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O comandante Pat Quinlan, primeiro em pé à esquerda, posa com os soldados da Companhia A do 35º Batalhão de Infantaria do Exército Irlandês, em Elisabethville, Congo, antes do cerco (Foto: Time/Cortesia de Leo Quinlan).

Em 1961, 158 soldados irlandeses da força de paz da ONU foram cercados em Jadotville, na República Democrática do Congo, resistiram durante cinco dias a uma força vinte vezes superior, mas não foram reconhecidos por sua bravura. O que aconteceu?


No dia 30 de junho de 1960, o Congo, até então colônia belga, conseguiu sua independência, passando a se chamar República do Congo. Nesse período foi apelidado de Congo-Léopoldville para diferencia-lo do Congo Francês, que também havia adotado “República do Congo” como nome oficial.

Nas eleições que se seguiram, Patrice Lumumba, que tinha apoio dos soviéticos, assumiu o cargo de primeiro-ministro. Com a independência, os negros alistados na Force Publique (a gendarmeria e força militar do período colonial belga) se amotinaram contra os oficiais brancos belgas, e ondas de violência anti-branca tomaram o país.

O primeiro-ministro Lumumba aboliu a Force Publique e criou o Armée Nationale Congolaise (Exército Nacional Congolês), o que levou a Bélgica a enviar tropas para proteger os cidadãos brancos. Lumumba então solicitou ajuda das Nações Unidas para remover as tropas belgas. O Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução nesse sentido e criou a ONUC (Opération des Nations Unies au Congo, Operação das Nações Unidas no Congo) e ordenou tropas de manutenção da paz no país.

Em 11 de julho de 1960, apenas quatro dias antes da chegada das primeiras forças da ONU, Moise Tshombe, político anticomunista, com o apoio de tropas e empresários belgas, assumiu o controle da província de Katanga, uma rica região de mineração, e declarou sua independência do Congo. Na sequencia, em 23 de julho, as tropas belgas deixaram, mas forças mercenárias permaneceram em Katanga. Assim, as forças da ONU acabaram em meio a uma guerra civil tendo o governo central do Congo, de Lumumba, de um lado, e a província separatista de Katanga, de Tshombe, de outro.


Mapa com a localização do Congo, Katanga e Jadotville, hoje Likasi.

Tentando impedir a separação de Katanga, Lumumba procurou obter apoio da URSS, o que provocou os Estados Unidos. O ocidente temia que os soviéticos explorassem as ricas reservas de urânio do Congo na produção de suas armas nucleares.

Dag Hjalmar Agne Carl Hammarskjöld, o Secretário-Geral da ONU, recusava-se a colocar os capacetes-azuis a serviço de Lumumba, o que irritava Nikita Kruschev, o líder soviético. A situação se agravaria com o fuzilamento de Lumumba pelas tropas katanganesas em janeiro de 1961. Os EUA, o Reino Unido e a Bélgica foram acusados de estarem implicados em sua execução.

Em fevereiro, Hammarskjöld autorizou as tropas da ONU a empregar força militar para impedir a guerra civil. Nomeou Conor Cruise O’Brien, diplomata irlandês, como seu representante especial para o Congo. O’Brien chegou a Elisabethville, capital da província de Katanga, em junho.

Em agosto, as tropas foram enviadas à província separatista com objetivo de prender e repatriar tropas e mercenários belgas, dando um fim à revolta. No entanto, as forças da ONU careciam de informações precisas e estavam mal equipadas, com equipamento mais adequado à uma missão de policiamento. Além disso, os katanganeses, negros e brancos, nutriam um forte sentimento pró-katanganês e anti-ONU, e consideravam os capacetes-azuis como invasores.

A Companhia A

Entre as forças de paz estavam 158 homens da Companhia A do 35º Batalhão de Infantaria do Exército Irlandês, liderada pelo comandante Pat Quinlan. A maioria dos homens da unidade estava no início dos vinte anos e nunca tinha entrado em combate. Tiveram alguma experiência e desenvolveram um relacionamento sólido enquanto treinavam e patrulhavam a região nas semanas anteriores. Estavam armados com modernos rifles FN FAL (há fontes que indicam que eles usavam velhos rifles Lee Enfield da Primeira Guerra Mundial). No entanto, grande parte de seu equipamento era da Segunda Guerra, como metralhadoras Vickers refrigeradas a água, morteiros de 60 mm e uma metralhadora leve Bren.

