Por Reis Friede*
Não obstante as reconhecidas restrições embrionárias ao emprego do poderio militar norte-americano, – fulcradas no objetivo maior de se evitar um confronto militar direto com o Exército Vermelho –, no intrigado episódio do Bloqueio de Berlim pelos soviéticos (24 de junho de 1948 a 11 de maio de 1949), é forçoso reconhecer que o fato histórico mais marcante, – e que a maioria dos estudiosos atribui como o verdadeiro responsável pela gênese da Bipolaridade Confrontativa Indireta e, consequentemente, peça inaugural da denominada Assimetria Reversa Indireta ou Reflexa –, foi, contudo, o célebre encontro das tropas de MACARTHUR, estacionadas às margens do rio Yalu, na parcela coreana da fronteira com a China Continental, com uma fração substancial do surpreendente contingente de aproximadamente 250 a 400.000 soldados chineses (dependendo da fonte) dispostos, em formação ofensiva, na margem oposta (chinesa).
“Duas semanas após a mobilização norte-americana na Coreia e com o propósito de analisar o impacto das ações americanas na China, os líderes chineses concordaram em re-mobilizar tropas originalmente destinadas à invasão de Taiwan para a fronteira da Coreia e constituí-las num Exército de Defesa da Fronteira Norte com a missão de ‘defender as fronteiras a nordeste e preparar a base para as operações de guerra do Exército Popular Coreano, se necessário’. Em fins de julho (ou mais de dois meses antes que as forças norte-americanas atravessassem o paralelo 38), mais de 250 mil tropas chinesas haviam sido mobilizadas na fronteira coreana.” (CHEN JIAN; China’s Road to the Korean War, p. 137)
Analisando tal fato em um contexto mais amplo, como bem adverte Henry Kissinger (cf. Sobre a China, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2011), nenhum estudioso das relações internacionais poderia imaginar, à época, que um exército recém-saído de uma guerra civil e na maior parte equipado com armas capturadas dos nacionalistas poderia se dispor a enfrentar a maior potência econômica (o PIB norte-americano em 1950 representava aproximadamente 53% da economia mundial) e militar do planeta naquele momento histórico tão particular. A explicação lógica para tanto, segundo o mencionado autor, exige uma compreensão especial de como a China, sob o comando de Mao Tsé Tung (ou Mao Zedong), percebia a estratégia da deterrência, no espectro da denominada Guerra Clássica, combinando elementos de longo prazo, estratégicos e psicológicos¹.
Ainda assim, apesar da brilhante análise sobre o papel chinês no conflito coreano (até por se tratar de reconhecido especialista sobre o tema), não há como deixar de reconhecer que o mencionado autor renegou (de forma, no mínimo, criticável) o protagonismo soviético no epigrafado episódio. Destarte, a verdade é que a União Soviética usou, em grande medida, a China para testar, de forma mais segura (preservando-se de um perigoso confronto direto com os EUA), sua expansão geopolítica sobre a Ásia, uma vez que, reconhecidamente, as possibilidades para idêntica empreitada haviam se encerrado na Europa, no final da década de 40, particularmente após a criação da OTAN, em 1949.
Nesse sentido, ainda que com relativa hesitação, a União Soviética calculou (ainda que equivocadamente) que os Estados Unidos não deslocariam tropas para a Ásia na defesa da Coréia, ou mesmo de Taiwan; a uma, porque declaradamente ambas regiões não se encontravam no perímetro defensivo estabelecido por Washington (cf. HENRY KISSINGER; Sobre a China, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2011, ps. 128/129) e, a duas, porque os EUA não haviam tomado qualquer iniciativa para deslocar forças militares na defesa de Chiang Kai-shek (ou JIANG JIESHI), permitindo estabelecer a derrota dos nacionalistas na guerra civil chinesa, em 1949. Ademais, subsistia, no pensamento soviético (vigente à época), a suposta necessidade de se estabelecer uma compensação pela negativa de macarthur em compartilhar, com seus aliados russos, a ocupação japonesa, a exemplo do que foi realizado na Europa. A ideia central repousava, desta feita, no estabelecimento de uma espécie de domínio compensatório sobre a península coreana, utilizando a China como anteparo e reduzindo, portanto, os riscos de um confronto direto com os Estados Unidos, premiando, por fim, a China pelos seus supostos bons serviços, com a reunificação de Taiwan.
“Em um pronunciamento ao National Press Club, em 12 de janeiro de 1950, o secretário de Estado DEAN ACHESON apresentou uma radical nova política para a Ásia. Seu discurso continha três pontos de importância fundamental. O primeiro era de que Washington estava lavando as mãos na guerra civil chinesa. Os nacionalistas, proclamou ACHESON, haviam mostrado tanto inadequação política como ‘a mais grosseira incompetência jamais vivenciada por qualquer comando militar’. Os comunistas, argumentou ACHESON, ‘não criaram essa condição’, mas exploraram habilmente a abertura que ela propiciava. CHIANG KAI-SHEK era agora ‘um refugiado numa pequena ilha ao largo da costa da China com o resto de seus exércitos’. (cf. DEAN ACHESON; Crisis in Asia: An Examination of US Policy, Departament of State Bulletin, 23 de janeiro de 1950, p. 113)
Tendo concedido o continente para controle comunista e fosse lá o impacto geopolítico que pudesse advir, não fazia sentido resistir às tentativas comunistas de ocupar Taiwan. Isso era na verdade a avaliação do NSC-48/2, um documento refletindo a política nacional preparado pela equipe do Conselho de Segurança Nacional e aprovado pelo presidente. Adotado em 30 de dezembro de 1949, concluía que ‘a importância estratégica de Formosa [Taiwan] não justifica a ação militar aberta’. TRUMAN defendera um ponto de vista similar em uma coletiva de imprensa em 5 de janeiro: ‘O governo dos Estados Unidos não fornecerá ajuda militar ou conselhos para as forças chinesas em Formosa’. (cf. SERGEI N. GONCHAROV, JOHN W. LEWIS e XUE LITAI; Uncertain Partners: Stalin, Mao, and the Korean War, Stanford: Stanford University Press, 1993, p. 98)” (HENRY KISSINGER; Sobre a China, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2011, p. 128/129)
Por efeito, no dia 19 de outubro de 1950, por ordem direta de MAO TSE TUNG (ou MAO ZEDONG) (cf. Chinese Troops Enter North Korea: http://teachingamericanhistory.org/static/nch/interactives/timeline/data/102550.html), e contrariando grande parte da liderança chinesa que temia um confronto direto com os EUA, as forças chinesas, auto-intituladas de “voluntárias” (buscando evitar a “oficialização” do ingresso da China no conflito), atravessaram o rio Yalu e, no dia seguinte, forças da ONU e da China já estavam trocando tiros na região de fronteira.
