Desestabilização: a atual ameaça à ordem pública brasileira

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Multidões de manifestantes saíram às ruas após o assassinato de George Floyd pela polícia em junho de 2020 (Foto: Ted Eytan/University of Pennsylvania).

Quando se trata de desestabilizar um regime de governo, as forças opositoras podem lançar mão de diversos estratagemas, muitas vezes pouco conhecidos do grande público, que vão desde a criação de narrativas até a infiltração de agentes com os mais diversos objetivos. Cabe às forças de segurança trabalhar com inteligência no sentido de prever esses movimentos e evitar as armadilhas.


Introdução

Ao se considerar a máxima de Carl von Clausewitz (1790-1831) que “a guerra é a continuação da política por outros meios” e os custos humanos e materiais de um conflito armado, fica claro que a guerra é, na verdade, o último recurso para a consecução de um objetivo. Tudo deve ser tentado antes do conflito bélico. Se um país está em rota de colisão com interesses de um outro país, ou de um outro grupo com poder, por que não mudar seus governantes ao invés embarcar em um custoso conflito armado? “O prêmio maior de uma vitória é triunfar por meio de estratagemas, sem usar as tropas” (SUN TZU, [s.d.], p. 10).

As eventuais interferências de forças com interesses contrários aos de um governo são parte de estratagemas pouco divulgados das relações de poder: trata-se da tentativa de Mudança de Regime (Regime Change). Num processo natural de mudança de líderes, o país alvo dessa tentativa de mudança terá seus partidos de oposição fortalecidos ou suas eleições fraudadas por recursos externos, como já ocorreu diversas vezes em países como Romênia, Polônia, Birmânia, Egito entre outros (CORMAC, 2018).

Analisando as ideias de Cormac (2018)* e Sharp (2012)*, tem-se que, se a mudança de regime não puder ser realizada por meio do processo natural de substituição dos líderes, que no caso da democracia acontece por meio do voto, ela será desenvolvida invariavelmente por meio da desestabilização. Ou seja, a quebra generalizada da ordem pública, tendo como consequência o mau funcionamento das Instituições do Estado, gerando caos e ambiente político e social capaz de propiciar a queda da liderança presente no poder. Essa tentativa de mudança de regime pode ocorrer de forma violenta ou não.

*As referências são produto de tradução do autor do artigo.

O objetivo deste artigo é apresentar e discutir a prática da desestabilização social como uma estratégia largamente utilizada nos dias de hoje para provocar mudanças nos regimes de governo. E, além disso, a necessidade de incorporar esse conhecimento na formação, treinamento e atuação dos agentes de segurança responsáveis pela manutenção da ordem pública.

As Forças de Segurança e Ordem Pública de um Estado, além de serem as garantidoras de direitos individuais aos cidadãos, são também garantidoras da estabilidade e consequentemente da prosperidade de uma nação. Assim, as Forças Armadas têm como missão principal garantir a soberania e impedir invasões externas, enquanto as Polícias Militares, garantem o cumprimento da lei e a manutenção da ordem pública, garantindo que movimentos alheios à vontade do povo não promovam a desestabilização do País.

Sobre a Ordem Pública, se faz necessário conceituá-la para que se compreendam todos os seus aspectos. Para o jurista Lazzarini (1999, p. 52):

“Ordem pública tem definição vaga e ampla, e varia no tempo e no espaço, sendo mais fácil a sua percepção na vida social. Constituir-se-ia assim pelas condições mínimas necessárias a uma conveniente vida social, a saber: segurança pública, salubridade pública e tranquilidade pública.”

Knabben (2006) observa que a ordem pública se caracteriza pelo convívio social pacífico e harmônico, tendo por base o interesse público, a estabilidade das instituições e a observância dos direitos individuais e coletivos.

Ou seja, pode-se dizer que a ordem pública está diretamente ligada à harmonia dos integrantes da sociedade entre si e com todas as instituições do Estado, as quais devem estar funcionando normalmente.

No entanto, observa-se um avanço cada vez maior de forças desestabilizadoras dessa harmonia entre sociedade e instituições do Estado. A quebra da ordem pode surgir de muitas fontes distintas, como observado a seguir.

Nas próximas sessões são apresentadas diferentes formas de desestabilização da ordem, especialmente as não violentas, pois, como observado inicialmente, a vitória maior está em usar estratagemas e não as tropas para vencer um conflito.

