Os céus da Ucrânia são cenário de confronto entre potências transregionais; na primeira parte deste artigo, o autor discute a questão da venda de drones iranianos aos russos.
Da negação à confirmação
Quase quatro meses se passaram desde que a Ucrânia, alguns países ocidentais e os Estados Unidos alegaram que a Rússia solicitou drones ao Irã. Desde então, o Irã negou repetidamente a questão, mas as muitas fotos publicadas dos drones derrubados fizeram com que o ministro das Relações Exteriores do Irã finalmente confirmasse que o país havia vendido drones para a Rússia. Mas em uma explicação sobre o assunto, ele disse: “Demos à Rússia um pequeno número de drones meses antes da guerra na Ucrânia. Se nos for comprovado que a Rússia utilizou drones iranianos na guerra contra a Ucrânia, não ficaremos indiferentes a esta questão. Nossa posição em relação à guerra na Ucrânia é parar a guerra, trazer as partes às negociações e devolver os refugiados às suas casas.”
Isso apesar do fato de que a reunião do Conselho de Segurança da ONU foi realizada sob o título “Preservação da paz e segurança na Ucrânia” há duas semanas, e a questão da venda de drones à Rússia pelo Irã também foi discutida. O representante do governo de Vladimir Putin disse nessa reunião que a ONU não tem o direito de enviar uma equipe para investigar o uso de drones na Ucrânia. Ele enfatizou: “Rejeitamos a informação falsa que o Ocidente publica sobre a compra de drones do Irã.” Na mesma reunião, o vice-representante dos Estados Unidos nas Nações Unidas disse ainda: “As Nações Unidas devem investigar qualquer violação das resoluções do Conselho de Segurança.” Ele alegou que o Irã forneceu drones à Rússia e que esse comportamento é uma violação da Resolução 2231 do Conselho de Segurança. O embaixador e representante da França na ONU também deu continuidade à afirmação americana e disse que espera que os especialistas das Nações Unidas viajem à Ucrânia para recolher as carcaças dos drones e identificar sua origem. O embaixador e representante da Ucrânia nas Nações Unidas também repetiu as reivindicações do Ocidente, especialmente dos Estados Unidos, sobre o uso de drones iranianos pela Rússia na guerra. O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca afirmou que algumas resoluções do Conselho de Segurança, como a 2231, autorizam sancionar as indústrias de defesa do Irã.
Antes dessa reunião, o embaixador e representante permanente do Irã nas Nações Unidas, Amir Saeed Irvani, em carta ao secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, pediu-lhe que evitasse o abuso da Resolução 2231 sobre a guerra na Ucrânia e as afirmações sem base sobre o Irã.
Irvani alegou que as restrições mencionadas no Parágrafo 6 do Apêndice B da Resolução 2231 do Conselho de Segurança da ONU foram encerradas em outubro de 2020 e, desde então, não tem havido nenhuma ação do Irã para fornecer, vender ou transferir armas ou materiais relacionados para outros países sob a Resolução 2231. O embaixador e representante do Irã nas Nações Unidas também considerou a alegação da Ucrânia sobre o Parágrafo 4 do Apêndice B da Resolução 2231 como uma interpretação falsa e arbitrária da resolução e do espírito deste parágrafo. Ele disse: “O Parágrafo 4 do Apêndice B da Resolução 2231 refere-se claramente às limitações de itens, materiais, equipamentos, bens e tecnologia em conexão com o desenvolvimento de sistemas de mísseis com armas nucleares”.
Limitações
Embora as alegações dos EUA, dos ocidentais e da Ucrânia tenham adquirido certa credibilidade após os recentes discursos do ministro das Relações Exteriores iraniano, a bola ainda está no campo desses países já que eles devem ser capazes de provar que o Irã, ao contrário de sua afirmação, vendeu drones após o início da guerra na Ucrânia. Considerando os esforços conjuntos e a cooperação dos serviços de inteligência de diversos países, não parece difícil provar esse ponto, caso tenha acontecido. Por outro lado, o Irã, que afirma ter fornecido os drones ao seu aliado militar antes do início da guerra, deve ser capaz de fornecer evidências suficientes aos especialistas da ONU a esse respeito. Além disso, logicamente, deve-se levar em consideração a data de venda dos drones, e não a data de seu embarque.
A suposição de que os Estados Unidos e seus aliados possam provar que esses drones foram transportados ou mesmo vendidos nos últimos meses não é tão improvável, mas eles têm outro problema para explorar essa questão contra o Irã porque devem ser capazes de demonstrar que esses drones estão incluídos na Resolução 2231 do Conselho de Segurança da ONU. É verdade que a Rússia é a iniciadora desta guerra, e não importa quão aceitáveis sejam as razões para iniciá-la, ela ainda é a agressora aos olhos da opinião pública do mundo. Por outro lado, a assistência militar ao agressor e ao iniciador da guerra não é uma questão razoável. Todos os países deveriam reconhecer e agir de acordo com este princípio e não deveria haver nenhuma exceção, nem no mar de Taiwan, nem no sul do Cáucaso, nem em outras partes do mundo, a fim de respeitar as fronteiras geopolíticas.