“As reuniões do Politburo e da Comissão Militar Central continuaram durante o mês de agosto. Em 4 de agosto, seis semanas antes do desembarque em Inchon, quando a situação militar ainda era favorável às forças invasoras norte-coreanas e o front continuava situado bem adentro do território sul-coreano, perto da cidade de Pusan, MAO TSE TUNG, cético quanto à capacidade da Coreia do Norte, disse ao Politburo: ‘Se os imperialistas americanos saírem vitoriosos, o sucesso vai lhes subir à cabeça, e ficarão em posição de nos ameaçar. Temos de ajudar a Coreia; temos de ir em seu auxílio. Isso pode ser feito na forma de uma força voluntária, e no momento de nossa escolha, mas devemos começar a nos preparar’ (cf. SHEN ZHIHUA; Mao Zedong, Stalin, and the Korean War, capítulo 7). Na mesma reunião, ZHOU ENLAI empreendeu a mesma análise básica: ‘Se os imperialistas americanos esmagarem a Coreia do Norte, ficarão inchados de arrogância, e a paz estará ameaçada. Se queremos assegurar a vitória, devemos ampliar o fator China; isso pode produzir uma mudança na situação internacional. Devemos adotar uma visão de longo prazo’ (cf. SHEN ZHIHUA; Mao Zedong, Stalin, and the Korean War, capítulo 7). Em outras palavras, era a derrota da Coreia do Norte que ainda avançava, não a localização particular das forças americanas, que a China precisava resistir. No dia seguinte, MAO ordenou ao seu alto-comando que ‘completassem seus preparativos em um mês e ficassem prontos para as ordens de iniciar as operações de guerra’ (cf. CHEN JIAN; China’s Road to the Korean War, p. 143).
Em 13 de agosto, a 13ª Corporação do Exército da China realizou uma conferência entre seus líderes militares de alto escalão para discutir a missão. Embora expressando reservas quanto ao prazo final de agosto, os participantes concluíram que a China ‘deveria tomar a iniciativa, cooperar com o Exército Popular Coreano, marchar adiante sem relutância e esmagar o sonho inimigo de agressão’ (cf. CHEN JIAN; China’s Road to the Korean War, ps. 143-144).
Nesse meio-tempo estavam sendo feitas análises de estado-maior e exercícios cartográficos. Eles levaram os chineses a conclusões que os ocidentais teriam julgado contraintuitivas, no sentido de que a China poderia vencer uma guerra contra as forças armadas americanas. Os compromissos dos Estados Unidos pelo mundo, assim rezava o argumento, limitariam a mobilização norte-americana a um máximo de 500 mil efetivos (na verdade, o auge do efetivo máximo estadunidense empregado na Coreia atingiu a cifra de 326.863 homens, além de mais 45.000 efetivos dos demais países da ONU), enquanto a China tinha um exército de 4 milhões de soldados a que recorrer. A proximidade chinesa do campo de batalha dava-lhe uma vantagem logística. Os planejadores chineses achavam que contariam com uma vantagem psicológica também devido ao fato de que a maioria dos povos mundiais apoiaria a China.” (CHEN JIAN; China’s Road to the Korean War, p. 144)
Os soviéticos então, segundo SHEN ZHIHUA (China and the Dispatch of the Soviet Air Force: The Formation of the Chinese-Soviet-Korean Alliance in the Early Stage of the Korean War, The Journal of Strategic Studies, vol. 33, no. 2, ps. 211-230) decidiram alterar sua postura de maior prudência e distanciamento em relação à guerra coreana (afinal, os EUA ostentavam, à época, uma nítida superioridade militar, contando com 350 bombas atômicas operacionais contra apenas 25 soviéticas, além de se encontrarem muito próximos das etapas finais do desenvolvimento da bomba termonuclear de hidrogênio, cuja primeira detonação ocorreu em 1952), enviando, além de mais suprimentos e suporte logístico, alguns esquadrões de sua força aérea, objetivando neutralizar os bombardeios norte-americanos, bem como realizar ataques em solo coreano, deslocando, inclusive, unidades dos moderníssimos MiG-15 Fagot (estacionadas em países europeus), que se revelaram uma “surpresa tecnológica”, especialmente durante o transcurso do primeiro semestre de 1951. Como resultado, na batalha de Onjong, as forças sul-coreanas foram massacradas pelos chineses. Em 1º de novembro, soldados da China e dos Estados Unidos travaram seu primeiro combate na batalha de Unsan, vencida pelos chineses.
