A Ucrânia e a indústria de armas do Ocidente

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Militares ucranianos disparam um obuseiro M777 na linha de frente na área de Donetsk em 6 de junho (EPA).

Militares ucranianos disparam um obuseiro M777 na linha de frente na área de Donetsk em 6 de junho (EPA).

Envio maciço de armas para a Ucrânia revela dependência da indústria americana, e o Brasil deve colocar as barbas de molho.


No dia 12 de junho, o tenente-general Igor Konashenkov, representante do Ministério da Defesa da Rússia, divulgou que, desde o início da invasão à Ucrânia, as forças russas destruíram 201 aeronaves, 130 helicópteros, 1.188 veículos aéreos não tripulados, 338 sistemas de mísseis antiaéreos, 3.514 tanques e outros veículos blindados de combate, 508 lançadores de foguetes múltiplos, 1.870 peças de artilharia de campanha e morteiros, além de 3.570 veículos militares especiais.

Nesse mesmo dia, de acordo com Konashenkov, mísseis de cruzeiro Kalibr da Rússia destruíram um grande armazém de sistemas de mísseis antitanque e sistemas portáteis de mísseis antiaéreos na região de Ternopolskaya, próxima de Lviv, fornecidos a Kiev pelos EUA e pela UE. Além disso, há rumores de que muito equipamento militar ucraniano tem sido apreendido pelas tropas russas, sendo empregado contra as forças ucranianas.

Esses números são preocupantes para a Ucrânia, e, supõe-se, devem ser também para seus aliados da OTAN (sem mencionar que, por trás de cada unidade de combate destruída, muito provavelmente há baixas humanas). No entanto, não se ouvem muitas lamentações sobre essas perdas, pelo menos na indústria de defesa.

De acordo com a Sky News, canal de TV britânico, os países da OTAN já enviaram mais de US$ 8 bilhões em equipamentos militares para a Ucrânia, dos quais cerca de US$ 4,6 bilhões pelos Estados Unidos. Empreiteiras de defesa americanas, como Raytheon, Lockheed Martin e Northrop Grumman, entre outras, são as mais beneficiadas.

Na Europa, as principais beneficiárias são a francesa Thales e a britânica BAE Systems, fornecendo principalmente sistemas antitanque NLAW (Next Generation Light Anti-Armour Weapon). Só os britânicos já enviaram à Ucrânia pelo menos 5.000 desses sistemas, a um custo estimado de US$ 40 mil por unidade. A Alemanha não ficou atrás: a empresa Dynamit Nobel Defence já entregou aos ucranianos mais de oito mil unidades de seus lançadores de granadas.

A maior parte das armas entregues à Ucrânia vem dos estoques militares dos países ocidentais. Um exemplo são os já famosos mísseis Stinger: não só os EUA enviaram esse tipo de arma à Ucrânia, mas também Dinamarca, Itália, Letônia, Lituânia e Holanda. Desde janeiro de 2021, a quantidade total de armas alocadas pelos Estados Unidos para a Ucrânia é superior a dois mil sistemas de defesa aérea portáteis Stinger, mais de cinco mil sistemas de mísseis antitanque Javelin e 14 mil “outros sistemas antitanque”.

Esses estoques agora precisam ser repostos, e as empresas de defesa já estão firmando contratos multimilionários para reabastecer os arsenais ocidentais. Apenas no caso dos Stinger, a Raytheon já firmou contratos no valor estimado de 625 milhões de euros para reposição desses mísseis.

Em outras palavras, a guerra na Ucrânia criou uma oportunidade de modernização das forças armadas ocidentais, boa parte às custas dos ucranianos. Além disso, as empresas de armamento estão de olho na provável corrida armamentista para a militarização dos países europeus.

Em entrevista ao britânico The Independent, William Hartung, diretor do projeto Arms and Security do Center for International Policy, disse que essa perspectiva é uma nova “corrida do ouro” para as empresas de defesa.

