As tensões Rússia-Ocidente

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O presidente russo, Vladimir Putin, participa de uma reunião com membros do governo por meio de um link de vídeo em Sochi, Rússia, 24 de novembro de 2021 (Reuters).

O presidente russo, Vladimir Putin, participa de uma reunião com membros do governo por meio de um link de vídeo em Sochi, Rússia, 24 de novembro de 2021 (Reuters).

Não é possível afirmar se a Rússia vai ou não invadir a Ucrânia; o certo é que chegamos à situação atual por motivos bem mais complexos do que simplesmente autoritarismo.


Nos últimos dias a mídia vem anunciando incessantemente uma iminente invasão da Ucrânia pela Rússia, e uma notícia recente informa que, conforme relatórios da inteligência americana, a invasão poderia ocorrer nesta quarta-feira (16 de fevereiro). De acordo com a Reuters, funcionários do governo em Washington disseram que não podem confirmar a informação, mas estão tentando prevenir um “ataque surpresa”, e que a invasão “pode ocorrer a qualquer minuto agora”.

Jake Sullivan, conselheiro de segurança da Casa Branca, disse ao programa Face the Nation, da rede CBS, que os EUA vão “defender cada centímetro do território da OTAN, cada centímetro do território do Artigo Cinco”, acrescentando que acredita que a Rússia “entendeu totalmente essa mensagem”.

Embora a cobertura de boa parte dos veículos de comunicação seja pró-EUA e muitas vezes leve os mais incautos a concluir a Rússia invadirá a Ucrânia exclusivamente devido ao autoritarismo de Vladimir Putin, os motivos reais são significativamente mais complexos. Se Putin não é um santo, tampouco é um demônio, e isso se aplica também aos líderes ocidentais. As tensões vêm escalando há décadas, e os EUA contribuíram significativamente para que as coisas chegassem no ponto em que estão hoje.

Promessas foram feitas e não cumpridas e muitos erros foram cometidos na condução de diversas questões no pós-Guerra Fria. Isto posto, é importante resgatar um pouco do histórico pelo qual chegou-se à atual situação.

Relações da URSS com os EUA

Com a ascensão de Mikhail Gorbachev em 1985, a Rússia (então ainda URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), buscou melhorar as relações com os EUA através das políticas conhecidas como Perestroika[1] e Glasnost[2]. A ascensão de Boris Yeltsin estreitou ainda mais as relações entre EUA e Rússia; Yeltsin dizia que a Rússia e o Leste europeu deveriam se democratizar, e com isso conquistou a simpatia e o apoio de líderes americanos.

A melhora nas relações entre a Rússia e o Ocidente ficou clara durante a unificação das Alemanhas em fevereiro de 1990, que só foi possível devido ao apoio de Gorbachev. Com a reunificação, a Alemanha Oriental passaria a fazer parte da OTAN, uma vez que a Alemanha Ocidental já era membro da Aliança. Do ponto de vista da URSS, isso representaria um problema de segurança.

Assim, em troca de renunciar à Alemanha Oriental, Gorbachev recebeu do secretário de Estado americano James Baker a promessa de que a OTAN não se expandiria em direção ao Leste. Nas palavras de Baker, a OTAN não avançaria “nem uma polegada em direção ao Leste”, frase que acabou entrando para a história. Mas a promessa feita e aceita não se tornou parte de um tratado, e esse talvez tenha sido o maior erro de Gorbachev.

Independência da Ucrânia e queda da URSS

Em 1º de dezembro de 1991, a Ucrânia votou um referendo por sua independência da União Soviética, elegendo Leonid Kravchuk como seu primeiro presidente, apesar das pressões de Moscou para que Kiev reconsiderasse e fizesse parte de uma espécie de “União Soviética reestruturada”. Dias depois do referendo, líderes da Ucrânia, Rússia e Bielorrússia estabeleceram a Comunidade de Estados Independentes (CEI). Poucos dias depois, em 26 de dezembro de 1991, a URSS foi formalmente dissolvida.