“A sabedoria convencional costuma atribuir a decisão chinesa de entrar na Guerra da Coreia à decisão americana de cruzar o paralelo 38 no começo de outubro de 1950 e ao avanço das forças das Nações Unidas para o rio Yalu, a fronteira de China e Coreia. Outra teoria era a da agressividade comunista inata nos moldes dos ditadores europeus de uma década antes. Estudos recentes demonstram que nenhuma das duas teorias está correta. MAO TSE TUNG (MAO ZEDONG) e seus companheiros de governo não tinham nenhum plano estratégico para a Coreia no sentido de desafiar sua soberania; antes da guerra, estavam mais preocupados em contrabalançar a Rússia. Tampouco esperavam desafiar os Estados Unidos em termos militares. Eles entraram na guerra somente depois de longas deliberações e muita hesitação, numa espécie de movimento preemptivo (concepção chinesa de deterrência estratégica ofensiva).
O evento que precipitou esse plano foi o despacho inicial de tropas americanas para a Coreia combinado à neutralização do estreito de Taiwan. A partir desse momento, MAO ordenou o planejamento para a entrada chinesa na Guerra da Coreia com o propósito de, no mínimo, impedir o colapso da Coreia do Norte e, ocasionalmente, para o objetivo revolucionário máximo de expulsar inteiramente as forças americanas da península.” (SHU GUANG ZHANG; Mao’s Military Romanticism: China and the Korean War, 1950-1953, Lawrence University Press of Kansas, 1995, ps. 101/107, 123/125, 132/133; e CHEN JIAN; Mao’s China and the Cold War, Chapel Hill, University of North Carolina Press, 2001, ps. 91/96)
O comando da ONU, contudo, não acreditava inicialmente na dimensão da intervenção chinesa e no elevado número de soldados de Pequim em solo coreano. O General WILLOUGHBY, comandante do 8º Exército, segundo WILLIAM MANCHESTER (American Caesar: Douglas MacArthur 1880-1964, Boston, 1978, p. 604), minimizou todas as evidências sobre a magnitude da participação chinesa na guerra, estimado em apenas 71.000 soldados o efetivo total posto em combate, ao passo que a própria Agência Central de Inteligência (CIA), em 24 de novembro, estimou as mesmas em 200.000 efetivos, porém com “poucas condições de planejar e efetuar grandes operações ofensivas” (cf. David Halberstam; MacArthur’s Grand Delusion, Vanity Fair, outubro de 2007). A verdade é que, entre os próprios chineses, não havia uma unanimidade quanto à conveniência estratégica de um envolvimento direto de tropas chinesas no conflito coreano.
“Os obstáculos à intervenção chinesa eram tão desencorajadores que toda a liderança de Mao TSE TUNG (MAO ZEDONG) foi necessária para conquistar a aprovação de seus colegas. Dois importantes comandantes, incluindo Lin Biao, recusaram o comando do Exército de Defesa da Fronteira Nordeste sob vários pretextos antes de Mao encontrar em Peng Dehuai um comandante preparado para assumir a incumbência.
Mao prevaleceu (como prevalecera em todas as decisões importantes) e os preparativos para a entrada de forças chinesas na Coreia foram inexoravelmente adiante. Outubro viu forças americanas e aliadas deslocando-se na direção do Yalu, determinadas a unificar a Coreia e resguardá-la mediante resolução da ONU. Seu propósito era defender o novo status quo com essas forças, tecnicamente constituindo um comando da ONU. A movimentação dos dois exércitos na direção um do outro desse modo adquiriu uma qualidade fatalista; os chineses estavam preparando um ataque, enquanto os americanos e seus aliados permaneciam em total desconhecimento do desafio que os aguardava no fim de sua marcha para o norte. (…)
Nesse ponto, Stalin reentrou na cena para apoiar a continuação do conflito que ele havia encorajado e cujo encerramento não estava nos seus planos. O exército norte-coreano estava entrando em colapso, e outro desembarque americano no litoral oposto era esperado pelo serviço de informações soviético perto de Wonsan (equivocadamente). Preparativos chineses para a intervenção estavam muito mais adiantados, mas a situação ainda não era irrevogável. Stalin desse modo decidiu, em uma mensagem (carta), enviada em 1º de outubro, para Mao, pedir a intervenção chinesa. Após Mao ter protelado uma decisão, mencionando o perigo da intervenção americana, Stalin enviou um telegrama com uma informação adicional. Ele estava preparado, insistia, em se comprometer a um apoio militar soviético numa guerra total caso os Estados Unidos reagissem à intervenção chinesa. (…)
Na ocasião, quando posto à prova, todavia, Stalin se mostrou pouco inclinado a demonstrar o comprometimento total que prometera a Mao ou, mesmo, qualquer aspecto de confronto direto com os Estados Unidos. Ele sabia que a balança de poder era desfavorável demais para um acerto de contas; ou seja, do início de uma guerra em duas frentes contra os EUA, na Europa e na Ásia. Ele procurou amarrar o potencial militar americano na Ásia e envolver a China em empreitadas que ampliassem sua dependência do apoio soviético. O que a carta de Stalin realmente demonstra é quão seriamente os analistas soviéticos e chineses avaliavam a importância estratégica da Coreia, ainda que por motivos muito diferentes.
A carta de Stalin deixou Mao em um dilema. Uma coisa era planejar a intervenção de modo abstrato em parte como um exercício de solidariedade revolucionária. Outra era efetivamente executa-la, especialmente quando o exército norte-coreano estava à beira da desintegração. A intervenção chinesa tornava imperativos suprimentos soviéticos e, acima de tudo, eficiente cobertura aérea, uma vez que o Exército de Libertação Popular não contava com uma força aérea minimamente operacional. Assim, quando a questão da intervenção foi apresentada perante o Politburo, Mao recebeu uma resposta surpreendentemente ambígua, levando-o a esperar antes de dar sua palavra final. Em vez disso, Mao despachou Lin Biao (que rejeitara o comando das forças chinesas, alegando problemas de saúde) e Zhou ENLAI para a Rússia a fim de discutir as perspectivas da assistência soviética. Stalin estava no Cáucaso de férias, mas não viu motivo para alterar sua agenda. Ele obrigou Zhou a ir para o seu retiro mesmo que (ou, talvez, justamente porque) Zhou não tivesse meio de se comunicar com Pequim da dacha de Stalin, exceto por canais soviéticos.
