final de seu mandato. A ideia foi incorporada às “Três Representações”, teoria política de sua assinatura, agora consagrada na constituição do partido e do estado. “Três Representações” refere-se ao partido representando as forças produtivas mais avançadas da China, a orientação da cultura avançada da China e os interesses fundamentais da esmagadora maioria do povo chinês.

Zhu Zhiqun, professor de ciência política e relações internacionais na Bucknell University, na Pensilvânia, chamou as “Três Representações” de uma conquista importante de Jiang. “[Foi] significativo, pois abriu as portas para que empresários ou capitalistas se juntassem ao PCCh, o que transformou fundamentalmente o PCCh de um partido da classe trabalhadora para um partido para pessoas de todas as esferas da vida”, disse ele.

Mas Zhu via corrupção e poluição como as principais deficiências do governo de Jiang. “A corrupção desenfreada é uma das maiores falhas”, disse ele. “Sua administração também não fez muito para proteger o meio ambiente, com forte foco no crescimento do PIB.”

Charme pessoal

Jiang é lembrado por muitos como uma figura carismática e confiante, o que o destacou entre outros líderes chineses rígidos e muitas vezes inescrutáveis. Aos 71 anos, ele ganhou as manchetes por nadar e tocar violão no Havaí, e por testar suas habilidades ao cantar a ópera de Pequim, durante uma visita de estado aos Estados Unidos em 1997.

Em uma entrevista conduzida pelo repórter do 60 Minutes, Mike Wallace, em 2000, Jiang abordou questões sobre temas controversos – incluindo a repressão da Praça da Paz Celestial em 1989, o caso de espionagem envolvendo o cientista taiwanês-americano Wen Ho Lee e as tensões no Estreito de Taiwan – alternando com facilidade entre chinês e inglês.

Shambaugh disse que a persona pública de Jiang era incomum para uma autoridade chinesa. “Ele era aberto e vivaz, intelectualmente envolvente e entendia os problemas em questão”, disse Shambaugh.

Esses episódios inspiraram uma onda de pop art política nostálgica entre os chineses nos últimos anos, muito depois da aposentadoria de Jiang, enquanto o público exercia a admiração por Jiang como uma crítica indireta às políticas atuais na China, especialmente durante a última década.


O presidente chinês Xi Jinping (à direita) caminha com os líderes aposentados Jiang Zemin (centro) e Hu Jintao quando chegaram para marcar o 65º aniversário da fundação da República Popular da China, no Grande Salão do Povo em Pequim em 2014 (Reuters).

Uma tendência de meme na internet chamada “adoração de sapo”, ou mo ha em mandarim, foi a princípio uma paródia das palavras e ações de Jiang durante seu tempo no topo, mas lentamente se transformou em afeição por ele.

Os internautas chineses chamavam Jiang de “Tio Sapo” para zombar de sua aparência física e dos óculos icônicos que ele usava em público durante sua liderança. Os admiradores usaram o slogan “mais um segundo” para desejar uma vida longa a Jiang, depois que começaram a se repetir os relatos sobre sua saúde debilitada.

O canto outrora amplamente ridicularizado de Jiang e seu estilo diplomático distinto, incluindo uma famosa palestra de um jornalista de Hong Kong em 2004, foi visto por admiradores chineses como um lado humano do líder máximo e como a projeção de um lado humano da China para o mundo. “Um líder levemente ridículo é muito melhor do que um líder arrogante… e egocêntrico”, escreveu certa vez um admirador chinês da Internet.

Jiang se casou com Wang Yeping em 1949 e tiveram dois filhos. Jiang Mianheng, o filho mais velho, é membro do partido e presidente da Shanghai Tech University. O segundo filho, Jiang Miankang, também é membro do partido e ex-diretor do Shanghai Development Information Research Centre.

A ausência de Jiang no 20º congresso do Partido Comunista em outubro e das comemorações do centenário do partido no ano passado foram lidas como sinais claros de problemas de saúde.

Ele foi visto pela última vez em público em 1º de outubro de 2019, ocupando seu lugar entre os anciãos do partido convidados para as comemorações do 70º aniversário da fundação da República Popular da China e do desfile militar realizado para marcar a ocasião.

“Sua morte terá pouco impacto no cenário político da China hoje”, disse Zhu, acrescentando que não se compara à morte de Deng Xiaoping em 1997, que efetivamente acabou com a influência dos anciãos sobre Jiang.

“Ao contrário do falecimento de Deng, que na verdade ajudou Jiang a sair de sua sombra e liderar com mais confiança e estilo, hoje Xi está no controle firme da política chinesa. A morte de Jiang não terá grandes repercussões na China hoje.”


Publicado no SCMP.


*Stella Chen foi pesquisadora no China Media Project. Ela tem um mestrado em jornalismo pela Universidade de Hong Kong e um bacharelado em sociologia pela Universidade de Manchester.

*Cary Huang é colunista veterano em assuntos da China, escrevendo a respeito desde os anos 1990. Antes do SCMP, foi editor de China no The Standard.

*Jun Mai é jornalista premiado especializado em política chinesa, diplomacia, assuntos jurídicos e ativismo social. Antes de seu posto atual em Pequim, trabalhou em Hong Kong e Washington.

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