Com a queda da União Soviética, Yeltsin esperava que a Rússia recebesse ajuda econômica americana, mais ou menos nos moldes da Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial, mas isso nunca aconteceu. Segundo o economista americano Jeffrey Sachs, o mínimo necessário para recuperar a economia russa seria um aporte de US$ 30 bilhões em 1992. George Bush (pai) chegou prometer essa ajuda, mas perdeu a eleição para Bill Clinton.

No final de 1992, a inflação na Rússia chegou a mais de 2.300%, a população não tinha dinheiro, e a situação do país era caótica. Nesse período despontaram as máfias e começaram a surgir os oligarcas russos, alguns dos quais prosperaram por já controlar redes de contrabando no período soviético.

Em 5 de dezembro de 1994, durante uma conferência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE, Organization for Security and Co-operation in Europe) em Budapeste, três potências nucleares: a Federação Russa, o Reino Unido e os Estados Unidos, assinaram o Memorando de Budapeste, um acordo pelo qual os signatários ofereciam garantias de segurança contra ameaças contra a integridade territorial ou a independência política de Ucrânia, Bielorrússia e Cazaquistão. China e França, individualmente, ofereceram garantias em documentos separados.

Como resultado do acordo, entre 1994 e 1996 a Bielorrússia, o Cazaquistão e a Ucrânia renunciaram as suas armas nucleares. Até então, a Ucrânia possuía o terceiro maior arsenal de armas nucleares do mundo, do qual, porém, detinha apenas controle físico. O controle operacional permanecia nas mãos da Rússia, que mantinha os códigos de operação através de meios eletrônicos geridos sob seu sistema de comando e controle.


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Em 2009, os EUA e a Rússia emitiram uma declaração conjunta de que as garantias do Memorando de Budapeste seriam mantidas mesmo depois da expiração do Tratado START.

Em 1994, a Rússia invadiu a Chechênia, na sequência de uma declaração de independência. Os chechenos resistiram, e os combates duraram cerca de dois anos. Na prática, resultaram na desmoralização do Exército russo, de certo modo refletindo o caos que tomou o país após a queda da URSS. Em 1996, Yeltsin declarou um cessar-fogo unilateral e assinou um tratado de paz em 1997.

Em agosto de 1999, a Segunda Guerra da Chechênia reverteu o resultado da primeira. No ocidente, as chamadas Guerras da Chechênia foram muito criticadas, principalmente devido aos crimes de guerra e violações de direitos humanos que teriam sido perpetrados pelas tropas russas. Embora tenha havido quem afirmasse que essas guerras mostraram o autoritarismo da Rússia, nenhum país do Ocidente reconheceu a independência da Chechênia e, no geral, se aceitou o direito de Moscou de proteger sua integridade territorial.

Em março de 1999, a OTAN realizou uma campanha de bombardeio na Iugoslávia sem autorização do Conselho de Segurança da ONU. Do ponto de vista dos russos, a operação levantou uma questão importante: se a OTAN era uma aliança defensiva, e nenhum país-membro tinha sido atacado, por que a OTAN agora tomava ações ofensivas? Isso teve um impacto importante na opinião pública da Rússia. Para muitos russos, foi um sinal de que os EUA não eram confiáveis e que atacariam a Rússia se tivessem oportunidade.

O então primeiro-ministro russo Yevgeny Primakov, que viajava aos EUA em visita oficial, em protesto contra o bombardeio, mandou o piloto fazer meia-volta e retornar a Moscou, enquanto ainda sobrevoava o Oceano Atlântico. Como Yeltsin ainda esperava pela ajuda financeira de Washington, quis talvez agradar os americanos e substituiu Primakov por Sergei Stepashin (em agosto, ele demitiria Stepashin e empossaria Vladimir Putin, então um ilustre desconhecido).

Em 2003, os EUA e aliados atacaram o Iraque e derrubaram o governo de Saddam Hussein, sob a justificativa de que o país dispunha de armas de destruição em massa (uma acusação que nunca foi comprovada). Mais uma vez, foi uma ação não autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, e não apenas os russos foram contra, mas também outros aliados da OTAN. Em 2004, Kofi Annan, então secretário-geral da ONU, disse que a invasão foi ilegal. Embora não tenha tido participação direta da OTAN, a operação foi vista pelos russos como mais uma mostra de que não podiam confiar nos EUA.