Zhou e Lin Biao haviam sido instruídos a advertir Stalin de que, sem receber uma garantia de suprimentos, a China não poderia, no fim, empreender o que viera preparando por dois meses. Pois a China seria o palco principal do conflito que Stalin estava promovendo. Suas perspectivas dependeriam dos suprimentos e do apoio direto que Stalin disponibilizaria. Quando confrontados com essa realidade, a reação dos chefes de governo de Mao foi ambivalente. Alguns opositores chegaram até o ponto de argumentar que a prioridade devia ser dada ao desenvolvimento doméstico. Ao menos uma vez na vida Mao parecia hesitar, nem que por um minuto apenas. Seria isso uma manobra para obter uma garantia de apoio de Stalin antes que as forças chinesas fossem irrevogavelmente comprometidas? Ou ele estava de fato indeciso?
Um sintoma de divisões internas chinesas é o misterioso caso de um telegrama de Mao para Stalin enviado na noite de 2 de outubro, do qual duas versões contraditórias são mantidas nos arquivos de Pequim e Moscou.
Em uma versão do telegrama de Mao – rascunhado na caligrafia de Mao, arquivado em Pequim, publicado em uma coletânea chinesa neibu (‘apenas para circulação interna’) dos manuscritos de Mao, mas muito provavelmente nunca despachado de fato para Moscou –, o líder chinês escreveu que Pequim ‘decidira enviar parte de nossas tropas para a Coreia sob o nome de Voluntários [Populares Chineses] para combater os Estados Unidos e seu lacaio Syngman Rhee e para ajudar os camaradas coreanos’ (cf. GONCHAROV, LEWIS e XUE; Uncertain Partners, p. 177). Mao citou o perigo de que, na ausência de uma intervenção chinesa, ‘a força revolucionária coreana conhecerá uma derrota acachapante, e os agressores americanos avançarão com fúria descontrolada assim que ocuparem a totalidade da Coreia. Isso será desfavorável para todo o Oriente’ (cf. GONCHAROV, LEWIS e XUE; Uncertain Partners, p. 177). Mao observou que ‘devemos estar preparados para uma declaração de guerra dos Estados Unidos e para o subsequente uso da força aérea norte-americana bombardeando inúmeras das principais cidades e bases industriais chinesas, bem como para um ataque da marinha americana contra nossas regiões costeiras’. O plano chinês era enviar 12 divisões do sul da Manchúria em 15 de outubro. ‘No estágio inicial’, escreveu Mao, eles iriam mobilizar as tropas a norte do paralelo 38 e ‘meramente empreender a guerra defensiva’ contra tropas inimigas que cruzem o paralelo. Nesse meio-tempo, ‘eles vão esperar pela chegada de armas soviéticas. Uma vez bem-equipados, vão cooperar com os camaradas coreanos em contra-ataques para aniquilar as tropas agressoras americanas’ (cf. GONCHAROV, LEWIS e XUE; Uncertain Partners, p. 177).
Em uma versão diferente do telegrama de 2 de outubro de Mao (enviado por intermédio do embaixador soviético em Pequim, recebido em Moscou e guardado nos arquivos presidenciais russos), Mao informava Stalin que Pequim não estava preparada para enviar tropas. Ele aventou a possibilidade de que, após posteriores conversas com Moscou (e, deu a entender, promessas de apoio militar soviético adicional), Pequim se mostraria inclinada a entrar no conflito.
Durante anos estudiosos analisaram a primeira versão do telegrama como se fosse a única existente; quando a segunda versão emergiu, alguns se perguntaram se um dos documentos não poderia ser falso. A explicação mais plausível é a proposta pelo estudioso chinês Shen Zhihua: a de que Mao esboçou a primeira versão do telegrama pretendendo enviá-lo, mas que a liderança chinesa estava tão dividida que um telegrama mais equívoco foi substituído. A discrepância sugere que, mesmo enquanto as tropas chinesas avançavam na direção da Coreia, ‘a liderança chinesa continuava debatendo sobre por quanto tempo ainda aguardar por um compromisso de apoio definitivo do aliado soviético antes de dar o último e irrevogável passo’ (cf. SHEN ZHIHUA; “The Discrepancy Between the Russian and Chinese Versions of Mao’s 2 October 1950 Message to Stalin on Chinese Entry into the Korean War: A Chinese Scholar’s Reply”, Cold War International History Project Bulletin 8∕9, Washington, D.C.: Woodrow Wilson International Center for Scholars, inverno 1996, p. 240).
Os dois autocratas comunistas haviam sido treinados em uma dura escola de política do poder, que agora aplicavam um no outro. Nesse caso, Stalin se mostrava o jogador inflexível quintessencial. Ele friamente informou a Mao (por meio de um telegrama conjunto com Zhou) que, em vista da hesitação chinesa, a melhor opção seria a retirada do que restava das forças norte-coreanas para a China, onde Kim Il-sung poderia formar um governo provisório no exílio. Os doentes e incapacitados poderiam ir para a União Soviética. Ele não se incomodava em ter americanos em sua fronteira asiática, afirmou Stalin, uma vez que já os confrontava ao longo das linhas divisórias europeias.