Segundo ele, a invasão da Ucrânia fez com que muitos países europeus acreditem que podem ser o próximo alvo, o que se tornou um bom incentivo para a indústria militar. Muitos fabricantes de armas estão promovendo seus produtos sob a bandeira da defesa de “ideais democráticos”: de acordo com o TomDispatch.com, em março, citando uma entrevista à Harvard Business Review, Gregory Hayes, presidente da Raytheon, defendeu os lucros de sua empresa com o conflito na Ucrânia:

“Então eu não peço desculpas por isso. Acho que mais uma vez reconhecendo que estamos lá para defender a democracia e o fato é que eventualmente veremos algum benefício no negócio ao longo do tempo. Tudo o que está sendo enviado para a Ucrânia hoje, é claro, está saindo dos estoques, seja do departamento de Defesa ou de nossos aliados da OTAN, e isso é uma ótima notícia. Eventualmente, teremos que reabastecê-lo e veremos um benefício para o negócio nos próximos anos.”

Nesse contexto, a destruição de armas e equipamentos militares dos ucranianos pelas forças russas obviamente agrada à indústria de defesa.

Artilharia

Não obstante os fornecimentos dos países da OTAN, as tropas russas estão consistentemente vencendo os ucranianos com a ferramenta mais importante na condução de conflitos de campo: a artilharia.

Em uma entrevista ao jornal britânico The Guardian, Vadim Skibitsky, vice-chefe da inteligência militar da Ucrânia, disse que tudo depende dos suprimentos do Ocidente. De acordo com ele, a Ucrânia gasta de cinco a seis mil projéteis de artilharia por dia. Um número que, à primeira vista, pode impressionar, mas as forças russas têm de cinco a 10 vezes mais. Ele acredita que o conflito se tornou uma guerra de artilharia, mas as Forças Armadas da Ucrânia quase esgotaram sua munição e agora usam projéteis 155 mm padrão OTAN.

Sobre os déficits ucranianos, recentemente Oleksiy Aristovich, conselheiro militar do chefe de gabinete presidencial da Ucrânia, disse em entrevista ao The Guardian que seu país precisa de 60 lançadores múltiplos de foguetes, muito mais do que o Reino Unido e os EUA prometeram, para ter uma chance de derrotar a Rússia.

Matérias-primas

Mas o reabastecimento dos estoques talvez não seja tão simples. O Departamento de Defesa dos EUA não poderá reabastecer o arsenal de mísseis antitanque (ATGM, Anti-Tank Guided Missile) senão em alguns anos, uma vez que as linhas de produção da época da Guerra Fria foram interrompidas.


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A principal autoridade de aquisições do departamento de Defesa, Ellen Lord, disse em depoimento ao Comitê de Serviços Armados do Senado que o Pentágono não poderá substituir os mísseis antiaéreos Stinger “nos próximos dois anos”, pois as linhas de produção do míssil da era da Guerra Fria foram fechadas, e que alguns componentes mais simples para a produção dos Stinger podem ser difíceis de obter. Ela observou que “provavelmente estamos a cinco anos” de reabastecer o estoque de Javelins, mesmo que a linha de produção não tivesse sido fechada. As perspectivas não parecem melhores para outros tipos de armas.

Não se trata apenas de reabrir linhas de produção. A capacidade do complexo industrial militar americano depende do fornecimento de metais de terras raras, fornecidos aos EUA pelo seu principal oponente no cenário mundial: a China. Nos Estados Unidos, há quem esteja chocado por descobrir que sua capacidade de lutar contra a China (e, na prática, contra qualquer um) possa ser determinada não em Washington, mas em Pequim e, em certa medida, em Moscou.

Assim, já se fala sobre a necessidade de encontrar fontes alternativas, em especial para o antimônio, necessário na produção de munição para armas pequenas, munição traçante, eletrônicos e até armas nucleares. Mas é preciso mais do que apenas antimônio: também é necessário tungstênio, cobalto, lítio e titânio.

A escassez de matérias-primas está obrigando o governo dos EUA a utilizar suas reservas estratégicas para cobrir as necessidades correntes, e, naturalmente, elas estão se esgotando. De acordo com o Senado americano, os estoques do Pentágono durariam no máximo um ano. Depois disso, a produção de caças F-35, tanques M1 Abrams, mísseis terra-ar e muitos outros equipamentos pode parar.