Em agosto de 2008, a Rússia invadiu a Geórgia, no episódio que ficou conhecido como Guerra Russo-Georgiana. A Ossétia do Sul e a Abkhazia, duas províncias separatistas da Geórgia, foram apoiadas pela Rússia. Esse conflito mais uma vez foi visto no Ocidente como uma ação autoritária de Moscou, e contribuiu para deteriorar ainda mais as relações da Rússia com o Ocidente.

No final de 2013, o Euromaidan, na Ucrânia, foi uma onda de protestos que exigia maior integração com a Europa. A pauta dos protestos evoluiu, abrangendo a renúncia do presidente Viktor Yanukóvytch e o fim da corrupção no governo. Em fevereiro de 2014, a repressão às manifestações aumentou, e o saldo dos confrontos com a polícia foi de dezenas de mortes e centenas de feridos. Yanukóvytch foi forçado a fazer concessões para encerrar a crise. No final, ele e outros altos funcionários do governo fugiram do país. O parlamento o removeu do cargo e instalou um governo pró-União Europeia.

Nos EUA, tanto o governo Obama quanto a maior parte dos meios de comunicação mostraram o Euromaidan como uma revolta popular espontânea contra um governo corrupto e brutal. Em 24 de fevereiro de 2014, um editorial do The Washington Post celebrou os manifestantes e a queda de Yanukovych. De acordo com o Post, os movimentos “foram democráticos” e “Kiev agora é controlada por partidos pró-Ocidentais”.

No entanto, a Rússia viu a situação por uma ótica bem diferente. Além do apoio explícito de políticos americanos, dentre eles o senador republicano John McCain, que viajou à Ucrânia e reuniu-se com manifestantes e partidos de oposição, houve o vazamento do telefonema entre Victoria Nuland, secretária de Estado adjunta para Assuntos Europeus e Eurasianos, e o embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt. Na chamada, eles discutiam candidatos para um novo governo ucraniano. Sua preferência era Arseniy Yatsenyuk, que efetivamente se tornou primeiro-ministro com a queda de Yanukóvytch. Durante a conversa, Nuland chegou a afirmar entusiasmada que “Yats é o cara” que faria o melhor trabalho.

Dados esses acontecimentos, não deveria surpreender que a Rússia reagisse mal à derrubada de um governo ucraniano pró-Rússia, que caiu não apenas com a simpatia de Washington, mas aparentemente com sua ajuda.

No final de fevereiro de 2014, tropas russas entraram na Crimeia. Depois de um controverso referendo em 16 de março, considerado ilegal pela Ucrânia e por grande parte do Ocidente, a República da Crimeia declarou independência da Ucrânia e aprovou uma reunificação com a Rússia. Em 18 de março, a Rússia anexou formalmente a península, incorporando-a à Federação. A maior parte dos países ocidentais considera o movimento ilegal, embora pesquisas indiquem o apoio da grande maioria dos moradores da Crimeia.


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Depois da anexação da Crimeia, os EUA, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, e Reino Unido declararam que a conduta da Rússia constituía uma violação de suas obrigações assumidas com o Memorando de Budapeste. Em 4 de março de 2014, Putin descreveu a situação ucraniana como uma revolução: “um novo estado surgiu, mas com este estado e em relação a este estado, nós não assinamos nenhum documento obrigatório.” Moscou afirmou que nunca teve a obrigação de “forçar qualquer porção da população civil da Ucrânia a permanecer na Ucrânia contra sua vontade”, e sugeriu que os EUA violaram o Memorando de Budapeste ao instigar um golpe no país através do Euromaidan.

Ainda em março de 2014, manifestações de grupos pró-Rússia na região do Donbass, na Ucrânia, culminaram em uma guerra civil que opôs o governo ucraniano aos separatistas das autodeclaradas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. A Ucrânia acusou a Rússia de apoiar os separatistas, mas Moscou negou qualquer envolvimento e se colocou como mediadora.

O Protocolo de Minsk, concebido na capital da Bielorrússia em setembro de 2014 e assinado pela Ucrânia, Rússia e representantes dos separatistas, previa um cessar-fogo, anistia para os rebeldes que depusessem armas e a criação de um corredor de ajuda humanitária. No entanto, as hostilidades continuaram. Recentemente, a Rússia rejeitou uma oferta de mediação pela Turquia, afirmando que não é parte do conflito.