Stalin sabia que o único resultado que Mao queria menos do que forças americanas às portas da China era um governo coreano provisório na Manchúria em contato com a minoria coreana que vivia ali, reivindicando algum tipo de soberania e pressionando constantemente por empreitadas militares na Coreia. E ele deve ter sentido que Mao ultrapassara o ponto sem volta. A escolha da China, nessa situação, era entre um exército americano no Yalu, ameaçando diretamente a metade da indústria chinesa facilmente ao alcance, e uma União Soviética descontente, negaceando suprimentos, talvez voltando a reivindicar seus ‘direitos’ sobre a Manchúria. Ou então a China prosseguiria no curso que Mao continuara a buscar mesmo enquanto barganhava com Stalin. Ele estava em uma posição onde tinha de intervir, paradoxalmente em parte para se proteger contra as intenções soviéticas.
Em 19 de outubro, depois de vários dias de protelação à espera de uma garantia de suprimentos soviéticos, Mao ordenou que o exército entrasse na Coreia. Stalin prometeu apoio logístico substancial, contanto apenas que não envolvesse confronto direto com os Estados Unidos (por exemplo, cobertura aérea sobre a Manchúria, mas não sobre a Coreia).
A desconfiança mútua era tão desenfreada que Zhou nem bem regressara a Moscou, de onde podia se comunicar com Pequim, e Stalin aparentemente já voltara atrás. Para impedir Mao de usar a União Soviética de modo que esta aguentasse o fardo de equipar o Exército de Libertação Popular sem receber o benefício de segurar as forças americanas em combate na Coreia, Stalin informou Zhou de que nenhum suprimento começaria a ser enviado até que as forças chinesas houvessem efetivamente entrado na Coreia. Mao deu a ordem (em 19 de outubro), na verdade sem uma confirmação do apoio soviético. Depois disso, o apoio soviético originalmente prometido foi restabelecido, embora o sempre cauteloso Stalin restringisse o apoio aéreo ao território chinês. Lá se ia a prontidão expressa em sua carta anterior a Mao de arriscar uma guerra geral por causa da Coreia.
Ambos os líderes comunistas haviam explorado as necessidades e inseguranças um do outro. Mao conseguira obter os suprimentos militares soviéticos para modernizar seu exército; algumas fontes chinesas alegam que durante a Guerra da Coreia ele recebeu equipamento para 64 divisões de infantaria e 22 divisões aéreas (cf. GONCHAROV, LEWIS e XUE; Uncertain Partners, ps. 200-201, citando HONG XUEZHI e HU QICAI, ‘Mourn Marshal Xu with Boundless Grief’, Diário do Povo, 16 out. 1990; e YAO XU; Cong Yalujiang dao Banmendian: Do Rio Yalu a Panmunjom, Pequim, People’s Press, 1985) e Stalin amarrara as mãos da China num conflito com os Estados Unidos na Coreia.” (HENRY KISSINGER; Sobre a China, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2011, ps. 145 e segs.)
Segundo RICHARD W. STEWART (The Korean War: The Chinese Intervention, U.S. Army Center of Military History), em 24 de novembro, o 8º Exército Norte-americano lançou uma ofensiva na costa noroeste da Coreia do Norte sem qualquer sucesso. No dia seguinte, forças militares dos Estados Unidos, da Coreia do Sul e de alguns países aliados, como o Reino Unido, foram severamente atacadas por tropas chinesas na batalha do rio Chongchon. Neste combate, ambos os lados sofreram pesadas baixas. Os americanos tiveram ao menos 11 mil soldados mortos, feridos, desaparecidos ou capturados. Os chineses perderam quase 40 mil homens, mas lograram-se vitoriosos, obrigando as forças da ONU a recuar para o paralelo 38 e restabelecerem uma nova linha defensiva. Ao mesmo tempo, o X Corpo do Exército dos Estados Unidos foi atacado na região de Chosin Reservoir, onde uma batalha de 17 dias sob frio intenso se seguiu e terminou com mais uma perturbadora vitória chinesa.
De acordo com BILLY C. MOSSMAN (Ebb and Flow, November 1950 – July 1951. United States Army in the Korean War, Center of Military History), em meados de dezembro, as forças americanas já haviam se retirado para a fronteira original entre as Coreias.
“Nem mesmo a possibilidade de um ataque nuclear desencorajava os estrategistas chineses; talvez porque não tivessem uma experiência de primeira mão com armas nucleares e nenhum meio de adquiri-las. Eles concluíram (embora não sem uma expressiva e manifesta dissensão) que uma reação nuclear americana era improvável em face da capacidade nuclear soviética (ainda que muito inferior, à época); bem como do risco, devido ao ‘padrão de zigue-zague’ das tropas na península, de que um ataque nuclear americano contra as tropas chinesas que avançavam para a Coreia pudesse destruir também as forças norte-americanas.” (SERGEI N. GONCHAROV, JOHN W. LEWIS e XUE LITAI; Uncertain Partners: Stalin, Mao, and the Korean War, Stanford University Press, 1993, ps. 164/167)
Nesse momento crucial, iniciou-se, formalmente, um inédito e inusitado debate (que acabou por se tornar público) entre as lideranças militares, sob o comando do General MACARTHUR, e o poder civil, capitaneado por um despreparado Presidente TRUMAN, que acabou se exteriorizando através de um confronto de ideias antagônicas (e cada vez menos conciliáveis) sobre a condução da guerra: de um lado um dos mais respeitados heróis da Segunda Guerra, que desejava conduzir operações militares em território chinês, bombardeando suas principais cidades e destruindo toda sua infraestrutura militar e econômica e introduzindo 650.000 chineses de Taiwan na batalha (aproveitando-se do fato de que a China havia realocado grande parte de seus efetivos que se preparavam para invadir Taiwan, desguarnecendo seus flancos), e, de outro, um presidente eleito em 1948 (tendo quase disputado a presidência com o próprio MACARTHUR, cuja indicação pelo Partido Republicano acabou não acontecendo), com pouca experiência e pressionado por uma opinião pública hostil (que ainda não havia se confirmado com a derrota nacionalista) e pela própria imprensa estadunidense, que inflamavam o debate, inclusive com veementes defesas pelo emprego de armas nucleares táticas contra os chineses.