As ameaças já conhecidas

Tomando como medida textos jornalísticos das últimas três décadas conclui-se, invariavelmente, que a maior ameaça à ordem pública que as polícias militares brasileiras enfrentam são o tráfico de drogas, o crime organizado e a corrupção.

O tráfico de drogas movimenta vultosas somas de dinheiro, tão grandes que geram a capacidade de grupos criminosos subornar toda a cadeia repressiva do Estado, do policial de rua ao juiz de direito, além de se infiltrar no poder político, financiando candidatos favoráveis aos seus interesses nefastos (GODOY, 2020).

Também, há que se levar em conta o poder destrutivo do consumo de drogas em uma sociedade. Além do sofrimento causado ao indivíduo viciado e às pessoas ao seu redor, é imperioso salientar os problemas crônicos de saúde decorrentes do uso de drogas e a consequente sobrecarga do serviço público de saúde.

Por fim, o tráfico e o consumo de drogas geram um problema social, até o momento insanável, pois criam um número gigantesco de indivíduos que, em razão do seu vício, estão impossibilitados de exercer qualquer serviço ou praticarem qualquer ato de cidadania, sendo obrigados a vagar sem qualquer perspectiva pelas ruas dos grandes centros, espalhando crime e se afundando no vício. Por todos esses fatores, o tráfico de drogas é hoje uma atividade com alto poder de desestabilização social.


FIGURA 1: Aglomeração de usuários de drogas, cena comum nos grandes centros  (https://jovempan.com.br/programas/jornal-da-manha/cracolandia-debate-publico-sao-paulo-eleicoes.html).

O crime organizado, por sua vez, apresenta diversas características em seu modo de agir que são capazes de abalar a ordem pública. Entre elas podemos citar:

“[…] grande capacidade de cometimento de fraude difusa, pelo escopo prioritário de lucro e poder a ele relacionado, mediante a utilização de meios intimidatórios, como violência e ameaças e, sobretudo, o estabelecimento de conexão estrutural ou funcional com o Poder Público ou com algum(ns) de seus agentes, especialmente via corrupção – para assegurar a impunidade, pela neutralização da ação dos órgãos de controle social e persecução penal –, o fornecimento de bens e serviços ilícitos e a infiltração na economia legal, por intermédio do uso de empresas legítimas, sendo ainda caracterizada pela territorialidade, formação de uma rede de conexões com outras associações ilícitas, instituições e setores comunitários e tendência à expansão e à transnacionalidade, eventualmente ofertando prestações sociais a comunidades negligenciadas pelo Estado.” (FERRO, 2009, p. 499, apud SANTOS, 2018 [s.p.]).

Essa forma de atuação do crime organizado tem enorme potencial de quebra da ordem pública, capacidade essa já demonstrada diversas vezes em vários estados da federação por meio de: rebeliões em estabelecimentos prisionais, confrontos armados entre grupos rivais, depredação do sistema de transportes e ataque às forças de segurança ou a qualquer órgão representante do Estado (MALVA, 2020).

A corrupção talvez seja o problema social mais presente na mente da população quando se trata de questões nacionais. Ela é capaz de corroer todo o sistema de administração pública e gerar colapso na prestação de diversos serviços essenciais e básicos do Estado, como saúde, educação e segurança. Além disso, como já mencionado, trata-se de um dos pilares de sustentação do crime organizado.

Apesar de serem problemas presentes e capazes de quebrar a ordem pública, o tráfico, o crime organizado e a corrupção corroem a ordem social de forma lenta (PINHEIRO, 2007). Por isso, somente são utilizados como ferramentas de desestabilização em estratégias de longo prazo, conforme mostrado por Joseph D. Douglass em seu livro Red Cocaine[1].

No curto prazo, as ações para desestabilização são muito mais contundentes, ainda que algumas delas sejam disfarçadas e propagadas como algo novo e positivo para a sociedade.

A seguir são apresentadas formas de desestabilização pouco percebidas pelos diferentes setores da sociedade, mas que tem potencial disruptivo mais rápido do que as ameaças já conhecidas.

Desestabilização não violenta

Existem diversas táticas para realizar uma mudança de regime num país. Segundo Cormac (2018), ao se buscar a tática mais adequada, a força que busca o caos prefere sempre a opção com maior eficiência e menor rastro, ou seja, se for acusada de alguma ação desestabilizadora poderá negar de forma plausível (plausible deniability).