A título de comparação, no início da Guerra Fria, as reservas de materiais estratégicos eram estimadas em US$ 42 bilhões. No final do ano passado, foram reduzidas a US$ 888 milhões, após décadas de vendas autorizadas pelo Congresso a clientes do setor privado. Os congressistas antecipam que o estoque se tornará insolvente em 2025. Em maio, o Pentágono novamente pediu ao Congresso que alocasse parte da reserva estratégica, no valor de US$ 253,5 milhões, para garantir os contratos atuais. Com isso, os fabricantes de armas e aeronaves pretendem comprar toneladas de titânio, tungstênio, cobalto e outros minérios.

Washington parecem estar em um impasse, e só podem esperar que em Pequim (e em menor medida em Moscou) as emoções políticas não prevaleçam sobre o cálculo racional. Atualmente, a China controla quase 90% do fornecimento mundial de minerais de terras raras, bem como as cadeias de suprimentos. A Rússia foi o segundo maior exportador de minerais de terras raras para os Estados Unidos até março de 2022. O terceiro maior exportador desse material para os EUA é o Tajiquistão, parceiro estratégico da Rússia.

Devido a problemas com fornecedores chineses, os EUA voltaram sua atenção para outro grande produtor de metais de terras raras – a Mongólia. Ulan Bator não recusou, mas quando já estavam praticamente fechando os termos do contrato, Washington levantou problemas inesperados por causa da Rússia. A Mongólia tem uma posição geográfica rara. Não tem acesso ao mar e faz fronteira com apenas dois estados – Rússia e China. Para enviar recursos para os Estados Unidos, inevitavelmente será preciso transitar por esses países – os principais oponentes militares e políticos da Casa Branca. A China provavelmente não está interessada em um aumento de concorrência pelos mongóis, portanto Washington pode ter que negociar com Moscou. Assim, em caso de intensificação do confronto, a Rússia tem cartas muito boas.

E há também a questão do urânio. Com 99 reatores nucleares em operação, os Estados Unidos são o maior consumidor mundial dessa matéria-prima. Cerca de 89% das usinas nucleares americanas dependem da importação de combustível de outros países. A participação combinada da Rússia, Cazaquistão e Uzbequistão no mercado americano é de 40%.

Como se vê, Washington é dependente de Pequim e Moscou. Naturalmente, surge uma pergunta: por que a Rússia e a China não atingem os Estados Unidos no âmago, ou seja, nos metais de terras raras? Teoricamente, isso pode ser feito facilmente, mas na prática as coisas são mais complicadas. A interdependência política e econômica é clara e requer ponderação antes de uma decisão, mas se o relacionamento entre esses países chegar a um ponto crítico, pode não ser mais uma questão de escolha.

Hoje a situação americana em relação às terras raras é semelhante à questão da energia russa para a Europa. Fechar a torneira do gás provavelmente levaria a economia europeia ao colapso. Mas o colapso da UE também atingiria a Rússia. Portanto, há muita coisa a considerar, e essas ponderações muitas vezes impedem governos de tomar ações mais drásticas.

Os EUA e a UE estão tentando impor uma guerra de desgaste à Rússia, mas seu proxy, a Ucrânia, está perdendo, e o custo para as economias ocidentais está crescendo. E, enquanto o conflito prosseguir, o mais provável é que a Rússia não dê trégua nem ao regime de Kiev, nem ao Ocidente.

E o Brasil?

De acordo com o Serviço Geológico dos EUA, o Brasil possui uma das maiores reservas de metais de terras raras do mundo, estimada em 22 milhões de toneladas. As maiores se encontram no Amazonas e em Minas Gerais. Embora as terras raras tenham sido consideradas minerais estratégicos pelo Plano Nacional de 2030 do Ministério de Minas e Energia em 2011, nossa produção ainda é baixa.

Obviamente, esse é apenas mais um ponto de interesse das potências ocidentais em nossos recursos, o que justifica seu apetite em manter uma influência forte sobre o direcionamento de nossas políticas.

Poderia ser esse um dos motivos do repentino interesse dos EUA nas eleições brasileiras, e da visita de Victoria Nuland, do departamento de Estado americano ao país? O tempo dirá. Mas como se vê, o jogo entre as potências é pesado, e o Brasil, rico em recursos de todos os tipos, pode ser a “bola da vez” no interesse dos mandatários globais. A crescente polarização e desestabilização de nossa população, tal como assistimos hoje, em nada contribui para nossa consolidação como potência.