Empenhado, todavia, em estabelecer, no contexto do conflito coreano, uma nova (e inédita) categoria de “Guerra Limitada”, fazendo florescer, desta feita, o conceito de Bipolaridade Confrontativa Indireta, e, por via de consequência, afirmando, pela primeira vez, o conceito de Assimetria Reversa, ainda que inicialmente de forma reflexa, e, igualmente, convencido pelo Primeiro-Ministro inglês CLEMENT ATTLEE, de que o confronto na Ásia era apenas um “desvio de atenção aos problemas europeus”, o Presidente HARRY TRUMAN não somente negou permissão ao General MACARTHUR para empreender as necessárias operações aéreas de bombardeio em território chinês, como ainda afastou qualquer possibilidade de autorizar a utilização de tropas chinesas de TAIWAN, não obstante a própria relutância presidencial de enviar à Península Coreana mais tropas terrestres estadunidenses, consoante reiteradas solicitações dos militares.
Inaugurava-se, dessa forma, um inédito capítulo na geopolítica internacional de limitação ao emprego do poder militar que se convencionou denominar de Bipolaridade Confrontativa Indireta (e Assimetria Reversa Reflexa) e que, gradativamente, foi se consolidando no período compreendido entre 18 de outubro de 1950 a 11 de abril de 1951 (data da destituição do General MACARTHUR do comando supremo das forças da ONU na península coreana).
Para adicionar mais combustível ao debate, no início de 1951 os chineses e norte-coreanos lançaram uma terceira ofensiva conjunta, conquistando, pela segunda vez, Seul em 4 de janeiro (cf. JAMES L. STOKESBURY; A Short History of the Korean War, New York, Harper Perennial. 1990, p. 117). Foi o suficiente para a radicalização das antagônicas posições, passando MACARTHUR a advogar, de forma mais contundente, uma guerra total contra a China, defendendo uma campanha intensiva de bombardeios contra os principais alvos militares e industriais chineses e, até mesmo, o chamado bombardeio por área em cidades e, – embora sempre enfaticamente negado -, o próprio uso de armas nucleares em desertos da Manchúria (como demonstração de força).
Em 23 de dezembro de 1950, o comandante do 8º Exército, WALTON WALKER viria a falecer, sendo substituído pelo General MATTHEW RIDGWAY BUNKER.
Segundo JAMES L. STOKESBURY (A Short History of the Korean War, New York, Harper Perennial. 1990, p. 113), o General RIDGWAY, escolhido pessoalmente por MACARTHUR, teve uma autonomia decisória que jamais foi concedida ao seu antecessor, passando este a introduzir novas estratégias como a doutrina conhecida como “moedor de carne”, consistente no emprego de bombardeios B-29 (originalmente desenvolvidos para missões de interdição) em operações de apoio tático e suporte às tropas (a mesma estratégia que, mais tarde, de igual forma, foi empregada com sucesso em diversas ocasiões e, particularmente, no contexto da Operação Niágara, pelo general WILLIAM WESTMORELAND, no cerco à base americana de Khe Sahn (KSCB), no norte do Vietnã do Sul no início de 1968, empregando bombardeiros B-52), imprimindo novo ânimo ao 8º Exército.
As forças da ONU recuaram até Suwon no oeste, até Wonju no centro e Samcheok no leste, estabelecendo uma nova linha de defesa.
Em fevereiro de 1951, segundo JAMES L. STOKESBURY (ob. cit. p. 117), o exército chinês lançou a quarta fase de sua ofensiva na Coreia e conquistou o condado de Hoengseong. Entretanto, as forças chinesas não conseguiram avançar além de Seul devido a falta de suprimentos, permitindo que o general RIDGWAY lançasse um contra-ataque e expulsasse as tropas adversárias das proximidades do rio Han. A quarta ofensiva chinesa foi, desta feita, consoante lição de JAMES L. STOKESBURY (ob. cit., p. 121), oficialmente detida em Chipyong-ni.
Nas últimas duas semanas de fevereiro de 1951, foi implementada a Operação Killer, lançada pelo 8º Exército Norte-americano e pelo I Corpo de Fuzileiros americanos. A ofensiva reconquistou os territórios ao sul do rio Han e o IX Corpo de Fuzileiros reconquistaram Hoengseong (JAMES L. STOKESBURY, ob. cit., p. 122). Em 14 de março, Seul foi reconquistada. A população da capital, que antes da guerra era de 1,5 milhões de pessoas, tinha declinado para 200 mil devido as quatro grandes batalhas travadas na cidade durante a guerra. O líder chinês, MAO TSE TUNG, pediu então a STALIN mais assistência e o premier soviético respondeu enviando duas divisões aéreas, três divisões de baterias anti-aérea e seis mil caminhões com suprimentos (cf. RICHARD KOLB in In Korea We Whipped the Russian Air Force, UFW, 1999). Apesar dessas medidas, o problema logístico com suprimentos dos chineses continuou, face ao maciço e contínuo ataque aéreo norte-americano contra as posições chinesas e, em particular, contra as suas linhas de suprimento.
O êxito da estratégia do emprego do poder aéreo contra a superioridade numérica das tropas terrestres chinesas e norte-coreanas (repetida, mais tarde, no contexto da Guerra do Vietnã, na Operação Linebacker I, conduzida pela 7ª Força Aérea e pela Força tarefa 77 da Marinha dos EUA, entre 9 de maio e 23 de outubro de 1972, que logrou deter a chamada Ofensiva Leste, também conhecida como Ofensiva Nguyen Hue ou Ofensiva de Páscoa, destruindo as linhas de suprimento norte-vietnamitas e impedindo o avanço das tropas do ENV), encorajou um fortalecido e mais confiante TRUMAN a destituir do supremo comando das forças da ONU na Coreia o general MACARTHUR, substituindo-o pelo general RIDGWAY.