Um dos países alvos desse tipo de desestabilização, de acordo com o autor citado, foi o Irã na década de 1950, quando um novo governo assumiu o poder e nacionalizou as companhias de petróleo, causando grandes danos aos interesses ingleses. Após um determinado período, em 1953, houve um golpe de estado no país e o regime que nacionalizou as companhias petrolíferas foi substituído por outro que atendia aos interesses britânicos. Para isso, o serviço secreto inglês, aliado à agência de inteligência americana, utilizou diversas táticas, apresentadas a seguir.


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Disrupt and Deny: Spies, Special Forces, and the Secret Pursuit of British Foreign Policy

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De acordo com Cormac (2018), a mais comum das táticas é a propaganda, que pode ser dividida em propaganda cinza, negra e branca. A propaganda cinza é a mais usada. Trata-se de material verdadeiro, mas cuidadosamente editado de forma que atenda aos interesses do grupo desestabilizador e mantenha seus patrocinadores no anonimato.

Já a propaganda negra é a mais desonesta e perigosa, pois contém desinformação, não sendo possível atribuir sua autoria. Em alguns casos sua autoria é imputada a uma pessoa diferente, normalmente para desacreditá-la ou provocar ódio contra ela. Exemplos desse tipo de atuação são peças forjadas pela inteligência ocidental ao longo da guerra fria, ligando oficiais do partido comunista soviético à corrupção e a atividades subversivas contra a própria União Soviética (CORMAC, 2018).

Outro exemplo, citado por Cormac (2018), refere-se ao serviço especial de inteligência inglês que realizou operações de falsa bandeira no Irã no começo da década de 1950. Numa dessas operações, buscaram incriminar determinados indivíduos, que sofreriam hostilidade pública. Também foram planejados ataques contra respeitados líderes religiosos iranianos de forma que a culpa fosse atribuída aos inimigos dos interesses britânicos, bem como foram forjados documentos que ligaram o regime iraniano aos comunistas. Nessa mesma operação, a americana CIA (Central Intelligence Agency, Agência Central de Inteligência), atuando em conjunto com os ingleses, ficou encarregada de realizar ameaças por telefone e planejar falsos ataques a bombas, tudo isso se fazendo passar por comunistas. Agitando opositores e disseminando propaganda provocativa, cria-se um clima de tensão que pode levar ao caos e consequentemente a assassinatos. Ainda, segundo o mesmo autor, em 1952, propaganda negra inserida dentro de um jornal iraniano acusava um alto funcionário do governo de ser ladrão, homossexual e de ter se convertido ao Cristianismo. No Irã, no começo dos anos 1950, isso era uma clara incitação ao homicídio.

Por fim, existe a chamada propaganda branca, que nada mais é do que uma fonte oficial de notícias cujas informações verdadeiras são fortalecidas por propaganda negra e cinza. Verdades, meias-verdades e mentiras atuam juntas para fixar uma determinada narrativa e criar desordem.

Uma outra tática de desestabilização não violenta usada com frequência segundo Cormac (2018), é a utilização de propina, provavelmente pela sua eficiência e dificuldade no rastreamento da fonte pagadora. Com a propina é possível fazer com que o político mais fervorosamente nacionalista passe a defender a privatização de companhias estatais estratégicas ou que o mais devoto socialista defenda o interesse de grandes empresários.

A propina também pode ser usada para auxiliar a propaganda como agente de desestabilização. Segundo Cormac (2018), a Grã-Bretanha, para desestabilizar o regime do Irã, subornou os editores dos principais jornais iranianos para inserir material negativo sobre o governo nas publicações jornalísticas, bem como fez uso de propina para comprar diversos líderes políticos dentro do parlamento. Tudo feito de forma discreta, indireta e que podia ser facilmente negada. Ao longo de um ano, a estratégia britânica foi criar um clima político e social que conduzisse a uma mudança de regime. Por meio da propina e da propaganda, a Inglaterra buscou cultivar forças opositoras e mobilizar as forças existentes, o que proporcionou a substituição do regime iraniano vigente.

Também é possível desestabilizar um país de forma velada por meio de sua economia. Cormac (2018) comprova, através de pesquisa em documentos secretos recentemente abertos ao público, que as grandes crises econômicas são catalisadoras de mudanças políticas e é possível provocá-las de forma dissimulada.

Isso aconteceu em 1956, quando houve a eleição de um governo esquerdista na Islândia. Os serviços secretos ocidentais, por meio de empresas de fachada, compravam peixe de outros países a um preço mais alto e vendiam mais barato dentro da Islândia, buscando a quebra da indústria pesqueira daquele país e a consequente revolta popular com o governo socialista.

Esse mesmo autor comprova documentalmente que também é possível iniciar a desestabilização por meio de manifestações populares, as quais podem ou não fazer uso da violência.