Putin, pró-Ocidente?

Há indicações de que, no início de seu mandato, Putin procurou seguir uma orientação pró-ocidental. Quando ocorreram os atentados do 11 de setembro de 2001, ele foi o primeiro líder estrangeiro a oferecer apoio a George W. Bush.

De acordo com Jack Matlock[3], ex-embaixador americano em Moscou, no artigo Who is the bully? The U.S. has treated Russia like a loser since the end of the Cold War (Quem é o valentão? Os EUA tratam a Rússia como um perdedor desde o fim da Guerra Fria), publicado no The Washington Post em 2014, Putin cooperou com os Estados Unidos quando estes invadiram o Afeganistão, e fechou por sua própria iniciativa a base de SIGINT russa de Lourdes, em Cuba, e a base naval russa da Baía de Cam Ranh, no Vietnã.

Putin queria que a Rússia ingressasse na OTAN. De acordo com o britânico George Robertson[4], secretário-geral da aliança entre 1999 e 2003, Putin deixou isso claro em uma reunião em 2000. Putin perguntou a Robertson quando seria convidado para ingressar na organização, e Robertson respondeu que a OTAN não faz convites, mas os países se candidatam.

O relato de Robertson coincide com o que Putin disse em uma entrevista à David Frost[5], na BBC, pouco antes de sua posse como presidente. Putin afirmou que não descartaria ingressar na OTAN “se e quando as opiniões da Rússia forem levadas em consideração como as de um parceiro igual”. Ele disse ainda que: “A Rússia faz parte da cultura europeia. E não consigo imaginar meu próprio país isolado da Europa e do que costumamos chamar de mundo civilizado.”

No entanto, de acordo com Matlock, em troca de sua postura pró-ocidente Putin recebeu sucessivas expansões da OTAN para leste, a retirada dos EUA do Tratado de Mísseis Antibalísticos, a invasão do Iraque sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU, incentivo às “revoluções coloridas” na Ucrânia, Geórgia e Quirguistão, e discussões sobre levar a Geórgia e a Ucrânia para a OTAN.

Em seu artigo, Matlock disse que os russos se sentiram enganados com as promessas americanas. De acordo com ele, se em 1991 pesquisas indicavam que 80% dos cidadãos russos tinham uma visão favorável dos EUA, em 1999, depois de quase uma década de catástrofe econômica e expansão sem precedentes da OTAN, quase o mesmo percentual tinha uma visão desfavorável.

A expansão da OTAN

A formação original da fundação da OTAN, em 1949, contava com doze membros. Em 1952, na primeira onda de expansão, foram aceitas a Grécia e a Turquia; a Alemanha Ocidental ingressou na segunda onda, em 1955, e a Espanha na terceira, em 1982. Em 1990, no final da Guerra Fria, houve uma alteração devido à unificação da Alemanha.

Apesar da promessa de James Baker em 1991, a OTAN não deixou de se expandir em direção a Leste: Em 1999, houve uma quarta onda, quando Polônia, Hungria e República Tcheca foram aceitas. A quinta expansão ocorreu com a adesão, em 2004, de Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia (contrariando a afirmação de George Robertson, esses países foram convidados a iniciar as negociações de adesão durante a Cúpula de Praga em 2002). A Albânia e a Croácia aderiram à organização na sexta onda, em 2009. As expansões mais recentes foram Montenegro (sétima onda), em 2017, e a Macedônia do Norte (oitava onda), em 2020.


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George Kennan[6], diplomata americano, afirmou que a expansão da OTAN, após a queda da URSS, seria o maior erro da política norte-americana. Em seu artigo intitulado A fateful error (Um erro fatal, em tradução livre), publicado em 1997 no The New York Times, Kennan pergunta:

“Por que, com todas as possibilidades esperançosas geradas pelo fim da Guerra Fria, as relações Leste-Oeste deveriam se centrar na questão de quem seria aliado com quem e, por implicação, contra quem em algum fantasioso, totalmente imprevisível e muito improvável futuro conflito militar?”

