Phillip Orchard*, do Geopolitical Futures
O recente golpe de estado em Mianmar, uma nação governada pelo alto-comando militar durante a maior parte de sua história moderna, não deveria ter sido uma surpresa. Juntas militares e governos fantoches governaram efetivamente o país por quase 20 anos desde a sua independência em 1948.
Quando finalmente consentiram com uma transição gradual para a democracia a partir de 2008, as forças armadas de Mianmar asseguraram que nunca teriam que responder a ninguém além de si mesmas. Mesmo depois que o partido apoiado pelos militares aceitou a derrota nas eleições de 2015 com relativa facilidade, foi difícil afastar a sensação de que o relógio estava correndo contra o novo governo de Aung San Suu Kyi desde o início.
E, no entanto, quando o general Min Aung Hlaing anunciou que estava assumindo o controle na segunda-feira, derrubando a segunda vitória consecutiva da NLD (National League for Democracy, Liga Nacional pela Democracia) liderada por Suu Kyi nas eleições de novembro e impondo um estado de emergência de pelo menos um ano, de fato causou certa confusão. Isso ocorreu em parte porque os militares nunca realmente cederam poder total ao governo civil, e é difícil entender como seus principais interesses poderiam ser ameaçados por um segundo mandato da NLD. Ainda mais confuso, a motivação original dos militares para relaxar o controle sobre o poder foi de alguma forma impulsionada pelas mudanças ainda em andamento no ambiente externo que tornavam insustentável o isolamento quase total do país em relação ao Ocidente. Parecia, em suma, que Mianmar havia finalmente encontrado uma estrutura interna de poder e uma base lógica estratégica necessária para o florescimento de uma aparência de democracia. Então, o que mudou?
Feito para instabilidade
Mianmar é o lar de quase todos os elementos que geram instabilidade perpétua. Foi governado pelos britânicos e, em seguida, brevemente pelos japoneses até 1948. Sua topografia montanhosa e coberta por selva criou profundas fraturas étnicas, religiosas e socioeconômicas em todo o país. Também torna difícil para qualquer governo comandar todo o país de forma centralizada.
De fato, muitas regiões montanhosas distantes que circundam o núcleo central, se não totalmente desgovernadas, são regidas pelo grupo étnico (dos vários que há no país) que estiver mais bem armado. Alguns desses grupos estão em guerra com o governo central há quase um século. Mianmar compartilha fronteiras com vizinhos muito mais poderosos – aqueles que suspeitam uns dos outros e, portanto, são propensos a competir por influência em suas zonas-tampão – o que coloca Mianmar num fogo cruzado. Possui abundância de recursos naturais, mas sem as estruturas institucionais necessárias para evitar o que é conhecido como “maldição dos recursos”, essas riquezas alimentam principalmente conflitos, corrupção e intromissão estrangeira.
Como resultado, o país está essencialmente em guerra consigo mesmo desde a independência, e aqueles com mais poder tendem a obtê-lo principalmente a partir das armas. O governo nacional tem sido mais frequentemente controlado por autoridades militares ou por um governo nominalmente civil apoiado pelos militares. Isso começou com a derrubada do último governo eleito em 1962, sob o argumento de que as autoridades precisavam de carta branca para travar suas várias campanhas de contra-insurgência. Pouco depois, o regime nacionalizou a maioria das indústrias do país, exilou os comerciantes indianos e proibiu a maioria das formas de ajuda e comércio externo. E por cerca de meio século desde então, os militares viram o isolamento internacional como algo inevitável ou de alguma forma necessário para proteger o país de influências externas nefastas e dar-se espaço para fazer o que fosse necessário para governar como bem entendessem.
Os temores de ameaças estrangeiras eram bastante razoáveis. Historicamente, Mianmar tem sido usado liberalmente por potências estrangeiras para seus próprios fins, desde a colonização britânica até a expansão japonesa na Segunda Guerra Mundial e o Kuomintang organizando uma insurgência contra Mao. Muitas de suas milícias étnicas receberam apoio de potências estrangeiras, incluindo os Estados Unidos e a China, em várias ocasiões. Durante a Guerra Fria, os EUA tiveram uma grande pegada militar na Tailândia, adversário histórico de Mianmar. Mais recentemente, as intervenções militares ocidentais na Sérvia, no Iraque e em outros lugares validaram o medo da junta militar de interferência internacional, particularmente à luz da retórica de mudança de regime generalizada dirigida a eles. O estabelecimento do Tribunal Penal Internacional e outros tribunais internacionais, paradoxalmente, pode ter tornado a junta menos propensa a abrir mão do poder por medo de acabar num julgamento em Haia. Em suma, o regime conhecia os riscos históricos de governar com mão de ferro um lucrativo canto da terra.