É fundamental que nossa sociedade esteja atenta aos ataques travestidos de “defesa do meio ambiente” e “proteção da democracia”, sob pena de não ter nem um, nem outro.

Referências

Brasil tem segunda maior reserva mundial de terras raras, mas não aparece entre os maiores produtores. Instituto Minere, 1º de junho de 2019. Disponível em: https://institutominere.com.br/blog/brasil-tem-segunda-maior-reserva-mundial-de-terras-raras-mas-nao-aparece-entre-os-maiores-produtores.

PECK, Michael. Russian Artillery Could Totally Blow the U.S. Army Away. The National Interest, 14 de abril de 2021. Disponível em: https://nationalinterest.org/blog/reboot/russian-artillery-could-totally-blow-us-army-away-182759.

HARTUNG, William D., e GLEDHILL, Julia. The New Gold Rush. TomDispatch, 17 de abril de 2022. Disponível em: https://tomdispatch.com/the-new-gold-rush/.

BUNCOMBE, Andrew. War in Ukraine is a ‘gold rush’ for Western arms makers, experts say. The Independent, 20 de abril de 2022. Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/world/europe/ukraine-war-weapons-arms-russia-b2061662.html.

LARSON, Caleb. Supply Crisis: U.S. Javelin and Stinger Stocks Rapidly Dwindle. The National Interest, 28 de abril de 2022. Disponível em: https://nationalinterest.org/blog/buzz/supply-crisis-us-javelin-and-stinger-stocks-rapidly-dwindle-202121.

LARSON, CALEB. Javelin Supplies Dwindling After Decimating Russian Military in Ukraine. The National Interest, 10 de maio de 2022. Disponível em: https://nationalinterest.org/blog/buzz/javelin-supplies-dwindling-after-decimating-russian-military-ukraine-202342.

HARRIS, Bryant. Congress and Pentagon seek to shore up strategic mineral stockpile dominated by China. Defense News, 23 de maio de 2022. Disponível em: https://www.defensenews.com/congress/2022/05/23/congress-and-pentagon-seek-to-shore-up-strategic-mineral-stockpile-dominated-by-china/.

SABBAGH, Dan. Ukraine needs many more rocket launchers from west, says adviser. The Guardian, 6 de junho de 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/jun/06/ukraine-needs-many-more-rocket-launchers-from-west-says-adviser.

KOSHIW, Isobel. We’re almost out of ammunition and relying on western arms, says Ukraine. The Guardian, 10 de junho de 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/jun/10/were-almost-out-of-ammunition-and-relying-on-western-arms-says-ukraine.

Russian Armed Forces shot down three Ukrainian Su-25 aircraft over day. Tass, 12 de junho de 2022. Disponível em: https://tass.com/defense/1464017.

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4 comentários

  1. A economia mundial entrando em recessão ,como os políticos desses países vão justificar esses gastos em armamentos ? Tempos difíceis virão pela frente.

  2. Para quem vem acompanhando as matérias aqui publicadas e também de canais parceiros seus isso não é novidade, mas detalhes nos dão argumentos para expandir essa consciência.
    Parabéns pelo trabalho!

  3. Saudações. Faltaram duas informações relevantes.

    Primeiro: um dos maiores produtores mundiais de titânio (ou seria o maior, não tenho certeza) é a Rússia.

    Segundo: a extração de minério de terras raras é apenas o começo. A China tem capacidade de produção e refino até certo grau de concentração e pureza. Mas os processos industriais requerem uma pureza ainda maior, que me parece que só os EUA possuem. E isso faz com que a China envie aos EUA essa produção no estágio em que consegue, para os EUA purificarem mais, e recebem de volta. Aí usam e exportam para seus clientes finais, que incluem Coreia do Sul e Japão.

    A suprema ironia é que uns dependem dos outros.

    Seria inteligente se os brasileiros se capacitassem a purificar sua produção de terras raras ao nível americano e vender apenas o produto final. Isso é “valor agregado” e receita para o país.

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