Desde a segunda metade do século XX até a presente data, manifestações populares eclodiram em praticamente todos os países do mundo, sendo um fenômeno típico dos grandes centros urbanos. Essas manifestações, quando contam com apoio de grande parte da população, são poderosas, sendo inclusive capazes de proporcionar mudanças profundas em determinadas sociedades, chegando até mesmo a impulsionar mudanças de regimes ou troca de seus líderes, como as manifestações pelo voto direto, no Brasil nos anos 1980 ou as manifestações pelo impedimento da presidente Dilma Rousseff em 2016.


LIVRO RECOMENDADO

From Dictatorship to Democracy

  • Gene Sharp (Autor)
  • Em inglês
  • Kindle ou Capa comum

Algumas manifestações são expressões espontâneas de uma insatisfação popular ou apoio a determinada causa. Outras são provocadas e se trata de uma etapa em um movimento maior pela troca de governantes ou mudança total do regime político. Para serem bem sucedidas, essas manifestações provocadas por grupos de poder opositores ao governo de um país devem explorar pontos de tensão já existentes em uma sociedade. Elas não têm poder de abrir feridas sociais, mas são muito eficientes em alargar fissuras já existentes.

Cormac (2018) demonstra que o alargamento das fissuras sociais é explorado para a desestabilização, como ocorreu no final da década de 1950, quando agentes secretos buscavam informações sobre pontos de tensão que pudessem ser explorados dentro da sociedade polonesa. Ainda nesse período, existem documentos que relatam que, na Tchecoslováquia, Polônia e Hungria, agentes de inteligência ocidentais estimulavam dissidentes e se engajavam nos grupos para “criar tumultos”. Esse fato comprova que em algumas manifestações existem profissionais atuando em favor do distúrbio.

Se um país se encontra, ainda que minimamente, em paz social, não é fácil mobilizar toda a sociedade contra o governo. Provocar manifestações é algo relativamente simples, mas fazer com que a maioria da população apoie o movimento é algo totalmente diferente. Nesse caso, as forças disruptivas da ordem usam a vitimização para angariar apoio. Busca-se mostrar que o governo atual é autoritário e que o direito de manifestação não é respeitado no país. Cormac (2018) demonstra que essa tática foi muito usada pelo Ocidente em países satélites da União Soviética ao longo da Guerra Fria, quando os manifestantes provocavam repressão policial para fins de propaganda contra o governo.

A vitimização também foi usada recentemente pelas manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público no Brasil em 2013. De acordo com Morgenstern (2020), os manifestantes, após provocarem deliberadamente a quebra da ordem e consequentemente ser reprimidos pela polícia, obtiveram, por meio de propaganda, um aumento exponencial em seu apoio, chegando em poucas semanas a ter mais popularidade que o presidente Lula no auge do programa Bolsa Família. E essa é uma das razões pela qual diversos grupos de manifestantes tentam continuamente entrar em conflito com a polícia.

Atualmente, as manifestações desestabilizadoras mais comuns são as chamadas Revoluções Coloridas. O americano Gene Sharp escreveu um livro que se tornou o manual para revoluções não violentas. Sua obra serviu de base para a mudança de regime em diversos países. Da Birmânia à Sérvia, e mais recentemente na “Primavera Árabe”, todos esses movimentos que levaram à mudança de regime se inspiraram na obra de Sharp, From Dictatorship to Democracy.

Segundo o próprio autor, no documentário publicado no YouTube, Gene Sharp Brazil Documentário Como iniciar uma revolução, seu trabalho “Trata-se de uma técnica de combate. É um substituto para a guerra”.

“Pode-se perceber, portanto, que as revoluções coloridas, tal qual as campanhas de publicidade ou relações públicas, não são espontâneas, mas sim fabricadas muito de antemão à sua implementação. É a disseminação da informação (propaganda) na sua mais crua essência, e as ideias contra o governo devem ser propagadas de maneira coordenada para fabricar consenso em uma parcela apropriada (decisiva) da população para que participe da revolução colorida.” (KORYBKO, 2018 p. 48, apud RODRIGUES, 2020, p. 149).

Para iniciar uma revolução, Sharp (2012) observa a necessidade do fortalecimento da população oprimida e do fortalecimento de grupos sociais e instituições independentes. Tais medidas são complementares e realizadas por meio da criação ou robustecimento de instituições sem laços governamentais, como por exemplo:

“[…] famílias, organizações religiosas, associações culturais, clubes desportivos, instituições econômicas, sindicatos, associações estudantis, partidos políticos, vilas, associações de bairro, de jardinagem, clubes, organizações de direitos humanos, grupos musicais, sociedades literárias, entre outros.” (SHARP, 2012, p.20).