Consolidava-se, neste momento, em toda a sua plenitude, a nova concepção geopolítica e geoestratégica de “Guerra Limitada” e a própria Bipolaridade Confrontativa Indireta.
Segundo DAVID HALBERSTAM (The Coldest Winter: America and the Korean War, New York, Hyperion, 2007, p. 498), MACARTHUR foi alvo de uma investigação do Congresso Nacional entre maio e junho de 1951, que, entretanto, concluiu, dubiamente e sem resultados concretos, que ele havia abertamente desobedecido as ordens do seu presidente e assim violado a Constituição dos Estados Unidos.
No comando geral das forças da ONU, o general RIDGWAY lançou um pesado contra-ataque no perímetro defensivo dos chineses e norte-coreanos que acabou sendo um sucesso. O general JAMES VAN FLEET assumiu o comando do 8º exército americano e, em março de 1951, duas ofensivas aliadas conseguiram infligir pesadas baixas nas forças opositoras e forçar o seu recuo. Os capacetes azuis avançaram então até o paralelo 38 e cercaram os chineses destruindo boa parte de seus exércitos (James L. Stokesbury; A Short History of the Korean War, New York, Harper Perennial, 1990, p. 131). Em abril de 1951, os chineses lançaram uma contra-ofensiva, com quase 700 mil homens na linha de frente. Esse ataque foi detido pelos fuzileiros americanos nas batalhas de Kapyong e do rio Imjin. Em 15 de maio, os chineses tentaram novamente avançar contra as linhas aliadas nas margens do rio Soyang. No dia 20 de maio, entretanto, as tropas chinesas atacantes já estavam em retirada (JAMES L. STOKESBURY, ob. cit. p. 136-137). Nesta oportunidade, o 8º Exército dos Estados Unidos lançou um ataque contra os chineses e norte-coreanos, além do paralelo, mas não lograram, todavia, obter um grande avanço (James L Stokesbury, ob. cit. p. 137-138).
A partir de julho de 1951, as forças da ONU e da China continuaram a engajar uma árdua luta de trincheiras, onde nenhum dos dois lados conseguia dar um golpe decisivo sobre o outro. Bombardeios aéreos em larga escala contra a Coreia do Norte se intensificaram, – sobretudo com a chegada dos F-86A Sabre, que conseguiram, com a introdução posterior de versões aperfeiçoadas (F-86E e F), gradativamente, obter uma superioridade aérea sobre os MiG-15 Fagot soviéticos (mesmo em relação à sua versão aperfeiçoada MiG-15 BIS, posteriormente posta em combate) -, abrindo caminho para as primeiras negociações de armistício, que começaram em 10 de julho de 1951. Todavia, apesar das negociações, a guerra continuava a todo vapor (cf. James L. Stokesbury; A Short History of the Korean War, New York, Harper Perennial, 1990, ps. 145 e 175-177), com grandes combates sendo travados durante esse período, como a batalha de Bloody Ridge e a de Heartbreak Ridge.
Em 1952, uma série sequencial de sangrentos confrontos foram consumados com milhares de soldados mortos em ambos os lados, sem qualquer ganho estratégico considerável, enquanto a situação humanitária nas Coreias piorava a cada dia (cf. The Korean War: Years of Stalemate: http://www.history.army.mil/brochures/kw-stale/stale.htm). As tropas chinesas e norte-coreanas sofriam com a permanente falta de suprimentos e materiais, considerando a péssima logística, fundada em linhas de suprimentos longas e sob constante ataques aéreos dos aliados ocidentais (cf. Barbara Barnouin; Zhou Enlai: A Political Life, Hong Kong, Chinese University Press, 2006).
O impasse continuou no início do ano de 1953. Cerca de 4.500 militares chineses morreram no cerco ao posto avançado americano de Harry. Em Kaesong, mais 1.500 chineses foram mortos. Entre março e julho, perto de Cheorwon, forças norte-coreanas, chinesas, americanas, sul-coreanas e de outros países das forças da ONU se confrontaram em uma emblemática batalha que acabou em um impasse estratégico e com a morte de mais de 2 mil soldados.
A situação das forças comunistas prosseguia tensa devido à constante falta de suprimentos e as enormes perdas sofridas nos combates (cf. Bill McWilliams; On Hallowed Ground: The Last Battle For Pork Chop Hill, 2004), enquanto nenhum dos dois lados era capaz de vencer uma batalha decisiva sobre o outro, as negociações, que já se prosseguiam há quase 24 meses, continuavam. Entre os obstáculos para a paz, o principal ponto residia na forma de como a troca dos prisioneiros de guerra seria feita (cf. Donald W. Boose, Jr.; Fighting While Talking: The Korean War Truce Talks, 2000). O problema era desafiante pelo fato de que quase dois terços dos prisioneiros da ONU haviam sido mortos após práticas desumanas de tortura sistemática por seus captores norte-coreanos e mais da metade dos 130.000 prisioneiros chineses e norte-coreanos havia assinado documentos optando por não serem repatriados.
O Comando das Nações Unidas, apoiado pelos Estados Unidos, a Coreia do Norte e o governo chinês finalmente assinaram os termos do armistício em 27 de julho de 1953, sob intensa pressão do governo EISENHOWER, que havia tomado posse com uma renovada força política sobre a campanha coreana. Este acordo decretou um cessar-fogo imediato e garantias do status quo ante bellum. A guerra oficialmente acabou neste dia. Porém, até os dias atuais, nenhum tratado de paz foi firmado entre as duas Coreias. O Norte, contudo, alega que venceu a guerra, não obstante uma substancial parcela de sua população ter sido dizimada durante o conflito.