Mas, em meados dos anos 2000, os problemas de isolamento tornaram-se aparentes. A economia entrou em colapso, tornando Mianmar um dos países mais pobres do mundo na região de crescimento mais rápido. Embora o apoio chinês tenha enriquecido e entrincheirado o regime, criou um desequilíbrio estratégico e estava efetivamente transformando Mianmar em um estado afluente. A China é um adversário histórico de Mianmar, e o apoio regular de Pequim aos poderosos exércitos rebeldes étnicos dominando regiões efetivamente autônomas e produtoras de papoula ao longo da fronteira chinesa apenas aprofundou a hostilidade entre os chefes de Mianmar. Além disso, a China estava ficando cada vez mais poderosa. Como resultado, o medo da China suplantou o medo do Ocidente. A urgência de explorar o potencial latente de Mianmar como um centro de energia e recursos naturais conectando a China, a Índia e o sudeste da Ásia – e, assim, tornando-se um aliado indispensável de todos os seus vizinhos – cresceu. Era preciso atrair investimento estrangeiro para tornar isso possível, o que significava fazer com que a União Europeia e os EUA suspendessem as sanções.
E assim, no final dos anos 2000, os generais iniciaram um processo gradual de abertura. Mianmar começou a transição para um governo nominalmente civil por meio de eleições em 2010. Essas foram boicotadas pelo NLD, e o novo governo liderado pelo presidente Thein Sein estava cheio de generais recentemente aposentados. Mas foi uma conjuntura crucial, no entanto, uma vez que Thein Sein liderou uma campanha de engajamento bem-sucedida com o Ocidente, especialmente os EUA. O governo libertou Aung San Suu Kyi, que tinha liderado a oposição em grande parte de sua prisão domiciliar nas duas décadas anteriores. Em 2012, ela era membro do parlamento. Em 2015, liderou o NLD a uma vitória retumbante nas eleições nacionais.
A sabedoria predominante
Os militares não anularam os resultados das eleições, como no passado, em parte porque ainda teriam um poder considerável no sistema que criaram, independentemente dos resultados. A constituição de 2008, por exemplo, reservou 25% dos assentos no parlamento para os militares (o suficiente para bloquear qualquer tentativa de substituir a constituição). Também preservaram para si autoridade quase total em questões de segurança, particularmente as batalhas intermináveis com os exércitos rebeldes étnicos. Seus interesses comerciais foram garantidos de várias maneiras. Também desqualificaram Suu Kyi de modo que ela própria não se tornasse a presidente (embora, como “conselheira de estado”, ela seja a chefe de governo de facto).
Há poucas evidências de que qualquer coisa sobre esse arranjo fosse intolerável para os militares. E existem riscos enormes em abandoná-lo. Daí a estranheza causada pela decisão de “desligar a tomada” meses depois do partido de Suu Kyi ter conquistado uma segunda vitória em novembro.
Com certeza, havia muitos problemas com esse sistema. Com efeito, Mianmar tinha dois governos distintos operando em paralelo, geralmente com objetivos e interesses conflitantes. Isso complicou tarefas rotineiras de governança, para não falar dos problemas mais intratáveis, como negociar a paz e/ou travar guerras contra os vários grupos rebeldes. Também complicou os objetivos diplomáticos de Mianmar, muitas vezes permitindo que potências estrangeiras e interesses comerciais tentassem jogar os dois lados um contra o outro (por exemplo, Pequim havia investido pesadamente em cortejar Suu Kyi, que precisava de um relacionamento próximo com os chineses para dar a seu governo algum controle sobre os militares). Em um país que já é extremamente difícil de governar como Mianmar, faria pelo menos algum sentido avançar em direção a um sistema mais centralizado e unificado com uma hierarquia clara de autoridade. Afinal, esse é o impulso de governos autoritários em todo o Sudeste Asiático.
A sabedoria predominante parece ser que as ambições pessoais do general Min Aung Hlaing são o fator central por trás da mudança. O general deve atingir a idade de aposentadoria em julho. Com o Partido União de Solidariedade e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, patinando nas eleições, o caminho para que ele permanecesse no poder tornando-se presidente foi fechado. Então ele encontrou uma maneira mais direta de estar por perto, ou assim diz a teoria. O general e seus apoiadores podem, de fato, ser motivados principalmente por ambições pessoais; figuras poderosas geralmente são. Mas, dados os riscos envolvidos com a mudança, parece improvável que isso tenha acontecido sem um apoio institucional mais amplo dentro das forças armadas – e uma sensação generalizada de que os fatores que obrigaram os militares a se envolver com a democracia uma década atrás poderiam ser administrados mesmo com uma reversão de curso.
