Por Cel. Paulo Roberto da Silva Gomes Filho* |
Artigo publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 20 de fevereiro de 2019
Como se sabe, a Venezuela possui hoje um governo de facto – governo do Presidente Maduro – não reconhecido por grande parte da comunidade internacional, e um Presidente autoproclamado – Juan Guaidó, aceito pela maior parte dos países das Américas, inclusive o Brasil, e por grande parte dos países europeus. Isto em meio a uma crise política, econômica e social gravíssima, com milhares de pessoas fugindo do país em um fluxo migratório inédito na América do Sul. Os venezuelanos convivem ainda com hiperinflação, escassez de alimentos, denúncias de fraudes eleitorais, de censura à imprensa e de uso de força desproporcional pelas tropas do governo contra os manifestantes oposicionistas.
Esta crise pode ser analisada desde vários pontos de vista. Há o viés humanitário, decorrente do grave sofrimento imposto à população, onde o acesso aos itens mais básicos de alimentação e aos serviços de saúde, sem contar inúmeros outros aspectos fundamentais para o bom funcionamento de uma sociedade, simplesmente não estão mais disponíveis aos cidadãos. Há o aspecto político, pela confrontação ideológica daqueles que ainda defendem o regime Chavista de Maduro e o os que mostram a falência do modelo político-ideológico que se aplicou por lá. O aspecto econômico também pode ser analisado: como o país chegou ao caos econômico? Quais efeitos podem advir das sanções econômicas aplicadas pelos EUA? Enfim, há espaço para discussão nos campos político, econômico, psicossocial e militar.
Este texto abordará o campo da confrontação geopolítica que se dá entre as grandes potências tendo a Venezuela como pano de fundo. Estados Unidos, Rússia e China. Como eles estão se posicionando? Como isto afeta o desenrolar dos acontecimentos?
Os Estados Unidos foram o primeiro país a reconhecer Guaidó como presidente da Venezuela, acusando o governo Maduro de ilegitimidade em razão de fraudes eleitorais no processo de reeleição que o reconduziu à presidência. Além da crise humanitária e econômica, aspectos criadores de instabilidade que podem trazer graves consequências para a América do Sul e Caribe, os EUA veem com preocupação a crescente influência chinesa e russa na área.
Desta forma, os EUA atuaram com grande firmeza. O Presidente Trump declarou que “todas as opções estão sobre a mesa”, afirmação que obviamente mostra que não se descartaria uma intervenção militar. Além disto, impôs duras sanções econômicas que afetam diretamente o coração da economia venezuelana – a exportação de petróleo.
A China, por sua vez, advoga há muito tempo que as relações entre os países devem respeitar o princípio da não-intervenção. Este princípio é fundamental para o país, que considera inadmissível a interferência estrangeira em seus próprios problemas, como a questão da ilha de Taiwan e o separatismo dos Uigures na província de Xinjiang.
Além disto, a Venezuela é um grande parceiro comercial e destino de investimentos e empréstimos chineses na América do Sul. Somente entre 2007 e 2012, o Banco de Desenvolvimento da China emprestou a impressionante quantia de US$ 42,5 bilhões. Grande parte dos pagamentos desses empréstimos foram feitos diretamente em petróleo venezuelano.
Assim, a China está posicionada, até o momento, em apoio ao governo Maduro, defendendo uma solução pacífica e interna para o imbróglio político.
O presidente russo Vladimir Putin e o seu Primeiro Ministro, Dmitry Medvedev elevaram o tom da retórica e acusaram os EUA de hipocrisia e de apoiarem um golpe. Medvedev chegou a perguntar como os americanos reagiriam se a Presidente da Câmara, Nancy Pelosi, deputada oposicionista a Trump, se autoproclamasse Presidente dos EUA.
A Rússia, que trava uma batalha para manter ou reassumir a influência sobre os países do leste europeu, sua área de influência, como as ações na Ucrânia demonstram claramente, dá uma espécie de troco nos EUA ao atuar contra os interesses deste país na Venezuela. Não se pode descartar que este tipo de ação possa ser útil como uma espécie de moeda de troca em relação ao posicionamento dos EUA em face a alguma questão no leste europeu no futuro.
Os países europeus inicialmente se posicionaram de forma hesitante, exigindo que o Presidente Maduro convocasse novas eleições. Após sua negativa, em sua maioria passaram a reconhecer Guaidó, liderados por Reino Unido, França, Espanha e Alemanha.
O Brasil, que sofre os efeitos da crise venezuelana ao receber grandes contingentes de refugiados, posicionou-se fortemente contra o governo Maduro, reconhecendo Guaidó como presidente interino. Alinhou-se ao posicionamento norte-americano, disponibilizando-se, inclusive, a prestar ajuda humanitária se fosse necessário.
O mundo já assistiu a este tipo de confrontação. Parece que estamos de volta à Guerra Fria. Mas a história, que nos dá valiosas pistas sobre o desenrolar futuro dos acontecimentos, não se repete sob as mesmas circunstâncias. Trata-se, desta vez, de uma confrontação em um mundo globalizado, com interesses econômicos entrelaçados como nunca antes.
Os militares são o centro de gravidade que mantém Maduro no poder. E a pressão está cada vez maior. No momento em que os comandantes perceberem que o presidente corre o risco de perder o apoio chinês e russo, desembarcarão do governo. Se isto ocorrer de uma forma em que se salvem as aparências de uma “solução interna”, na qual não tenha havido “interferência externa nos problemas de uma nação soberana”, China e Rússia poderão alegar que o povo venezuelano encontrou sua saída, apoiando o novo governo. Assim, não se descarte a possibilidade de um “autogolpe” para o qual se encontrará um verniz legal, que “mudaria sem mudar”, mantendo o establishment e tentando reduzir a pressão internacional, com o apoio russo e chinês. Caso isto ocorra, será o prenúncio de nova crise.
*Paulo Roberto da Silva Gomes Filho é Coronel de Cavalaria formado pela Academia Militar das Agulhas Negras em 1990. E-mail: paulofilho.gomes@eb.mil.br
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Então, o correto é o pau cantar mesmo?