É possível incluir nesta lista as escolas, da formação básica ao ensino superior.


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A Arte da Guerra: Os treze capítulos originais

  • Sun Tzu (Autor)
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A importância desses grupos está em seu significado político. O que é dito ali ecoa por toda a sociedade, formando um pensamento político que será posto em prática na primeira oportunidade possível, pois quem detém o discurso ideológico nessas pequenas organizações, detém o domínio sobre o pensamento de determinada sociedade.

Após o fortalecimento dessas organizações sem ligações com o governo, deve-se desenvolver um plano estratégico e implementá-lo com habilidade. Para isso, Sharp (2012) elenca 198 táticas de ação que podem ser utilizadas para provocar a almejada mudança de regime. Entre elas, podemos citar algumas facilmente identificadas e utilizadas, inclusive por movimentos com pautas específicas, que aparentemente nada tem a ver com a mudança de regime, como liberação do aborto e diminuição da tarifa do transporte público, que utilizaram bandeiras e cores símbolo em seus movimentos.

Nesses casos, essas pautas, alheias ao poder, podem se tratar de uma etapa dentro de um plano arquitetado para mudança de regime ou um movimento espontâneo que busca mudança em um assunto muito particular. De qualquer forma, o uso dessas técnicas é uma prova de planejamento antecipado por parte do movimento e que sua fonte para atuação é a obra disruptiva de Gene Sharp, cujo objetivo declarado é o caos e a queda do governo.

São alguns dos métodos elencados por Sharp:



FIGURA 2: Manifestações contra o governo na Ucrânia em 2004 usam a cor laranja (https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolução_Laranja#/media/Ficheiro:Morning_first_day_of_Orange_Revolution.jpg).

FIGURA 3: Movimento Verde no Irã protesta contra o governo em 2009 (https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_Verde_Iraniano).


FIGURA 5: Manifestantes em 2020 pelo aborto na Argentina usam a cor verde como símbolo (https://bhaz.com.br/2020/12/12/avanco-do-aborto-legal-na-argentina-irrita-brasileiros-que-cobram-o-papa/#gref).

FIGURA 6: Manifestação pelo “passe livre” em São Paulo. Uso de símbolos e cartazes, conforme os métodos elencados por Sharp (https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_Passe_Livre#/media/Ficheiro:Bandeira_Passe_Livre,_São_Paulo,_2016.jpg).

Caso todo esse esforço promovido por ações não violentas não se mostre capaz de atingir o resultado almejado, entram em cena grupos armados que tentarão a tomada do poder a força.

De acordo com Cormac (2018), para manter a possibilidade de negar, de forma plausível, o grupo ou Estado que orquestra a mudança de regime não envia efetivo militar expressivo para combater, mas envia armamento e um efetivo pequeno de forças especiais para atuar e ministrar treinamento a grupos insurgentes que entrarão em confronto com as forças leais ao governo alvo.

Isso foi feito por ambos os lados na Guerra Fria e pode-se citar como exemplo a atuação do Special Air Service inglês que atuou e ministrou treinamento a grupos insurgentes em países como Egito, Indonésia, Omã e Malásia em períodos específicos da segunda metade do século XX (CORMAC, 2018).

Via de regra esses grupos armados sempre têm sua ideologia representada por um partido político, o qual pode ser abertamente ligado a um grupo guerrilheiro/terrorista ou a ligação entre eles pode ser velada. O Hezbollah (“Partido de Deus” em árabe) é um exemplo clássico de atuação política e armada simultânea sendo o grupo Jihad Islâmica a parte armada do movimento.

Conclusão

A questão nunca é a questão. A questão é sempre o poder (Saul Alinsky).

O tráfico de drogas e o crime organizado são fontes de desestabilização, porém existem outras formas menos conhecidas de desestabilização da ordem pública.

O uso de propaganda, seja branca, cinza ou negra, distribuição de propinas para políticos e jornalistas, ataques de falsa bandeira, agentes infiltrados em manifestações e uso da violência como forma de manipulação da narrativa são situações que podem parecer obra de ficção, mas na verdade, como demonstrado por fatos históricos, são ações reais de serviços de inteligência e de relações exteriores.