O secretário-geral, Hammarskjöld recebeu queixas do ministro das Relações Exteriores da Bélgica, dizendo que colonos belgas e a população da cidade de Jadotville, 80 milhas a noroeste de Elisabethville, estava desprotegida e ele temia por sua segurança. Assim, no início de setembro, a Companhia A foi enviada à cidade, alegadamente para proteger seus cidadãos. A unidade não foi bem recebida pela população local – como mencionado, havia um forte sentimento anti-ONU na região.

Um fato digno de nota – e nunca explicado –, foi que, dias antes da chegada da Companhia A, duas outras unidades da força de paz, uma sueca e outra irlandesa, foram retiradas de Jadotville.

Operação Morthor

Em 13 de setembro de 1961 foi lançada a Operação Morthor, com o objetivo de assumir o controle de Katanga, levando a uma batalha de oito dias entre a ONUC e as forças katanganesas. As forças da ONU acabaram tomando algumas posições em Elisabethville.

O representante especial O’Brien, que era efetivamente o comandante da ONU no Congo, autorizou a ação. Na época Hammarskjöld afirmou que não sabia que a operação estava em curso. No entanto, há muita controvérsia nesta questão, com fontes que dizem que O’Brien cumpria ordens de Hammarskjöld, e outras que afirmam que ele agiu por conta própria.


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O fato é que Hammarskjöld queria que o problema de Katanga fosse resolvido antes da próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, e a conduta de ambos no Congo é até hoje uma questão discutida.

Outro fato é que a Operação Morthor foi omitida de Quinlan.

No entanto, percebendo o nível de hostilidade a seus homens em Jadotville, o comandante Quinlan começou a organizar um perímetro defensivo em torno de sua base. Ordenou aos homens que cavassem trincheiras, armazenassem água e carregassem suas armas o tempo todo.

Logo após o início da Operação Morthor, os katanganeses tomaram uma ponte sobre o rio Lufira, na estrada que liga Jadotville à capital Elisabethville, isolando os irlandeses. A seguir, atacaram a Companhia A.

A batalha

O que inicialmente parecia uma missão simples terminou numa luta encarniçada, colocando os irlandeses contra um inimigo mais bem armado e numericamente muito maior. A força katanganesa, de 3.000 homens (conforme a fonte, variando de 3.000 a 5.000), era composta na maior parte por guerreiros da tribo Luba apoiados por mercenários belgas, franceses e rodesianos. Era comandada por René Faulques (conforme a fonte, Roger ou Robert Faulques), ex-coronel do exército francês e paraquedista da Legião Estrangeira contratado por Tshombe.

Os homens de Faulques estavam equipados com armamento leve e pesado, que incluía morteiros de 81 mm e um canhão francês de 75 mm. Também contavam com o apoio aéreo de um jato de treinamento Fouga Magister armado com metralhadoras e bombas.

Em 13 de setembro, às 07h40m da manhã, enquanto a maior parte dos irlandeses assistia à uma missa, as forças katanganesas iniciaram o ataque. Um sentinela irlandês disparou um tiro de alerta mobilizando a companhia. A batalha que se seguiu durou cinco dias.

Os ataques eram precedidos por bombardeios dos morteiros de 81 mm, pelo fogo do canhão de 75 mm e por passagens do Fouga Magister; em seguida eram enviadas ondas com cerca de 600 homens cada uma. Os ataques com bombas destruíram os veículos da companhia e danificaram edifícios da posição irlandesa.

Mesmo muito superada em números, a Companhia A mostrou precisão e eficácia ao destruir boa parte das posições de morteiros e metralhadoras katanganesas com disparos certeiros de seus próprios morteiros de 60 mm.

Os ataques foram repelidos várias vezes, mas os katanganeses estavam se aproximando das posições irlandesas. Quinlan repetidamente solicitou reforços que demoravam a chegar; ele negociou um cessar-fogo algumas vezes com Faulques e com o prefeito belga de Jadotville na tentativa de ganhar tempo para a chegada de reforços ou suprimentos, mas sem sucesso. Um piloto norueguês de helicóptero chegou a trazer água, que veio em latas de gasolina velhas, tornando-a imprópria para consumo humano. Essa foi a única ajuda que Quinlan obteve.

Houve tentativas de socorro por parte de forças da ONU – tropas suecas, irlandesas e o Gurkhas do exército indiano –, mas os rebeldes haviam isolado Jadotville ao tomar o controle da ponte sobre o rio Lufira. Alguns combates foram travados ali, mas os katanganeses, bem entrincheirados, mantiveram fogo pesado de solo e do ar sobre as forças de socorro, ferindo e matando vários homens e por fim obrigando essas tropas a bater em retirada.