No entanto, deve-se admitir que a referência à Resolução 2231 é uma questão jurídica e não deve ser deixada de fora de seu marco legal.
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A Resolução 2231, aprovada em outubro de 2015, definiu restrições para o Irã em dois prazos distintos (cinco e oito anos), alguns deles expirados em outubro de 2020. Os Parágrafos 3 e 4 do Apêndice B listam claramente as atividades que violam a resolução que, para além das atividades nucleares, incide na questão dos mísseis balísticos capazes de transportar ogivas nucleares. O Parágrafo 3 afirma: “O Irã foi solicitado a evitar qualquer atividade relacionada a mísseis balísticos capazes de transportar armas nucleares, incluindo o uso de tecnologia relacionada a esses mísseis, por oito anos após o primeiro dia de implementação do JCPOA.” Se drones podem ser considerados mísseis balísticos ou não, é outra questão.
Um terceiro ponto digno de nota também é mencionado no Parágrafo 5 desse apêndice: “Todos os países estão autorizados e podem, se aprovados pelo Conselho de Segurança, adquirir, vender e transferir direta ou indiretamente tanques de guerra, veículos blindados, sistemas de artilharia de alto calibre, aeronaves de guerra, helicópteros, navios de guerra e sistemas de mísseis de acordo com o que está descrito na Convenção sobre Certas Armas Convencionais das Nações Unidas através do território de seus países, seus nacionais ou usando navios e aviões para o Irã e para uso no Irã. Este parágrafo é aplicável até cinco anos após o primeiro dia de implementação do JCPOA”. Embora este parágrafo tenha permitido a venda de equipamentos e a prestação de serviços militares de outros países ao Irã, o lado oposto da permissão do acordo também pode ser obtido a partir dele.
O inegável progresso militar do Irã
O UAV (sigla do inglês Unmanned Aerial Vehicle, ou Veículo Aéreo não Tripulado) é uma das ferramentas de guerra mais avançadas da era moderna, e tê-lo pode ser visto como um símbolo de progresso nesse campo específico. Nesse sentido, quando a Rússia, que costumava ser o segundo exército mais poderoso do mundo, dirige-se ao Irã para obter drones, pode-se entender que as indústrias aéreas e espaciais do Irã cresceram significativamente nos últimos anos. Essa fragilidade da Rússia pode ser causada por dois motivos: desatenção dos russos a essa tecnologia moderna e importante nos últimos anos ou o alto custo de fabricação de drones na Rússia como resultado das sanções. Muitos analistas acreditam que os preços de peças sensíveis para UAVs na Rússia encareceu entre 30 e 200 por cento recentemente.
Os veículos aéreos não tripulados foram um dos três pilares da doutrina militar iraniana durante as décadas depois do fim da guerra com o Iraque e durante a reconstrução do poder de combate das forças armadas do país; essa doutrina foi baseada na dissuasão assimétrica no nível estratégico.
A atual doutrina militar da República Islâmica do Irã pode ser retratada com base em três eixos principais, que incluem “desenvolvimento e fortalecimento de forças proxy e assimétricas em nível regional”, “poderio em UAV” e “poderio em mísseis”. Essa doutrina pode ser considerada com base nas necessidades e no ambiente de segurança em evolução da República Islâmica do Irã. Discutimos sobre a capacidade de mísseis do Irã (veja aqui), e parece apropriado abordar a questão da capacidade de fabricação de drones do Irã agora.
O Irã acelerou sua produção de drones depois de alegar ter capturado e exibido um drone americano RQ-170. Alega-se que o Irã foi capaz de assumir o controle do drone no céu e colocá-lo no chão. O Irã afirma ter feito engenharia reversa de exemplares similares também, os UAVs chamados Shahed-171 e Shahed-191.
De acordo com novas imagens divulgadas recentemente em um pequeno clipe da família de UAVs desenvolvida pelo Irã, pelo menos seis tipos foram construídos com base no projeto do RQ-170. Claro, alguns analistas também afirmaram que este drone é apenas uma réplica e não é real. Os Shahed-136, que a Rússia usa como “drones suicidas”, são da geração antiga da família de drones Shahed. Diz-se que centenas deles foram abatidos pela defesa aérea ucraniana. A Ucrânia afirmou recentemente que o Irã planeja vender mais 2.400 drones para a Rússia.
Além dos Shahed, o Irã construiu mais de dez outros modelos de drones com diferentes capacidades. Alguns usam motores turbofan, podem voar com até três toneladas de peso máximo e têm um alcance operacional de até 2.200 km.
Fontes em Washington disseram que o Irã ofereceu os drones Shahed-191 e Shahed-129 para a delegação russa que visitou recentemente o Irã, mas algumas outras fontes também acreditam que o Irã parou de vender seus drones mais novos. Isso poderia demonstrar que Teerã estaria pensando seriamente nas consequências da venda de drones para a Rússia, o que discutiremos na segunda parte deste artigo.
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