Já foram usadas por diversos países ao longo dos séculos e são utilizadas até hoje. Não são situações isoladas, são o padrão de atuação de forças estrangeiras ou determinados grupos em países cujos governos não atendem às suas demandas. Essas técnicas de desestabilização não são exclusivas de determinada matiz ideológica. São ferramentas que podem ser usadas por qualquer grupo, desde que tenha os meios humanos e financeiros para tal.


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A guerra na era da informação

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De acordo com Visacro (2017), o campo de atuação das forças da ordem é, atualmente, um mundo cada vez mais ambíguo e volátil, no qual os conflitos se dão não apenas no campo físico, mas também no campo das informações.

Sendo as guardiãs da ordem pública e sabendo que uma manifestação pode não ser espontânea e sim parte de um plano maior de desestabilização, as Polícias Militares devem estar preparadas para cumprir o duplo papel que lhes foi outorgado pela Constituição: garantir o livre direito de manifestação e concomitantemente manter a ordem pública.

Conforme visto, para criar uma narrativa, manifestantes podem deliberadamente romper a ordem buscando a repressão policial para fins de propaganda e disseminação de determinada ideia. Cabe então aos operadores da segurança e da ordem pública atuar de forma estritamente técnica, paciente e profissional, considerando todo o espectro de possibilidades e consequências de suas intervenções.

Além disso, cabe às Polícias Militares conhecer todas as características e táticas dos grupos com os quais lida, para que possam saber das suas intenções, seus objetivos, sua ideologia e sua mentalidade e assim prever seus movimentos, não caindo em provocações.

“Aquele que conhece o inimigo e a si mesmo, lutará cem batalhas sem perigo de derrota; para aquele que não conhece o inimigo, mas conhece a si mesmo, as chances para a vitória ou para a derrota serão iguais; aquele que não conhece nem o inimigo e nem a si próprio, será derrotado em todas as batalhas.” (SUN TZU, [s.d.], p. 12).

Nesse esteio é imprescindível a existência de canais de comunicação capazes de criar e divulgar imediatamente conteúdos que propaguem os fatos reais, impedindo a disseminação de uma narrativa falsa sobre os acontecimentos e atuação da Polícia Militar.

Por fim, deve-se ter em mente, em todas as atuações, a necessidade da observância estrita de que a coleta de provas precede o uso da força (POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2012) e que tais provas devem ser ampla e imediatamente divulgadas para que não seja imputada à Polícia, e consequentemente ao Estado, a pecha de violenta, arbitrária, etc., pois isso somente geraria mais apoio aos manifestantes, sendo esse na verdade o seu objetivo.

Desde a sua criação, da Guerra dos Farrapos à Segunda Guerra Mundial, passando pela Guerra do Paraguai e por Canudos entre tantas outras crises, em momentos de festa ou de dor, a PMESP (Polícia Militar do Estado de São Paulo) esteve sempre na linha de frente da manutenção da ordem pública, estabilidade das instituições e integridade do território nacional. Não é meramente mais um serviço público, mas, assim como as demais Forças Militares estaduais e federais, é um dos pilares da estabilidade e prosperidade do Brasil. Neste momento em que as ameaças à ordem mais graves provém da subversão, da desinformação e da desestabilização, a PMESP precisará, primeiramente, entender a situação e se manter atualizada para cumprir o primordial papel que a sociedade lhe confere: garantir direitos e preservar a ordem.

Nota

[1] DOUGLASS, J.D. Red Cocaine: The Drugging of America and the West. New York. Edward Harle Ltd. 1999. Disponível em: https://portalconservador.com/livros/Joseph-Douglass-Red-Cocaine-The-Drugging-of-America-and-the-West.pdf.

Referências

CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. Disponível em: http://almanaquemilitar.com/site/wp-content/uploads/2014/02/Da-Guerra-Carl-Von-Clausewitz.pdf.

CORMAC, Rory. Disrupt and deny. Oxford University Press, 2018.

GENE SHARP BRAZIL DOCUMENTÁRIO COMO INICIAR UMA REVOLUÇÃO. genesharpfilm. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jqtTc_CMlJg.

GODOY, Marcelo. PF vai ‘catalogar’ vereadores eleitos com dinheiro do crime. O Estado de São Paulo, 27 de outubro de 2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,pf-vai-catalogar-vereadores-eleitos-com-dinheiro-do-crime,70003490186.

KNABBEN, Flávio. Poder de polícia: uma análise sobre fiscalização de alvarás em estabelecimentos de jogos e diversões públicas. Florianópolis: Universidade do Sul de Santa Catarina, 2006.

LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

MALVA, Pamela. Onda de terror em São Paulo: os mais de 200 ataques orquestrados pelo PCC. Aventuras na História, 21 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/onda-de-terror-em-sao-paulo-os-mais-de-200-ataques-orquestrados-pelo-pcc.phtml.

PINHEIRO, Álvaro de Souza. O Conflito de 4ª Geração e a Evolução da Guerra Irregular. Revista PADECEME nº 16, Rio de Janeiro, 3º trimestre 2007.

MORGENSTERN, Flavio. Vídeo: As grandes minorias. Brasil Paralelo, 2020. Disponível em: https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/as-grandes-minorias/media/5fbc344249eb870017c78d44 (restrito para assinantes).

POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. Manual de controle de distúrbios civis, M-08-PM. Polícia Militar/SP, São Paulo, 2012.

RODRIGUES, Bernardo Salgado. Guerra Híbrida na América do Sul: uma definição das ações políticas veladas. Sul Global v. 1, nº 1, 2020, p. 139-168. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/sg/article/view/31949.

SANTOS, Daniella Riveiro. Criminalidade organizada: características e modelos estruturais das organizações criminosas. Jus Navigandi, Dezembro de 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70891/criminalidade-organizada-caracteristicas-e-modelos-estruturais-das-organizacoes-criminosas

SHARP, Gene. From Dictatorship to Democracy. London: Serpents Tail, 2012.

SUN TZU. A Arte da Guerra. Disponível em: https://www.sogipa.com.br/web/imgs/arquivos/a-arte-da-guerra5e8e0e84.pdf.

VISACRO, Alessandro. A Guerra na Era da Informação. Contexto, São Paulo, 2018.