O comandante Pat Quinlan, segundo a partir da direita, com os tripulantes do helicóptero que tentaram trazer água: o piloto norueguês Bjorne Hovden, à esquerda e o copiloto sueco, à direita. O intérprete sueco, Lars Froberg, é o segundo a partir da esquerda (Time/Cortesia de Leo Quinlan).

Em 17 de setembro – o quinto dia da batalha –, a Companhia A já não tinha mais munição, comida ou água e não havia esperança de reforços ou ressuprimento. Com os veículos destruídos, uma retirada era praticamente impossível. Diante desse cenário, Quinlan foi obrigado a se render.

No saldo da batalha, as forças katanganesas sofreram pesadas perdas, com 200 a 300 mortos, incluindo 30 mercenários, e entre 300 e 1.000 feridos – os números variam conforme a fonte. A Companhia A não sofreu nenhuma fatalidade e teve apenas cinco homens feridos.

Nessa mesma data, Hammarskjöld foi a Katanga para tentar discutir um cessar-fogo com Tshombe. A aeronave em que ele viajava, um Douglas DC-6B, caiu quando se aproximava do aeroporto, matando-o junto com outras quinze pessoas. Segundo as autoridades locais o acidente teria ocorrido por erro do piloto, mas a ONU nunca aceitou essa conclusão. Em 2011, foi noticiado pelo jornal inglês The Guardian que havia fortes indícios de que o avião teria sido abatido por mercenários baseados na Rodésia do Norte, atual Zâmbia.

Conclusão

Nunca se esclareceu por que os katanganeses queriam isolar as tropas irlandesas da ONU; algumas fontes sugerem que o motivo pode ter sido tomar os irlandeses como prisioneiros para alavancar as negociações com a ONU.

Dada a quantidade de baixas que infligiram aos katanganeses, os homens da Companhia A temiam por suas vidas ao serem aprisionados, mas ficaram detidos por apenas cinco semanas. A ONU negociou sua libertação em troca de prisioneiros sob custódia do governo do Congo.

Após serem liberados, eles retornaram à base em Elisabethville e algumas semanas depois voltaram a entrar em combate, agora com o apoio de tropas suecas da ONU. No final de seu turno de seis meses de serviço, a Companhia A retornou à Irlanda em dezembro de 1961.


O comandante Pat Quinlan em Jadotville, apenas alguns dias antes do início do cerco, em 10 de setembro de 1961 (Time/Cortesia de Leo Quinlan).

No entanto, não houve boas-vindas. Embora tivessem taticamente sobrepujado uma força inimiga muito maior em Jadotville, as Forças de Defesa Irlandesas não reconheceram a batalha. Especula-se que isso pode ter ocorrido por vergonha pela rendição ou para encobrir erros políticos e estratégicos cometidos por níveis mais altos.

Pat Quinlan, nascido em 1919, nunca mais serviu no exterior e aposentou-se como coronel após quarenta anos de serviço no Exército Irlandês. Faleceu em 1997, aos 78 anos. Sua ação só passou a ser reconhecida muito tempo depois. Em 2005, foi erguido um marco comemorativo reconhecendo a Companhia A no antigo quartel de Custume em Athlone, Irlanda.

Em 2016, o governo irlandês concedeu uma Citação Presidencial de Unidade à Companhia A, a primeira da história da Irlanda. Em outubro de 2017, foi instalada uma placa em homenagem a Quinlan no Condado de Kerry, sua terra natal. Oito sobreviventes receberam medalhas especiais em Athlone em 2 de dezembro de 2017.

As táticas usadas por Quinlan na defesa de Jadotville influenciaram programas de treinamento e foram, segundo a RTÉ*, “citadas em livros militares no mundo inteiro como o melhor exemplo do uso da chamada defesa de perímetro”.

A história foi contada no livro Heroes of Jadotville: The Soldiers’ Story, de Rose Doyle, em 2006. Doyle, jornalista e escritora, é sobrinha do coronel Quinlan. Em 2016 foi lançado o livro Siege at Jadotville: The Irish Army’s forgotten battle, de Declan Power, que originou o filme The Siege of Jadotville, disponível na Netflix.

*A RTÉ, Raidió Teilifís Éireann, é uma empresa semi-estatal de mídia irlandesa. Atua na televisão, rádio e Internet.


Assista ao vídeo-resenha deste filme: Jadotville, no Canal do Velho General no YouTube:

Referências

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3 comentários

  1. O grande vitorioso da batalha foi o Comandante Quinlan, que mesmo com a rendição, conseguiu preservar sua tropa e a si mesmo, além de infringir perdas consideráveis ao lado adversário.

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