Em outras palavras, os militares podem acreditar que a enxurrada de investimentos estrangeiros que fez de Mianmar uma das economias de crescimento mais rápido do mundo na última década não terminará abruptamente simplesmente por causa de um golpe sem derramamento de sangue. Normalmente, as empresas estrangeiras valorizam a estabilidade e a segurança mais do que a democracia e, além disso, a mudança de fábricas é cara. As empresas estrangeiras também valorizam um ambiente onde não correm o risco de entrar em conflito com as sanções ocidentais, é claro, mas os militares podem acreditar que o Ocidente não terá realmente interesse em isolar Mianmar tão completamente como antes. Os EUA não querem ver um país tão estrategicamente importante ser arrastado para a órbita da China mais uma vez. Washington normalmente ignora golpes em países que servem aos seus interesses. E, em qualquer caso, é improvável que a causa da democracia em Mianmar tenha tanta ressonância política no Ocidente como tinha nas décadas de 1990 e 2000, agora que a opinião sobre Suu Kyi, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, azedou devido a sua alegada indiferença com a situação da etnia Rohingya. Mianmar tem todos os motivos para acreditar que vizinhos importantes também não causarão muito barulho. Como o primeiro-ministro tailandês, Prayuth Chan-ocha, que liderou um golpe em 2014, disse: “É um assunto interno.” Esse é o sentimento na maioria das capitais regionais.
Mesmo assim, um golpe é uma jogada arriscada. Mianmar ainda precisa de muito investimento para modernizar sua economia e atender à crescente demanda de sua população jovem, uma geração que atingiu a maioridade em meio a uma abundância material sem precedentes. As empresas provavelmente não fugirão – mesmo aquelas que já anunciaram a suspensão das operações locais –, mas a incerteza provavelmente tornará muito mais difícil atrair novas e sustentar a trajetória da última década. Fechar a internet e o tráfego aéreo não gera muita confiança nos investidores. Os militares podem prometer estabilidade, mas será que eles podem prosseguir sem derramamento de sangue se outra revolução social estourar no mesmo nível da “Revolução Açafrão” de 2008?
Enquanto isso, muitos em Washington chegaram de fato à conclusão de que as sanções gerais são tipicamente contraproducentes e estrategicamente arriscadas. Mas o governo Biden disse que pelo menos algumas sanções serão impostas. A retomada da cooperação bilateral militar e de segurança agora é provavelmente uma impossibilidade. A China, por sua vez, só encontrou maneiras de aprofundar sua influência econômica em Mianmar desde a abertura e ainda exerce considerável influência sobre os vários processos de paz com os grupos étnicos rebeldes. A necessidade de Mianmar de ajuda externa para se equilibrar contra Pequim é mais forte do que nunca. De qualquer forma, os militares aparentemente fizeram sua escolha: tentar governar Mianmar como muitos de seus vizinhos – não liberais, mas mais ou menos aceitos pelo Ocidente de qualquer forma, e, portanto, capazes de proteger suas apostas e estabelecer um equilíbrio estratégico com os principais poderes em sua periferia. A única diferença é que Mianmar era um pária completo há cerca de uma década, de alguma forma aumentando as expectativas associadas ao seu improvável surgimento.
*Phillip Orchard é analista da Geopolitical Futures. Antes, passou quase seis anos na Stratfor, trabalhando como editor e escrevendo sobre a geopolítica do Leste Asiático. Passou mais de seis anos no exterior, principalmente no sudeste da Ásia e na América Latina, onde obteve experiência com os problemas decorrentes da agitação política em massa, conflito civil e migração humana. Possui mestrado em Segurança, Direito e Diplomacia pela Escola de Relações Públicas Lyndon B. Johnson, onde se concentrou em energia e segurança nacional, política externa chinesa, análise de inteligência e patologias institucionais. Ele também obteve um diploma de bacharel em jornalismo pela Universidade do Texas. Fala espanhol e um pouco de tailandês e laosiano.
Acesso a um oceano e a uma grande cadeia de montanhas, extensa fronteira terrestre, densa cobertura florestal, recursos naturais abundantes, terras férteis e rios em abundância. (Isto é Mianmar, mas poderia ser o Brasil, não?). Não é de se espantar com o interesse das grandes potências naquela região. Adicione papoula (leia-se opiáceos e seu potencial sua como substâncias entorpecentes/drogas) à equação e até mesmo uma vencedora do prêmio Nobel da Paz perde apoio internacional. Sigamos acompanhando o desenrolar dos fatos, pois para tornar-se um pária internacional custa menos do que parece. Forte abraço!
Exatamente Sinclair, um caso a se acompanhar, pode servir de exemplo! Grato por comentar, forte abraço!
Bom artigo, gostei muito.
Sinceramente, onde tem “democracia” envolvida, tem corrupção e as mais altas atrocidades! Nada me espanta mais quando alguém fala que aceitou a democracia pois é quase escrever uma profecia do que vai acontecer na próxima década. Democracia é mesmo uma merda onde só um golpe militar é capaz de resolver e por ordem na casa, sempre com um banho de sangue. A humanidade não aprende mesmo, vai ser sempre isso. Tá chegando a hora do Brasil.