Em outro trecho de seu artigo, Kennan foi enfático:

Pode-se esperar que tal decisão incite as tendências nacionalistas, antiocidentais e militaristas na opinião [pública] russa; ter efeito adverso no desenvolvimento da democracia russa; restaurar a atmosfera da guerra fria nas relações Leste-Oeste, e impulsionar a política externa russa em direções que decididamente não são do nosso agrado.”

Nesta terça-feira, a Duma, o parlamento russo, aprovou uma resolução pedindo que Putin reconheça Luhansk e Donetsk como países independentes. Kennan não foi apenas enfático, foi profético – suas palavras parecem estar se concretizando exatamente agora.

Profundidade estratégica

Em 2005, em seu discurso anual na Assembleia Federal da Rússia, Vladimir Putin disse que o colapso da União Soviética “foi a maior catástrofe geopolítica do século”, fomentando movimentos separatistas dentro da Rússia.

Segundo Putin, foi uma verdadeira tragédia para o povo russo, pois milhões de cidadãos de repente estavam fora do território do país. Além disso, “A epidemia do colapso se espalhou para a própria Rússia”, disse ele, referindo-se a movimentos separatistas como os da Chechênia. Do ponto de vista de Putin, a fragmentação da União Soviética custou à Rússia o fator que lhe permitiu sobreviver a invasões estrangeiras desde o século XVIII: profundidade estratégica.

Ao longo dos séculos, a Rússia sofreu diversas invasões, a começar pelos mongóis, ainda no início de sua história: a chamada Horda Dourada dominou o “Rus de Kiev” (Kiev e a Ucrânia são o “berço” da Rússia) de 1223 a 1236. Mais tarde, em 1571, o Império Otomano invadiu Moscou; durante a guerra com a Polônia, de 1605 a 1618, os poloneses conquistaram Severia, hoje uma região histórica na atual Ucrânia, e Smolensk, próxima à fronteira com a Bielorrússia. Entre 1610 e 1617, durante a chamada Guerra Ingriana, a Suécia tomou Novgorod, a 150 quilômetros de São Petersburgo, e Pskov, a 70 quilômetros da fronteira com a Estônia.

Em 1812, Napoleão invadiu a Rússia e chegou até Moscou, ainda que a cidade estivesse vazia. O fiasco das forças russas na Primeira Guerra Mundial, no colapso do Império Russo e logo após a Revolução Russa, forçou o país a ceder territórios em diversas frentes, para a Alemanha, para o Japão e para o Império Otomano.

Finalmente, em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista invadiu o país no âmbito da Operação Barbarossa, abrindo a chamada Frente Oriental. A Rússia foi brutalmente devastada, e as marcas e lembranças dessa invasão ainda estão presentes no país.

Assim, a ideia de exércitos invadindo seu território foi materializada diversas vezes em diferentes gerações, criando nos russos um temor quase atávico de invasões, especialmente vindas do Ocidente. Daí a importância do conceito de profundidade estratégica; as considerações ocidentais a respeito das motivações de Putin não podem ignorar o fato de que os temores da Rússia são genuínos e, até certo ponto, bem fundamentados.

Nesse sentido, a preocupação de Putin com a expansão da OTAN se justifica. No auge da Guerra Fria, São Petersburgo estava a cerca de 1.600 quilômetros das forças da OTAN, e Moscou, a cerca de 2.100 quilômetros. Com a queda da União Soviética e as ondas de avanço da OTAN para o leste, a OTAN está hoje a cerca de 160 quilômetros de distância de São Petersburgo, e a cerca de 800 quilômetros de Moscou.


Diminuição do “amortecedor” entre a Rússia e os países membros da OTAN (OTAN/Geopolitical Futures).

A OTAN e a Europa talvez não tenham o interesse ou a capacidade para envolver a Rússia, mas Putin sabe que interesse e capacidade mudam com o passar do tempo, e entende que a principal ameaça à Rússia vem do Ocidente.

A possibilidade de implantação de tropas e armas da OTAN na Ucrânia, próximo à fronteira com a Rússia, e a menos de 500 quilômetros de Moscou, reaviva esses temores. Um míssil instalado na Ucrânia levaria de sete a 10 minutos para atingir Moscou, e esse foi um dos alertas de Putin, no final do ano passado. Segundo ele, essa é uma “Linha Vermelha” para Moscou.