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1 comentário

  1. Gostei muito do artigo, porém não gostei tanto assim da parte que faz a propaganda da PMSP. Não que a instituição não mereça a propaganda, porém ela deveria ter sido evitada para o artigo ter uma maior isenção. Não tenho nada contra a PMSP, nem sequer a um agente individualmente. Mas acredito que a isenção foi prejudicada, uma vez que, o autor, ao que parece, sendo parte integrante da PMSP, na minha opinião, se excedeu nesta parte do enaltecimento exacerbado da PMSP. Claro que é uma instituição democrática, digna de todo reconhecimento, mas como bem dito no artigo, dentro de toda organização, seja ela do Estado ou não, há sempre o jogo de interesses, que impede a pureza de suas ações. Me desculpe pela crítica, mas não acredito 100% em nenhuma instituição onde o poder que ela detém, em algum momento pode ser ou já foi usado com exagero e discriminação contra o cidadão honesto e trabalhador, ou contra os interesses da sociedade, em detrimento de interesses de indivíduos ou de grupos de interesses e de poder que se formam dentro das instituições públicas brasileiras. O que acontece também dentro da PMSP. Então, seu artigo foi muito bom para falar dos fatores de desestabilização da sociedade brasileira, mostrou os diversos atores que podem atuar para essa desestabilização, mas faltou incluir que qualquer força estatal também é capaz de agir contra os interesses da sociedade, para defender seus próprios interesses, as vezes avessos à lei. Toda instituição brasileira, ainda que seja a mais respeitada e reconhecida pelos cidadãos, age com corporativismo, que as vezes vai contra os interesses maior da sociedade, em defesa de interesses de grupos ou de pessoas específicas dentro dessas instituições ou corporações. E, muitas das vezes, quando atores sociais denunciam tais atrocidades, acabam sendo vítimas, de alguma forma, desses grupos de poder que colocam seus interesses acima das leis e da Constituição. Isso é flagrante hoje em dia, mas sempre foi assim, embora no passado, com certo desconhecimento por grande parte dos brasileiros, até porque vivemos hoje a era da revolução tecnológica, onde as informações fluem mais rapidamente, com o amplo acesso à internet e aos eficientes meios de comunicação sociais e informais de que dispomos. Por isso sou muito crítico a certos atores do Estado, porque eles costumam ver a democracia de um jeito diferente, que as vezes apenas eles querem ter o direito de exercê-la, de seu modo, abrindo um abismo entre esses agentes públicos e à sociedade. Vejo o Brasil se afundando num engodo antipatriótico, onde o jogo de interesses fala mais alto do que os verdadeiros interesses da Nação, e passa a dominar e massacrar o sentimento de patriotismo, que aos poucos as pessoas vão o perdendo, sem saber, ao certo onde tudo isso vai nos levar. Eu te digo: o Brasil está dividido em castas de poder, onde a sociedade é a que já não consegue mais ter o domínio de suas vontades. “Todo o poder emana do povo que o exerce por seus representantes ou diretamente”, assim está escrito na Constituição. Porém os grupos de poder, os quais alguns deles foi eleito pelo povo para representa-lo, povo que delegou o poder para o exercer em seu nome, enquanto a outros lhes foram dados o poder como dádivas divina, muitas das vezes esses atores abusam desse poder contra seu próprio povo, e agora estamos caindo num abismo como sociedade, o que parece não ter uma perspectiva de retorno, pelo menos não na situação atual na qual se encontra o Brasil neste momento. Eu vejo autoridades, e mesmo as polícias agindo em desacordo com a Lei, cumprindo ordens manifestamente ilegais para reprimir à sociedade, principalmente neste momento de pandemia. A PMSP é uma dessas forças policiais que tem cumprido ordens manifestamente ilegais, em nome de defender interesses de grupos de poder, e não da sociedade, agindo à margem da Constituição, que deveria ser invocada, assim como as leis, para não cumprir tais ordens ilegais. Ao contrário, vai de encontro aos interesses mais elementares da sociedade, em defesa de grupos de poder, que querem reprimir toda sociedade. Por isso minha descrença com as instituições, pois seus interesses e os interesses dos grupos que elas passaram a “representar” à margem da Lei e da Constituição, fizeram com que elas se desviassem, ao menos em parte, de seu fim precípuo institucional, para o qual foram criadas, que seriam a defesa do Estado de Direito, da Constituição e da sociedade, o que muitas dessas instituições, incluindo à PMSP não têm feito. Fica aqui meu registro. Não tenho nada contra qualquer pessoa que faça parte da PMSP ou de qualquer instituição pública, mas o que demonstro aqui é o reflexo do que a sociedade está passando, o sentimento que grande parte da sociedade tem hoje sobre as instituições. É possível mudar essa realidade? Sim, é possível. Mas isso é um processo de reestruturação do Estado, o qual todos os atores devem participar, principalmente a sociedade civil organizada deve ser a primeira a exigir essa mudança, antes que seja tarde demais, ela tem que ser ouvida, assim se inicia um processo de mudanças, de forma ordeira, coordenada e sem violência, com o mínimo possível de interferência dos grupos de poder. Vou deixar um exemplo aqui para ilustrar isso: a Reforma Administrativa. Por quê o governo federal não consegue fazê-la conforme deveria? Por causa dos grupos de interesses que atuam contra o que se pretende mudar, que seria “enxugar” a máquina pública e buscar o equilíbrio social do trabalho, onde os agentes públicos têm grande vantagens em comparação com os empregados da iniciativa privada e demais atores sociais. Outro exemplo para ajudar nesta discussão: a Reforma Tributária. Está tem ainda mais treta. O jogo de interesses é ainda mais truncado, onde envolvem governadores, deputados, senadores e outros atores, todos, quase sempre e, o tempo todo, defendendo seus próprios interesses, em detrimento da sociedade que paga os impostos por meio de uma alta carga tributária que segrega o cidadão comum e cria castas de privilegiados dentro dos órgãos do estado que não querem perdê-los, assim são forças que se opõem às mudanças necessárias para uma sociedade moderna e cada vez mais dinâmica e competitiva, onde os altos tributos são impeditivos ao desenvolvimento e à consequente evolução social-tecnológica brasileira. Deste ponto de vista, podemos incluir atores do Estado como fatores de desestabilização da sociedade, uma vez que se cria uma casta de privilegiados e outra casta cada vez maior de miseráveis. E o abismo só aumentam e, com isso, proporcionalmente aumentam também as tensões sociais. Gosto de discutir esses aspectos brasileiros, porque amo meu país e sou extremamente preocupado com os rumos que o país está seguindo, tanto interna, quanto externamente. Por isso deixo claro aqui minha intenção de criar o debate, para contribuir para um Brasil melhor para todos, não apenas para grupos de poder e de interesses menos republicanos. Sei que esse não é o caso do ator do artigo, por isso até o convido para ampliarmos o debate, caso o mesmo tenha interesse. Acompanho o Velho General, justamente porque não quero ficar de fora das discussões em prol do Brasil, porque o desafio é gigantesco, mas poucos são os patriotas que buscam entender e enfrentá-los de frente, no campo de batalha, porque os inimigos do Brasil estão cada dia mais ousados e ardilosos. Um abraço. Valdeir Silva.

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