O que Putin quer?

Putin quer evitar que a Ucrânia, estrategicamente situada no flanco sudoeste da Rússia, seja parte da OTAN. É provável que o líder russo queira construir uma esfera de influência de Moscou na Europa Oriental, abrangendo principalmente as ex-repúblicas soviéticas. Isso não significa recriar a União Soviética, mas desenvolver uma esfera de influência que proporcione a profundidade estratégica desejada pela Rússia.

Há quem diga que Putin também se opõe ao desenvolvimento de ligações de Kiev com a União Europeia, tanto por questões comerciais, como políticas. É possível. Talvez ele queira também reafirmar que a Rússia continua sendo uma superpotência, especialmente pelo seu arsenal nuclear e pelas vastas reservas de gás e petróleo.

Putin pode ter sentido fraqueza nas lideranças ocidentais atuais, e percebeu a oportunidade de enfraquecer os EUA e seus aliados, expondo suas fraquezas e semeando dúvidas. Putin mostra habilidade em explorar fissuras que depois podem ser amplificadas por meio de ameaças militares, pressão econômica e subversão, potencialmente levando à fragmentação ou redução da própria OTAN.

Para encerrar o impasse atual, o ex-agente da KGB exige que a OTAN se comprometa, formalmente, a nunca aceitar a Ucrânia, a Geórgia e a Moldávia como membros. Ele quer que a aliança se afaste dos países da chamada “linha de frente”, como Polônia, Romênia e Bulgária. Quer que Kiev aceite o status de autonomia da região de Donbass, e renuncie de vez à Crimeia.

Vladimir Putin quer limitar ou interromper implantações de mísseis de médio alcance dos EUA no leste e no sul da Europa. Ainda mais, ele quer redesenhar a “arquitetura de segurança” da Europa, restabelecendo a influência da Rússia e ampliando seu alcance geopolítico.

O problema é que os EUA e a Europa não aceitam a maior parte dessas exigências.

Voltando ao início do artigo, será Putin um bom moço, cheio de boas intenções? É claro que não. Mas este pode ser um bom momento para reler o artigo de George Kennan.

Referências

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SAVRANSKAYA, Svetlana; BLANTON, Tom. George Washington University. NATO Expansion: What Gorbachev Heard. National Security Archive, 12 de dezembro de 2017. Disponível em: https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early.

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Notas

[1] Perestroika, que significa “reconstrução”, foi o nome dado às políticas de reforma e abertura econômicas conduzidas por Mikhail Gorbachev na União Soviética em 1986.

[2] Glasnost, palavra que significa “transparência”, foi o processo de abertura política implantado por Mikhail Gorbachev na União Soviética em 1986, que acabou sendo um dos fatores que contribuíram para o colapso da URSS.

[3] Jack F. Matlock foi embaixador americano em Moscou nos governos de Ronald Reagan e George Bush (pai), entre 1987 e 1991.

[4] Islay MacNeill George Robertson foi secretário de Defesa do Reino Unido de 1997 a 1999, e décimo secretário-geral da OTAN entre outubro de 1999 e início de agosto de 2004.

[5] David Paradine Frost foi jornalista, comediante, escritor e apresentador britânico, famoso por entrevistar o ex-presidente americano Richard Nixon sobre o escândalo Watergate.

[6] George F. Kennan foi um diplomata e historiador americano, conhecido como defensor de uma política de contenção da expansão soviética durante a Guerra Fria.

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3 comentários

  1. O artigo é muito interessante, mas parte da visão da própria Rússia. Como se a Ucrânia e os demais países não fossem independentes e vivessem na fronteira de uma grande potência ditatorial, como sempre foi, desde o Século XVI. A garantia de que continuarão independentes é, justamente, se aliar ao Ocidente, seja ingressando na UE, seja na OTAN.

    1. Me permita discordar. Ele apenas não parte da visão americana, o que é bem diferente de partir da visão russa.

    2. Ah, claro: México e Canadá têm inteira liberdade de instalar mísseis russos em seus territórios…

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