“Nenhum dos participantes conquistou todos os seus objetivos na Guerra da Coreia. Para os Estados Unidos, o acordo de armistício concretizou o propósito pelo qual o país entrara na guerra: ele negava o sucesso da agressão norte-coreana, mas, ao mesmo tempo, impedia a China, em um momento de grande fraqueza, de enfrentar uma superpotência nuclear, levando-a a uma posição de paralisia e obrigando-a a rejeitar maiores avanços. Isso preservou (embora apenas parcialmente) a credibilidade americana em proteger os aliados, mas ao custo de uma revolta aliada incipiente e da discórdia doméstica. Observadores não conseguiam deixar de lembrar o debate que se desenvolvera nos Estados Unidos quanto aos objetivos da guerra. O general MacArthur, empregando máximas tradicionais, buscava a vitória; o governo, interpretando a guerra como um artifício para atrair a América à Ásia, estava preparado para um empate militar (e provavelmente um revés político de longo prazo), a primeira vez que um tal resultado ocorreria numa guerra lutada pelos Estados Unidos. A incapacidade de harmonizar objetivos políticos e militares talvez tenha tentado outros rivais asiáticos a acreditarem na vulnerabilidade doméstica americana para guerras sem resultados claramente definidos; dilema que reapareceu com toda a força no conflito do Vietnã, uma década mais tarde.
Tampouco se pode dizer que Pequim atingiu todos os seus objetivos, pelo menos não em termos militares convencionais. Mao não triunfou em libertar toda a Coreia do ‘imperialismo americano’, como a propaganda chinesa alegou inicialmente. Mas ele entrara na guerra com objetivos mais amplos e em alguns aspectos mais abstratos, até românticos: testar a ‘Nova China’ com uma prova de fogo e purgar o que Mao percebia como sendo o caráter historicamente brando e passivo da China; provar para o Ocidente (e, em certa medida, para a União Soviética) que a China era agora uma potência militar e usaria a força para reivindicar seus interesses; assegurar a liderança chinesa do movimento comunista na Ásia; e empreender um ataque contra os Estados Unidos (que Mao acreditava estar planejando uma eventual invasão da China) em um momento percebido como oportuno. A principal contribuição da nova ideologia não eram seus conceitos estratégicos tanto quanto a força de vontade para desafiar as nações mais fortes e estabelecer uma rota própria.
Nesse sentido mais amplo, a Guerra da Coreia foi algo mais do que um empate. Ela estabeleceu a recém-fundada República Popular da China como potência militar e centro da revolução asiática. Também determinou uma credibilidade militar que a China, como um adversário digno de se temer e respeitar, iria usufruir ao longo das diversas décadas seguintes. A lembrança da intervenção chinesa na Coreia iria mais tarde refrear significativamente a estratégia americana no Vietnã. Pequim triunfaria em usar a guerra e a propaganda associada de ‘Resistir à América, Ajudar a Coreia’ e a campanha punitiva para obtenção de duas metas centrais para Mao: eliminar a oposição doméstica à supremacia do Partido e instilar ‘entusiasmo revolucionário’ e orgulho nacional na população. Nutrindo ressentimento contra a população ocidental, Mao rotulou a guerra como uma luta para ‘derrotar a arrogância americana’; realizações no campo de batalha eram tratadas como forma de rejuvenescimento espiritual após décadas de fraqueza e abuso da China. O país emergiu da guerra exausto mas redefinido, tanto aos seus próprios olhos como aos do mundo.” (HENRY KISSINGER; Sobre a China, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2011)
Cerca de 75.000 prisioneiros chineses e norte-coreanos e 12.000 prisioneiros da ONU sobreviventes foram trocados com o fim das hostilidades.
Estima-se um mínimo de 1,2 milhões (cf. BETHANY LACINA e NILS PETTER GLEDITSCH; Monitoring Trends in Global Combat: A New Dataset of Battle Deaths, 2005; European Journal of Population, nº 21, ps. 145-166), passando por fontes que indicam 1,8 milhões (cf. CRS Report for Congress (CRS-3); American War and Military Operations Casualties, 2008) e algumas que mencionam um máximo de 2,5 milhões, de civis mortos na Guerra da Coreia.
Os termos do armistício acordaram a confecção de uma comissão internacional para assegurar que o acordo fosse cumprido. Desde 1953, a denominada “Comissão de Supervisão da Neutralidade das Nações” (NNSC), composta por membros das forças armadas da Suíça e da Suécia, monitoram a zona desmilitarizada (cf. NNSC in Korea; Swiss Armed Forces, International Command. Korea: http://www.forsvarsmakten.se/en/Forces-abroad/Korea).
Sobre as principais lições do conflito coreano, resta curioso observar o absoluto despreparo dos serviços de informação estadunidenses que, – voltados para a instável situação europeia (vale lembrar que, em 1948, a URSS apoiou o golpe de Estado do Partido Comunista na extinta Tchecoslováquia, operação também conhecida como “Golpe de Praga” ou “Fevereiro Vitorioso”, que permitiu àquele país se tornar a última nação europeia a integrar a “Cortina de Ferro”) -, não lograram antecipar a estratégia soviética no Extremo Oriente de armar e treinar os exércitos da China e da Coreia do Norte, permitindo, ao primeiro, a vitória na guerra civil de 1949, e, ao segundo, suas pretensões de unificação do território coreano, sob sua bandeira.
Ademais, as pretensões norte-coreanas, com apoio inicial de 50.000 soldados chineses, – viabilizando somar ao exército norte-coreano de 132.000 homens um efetivo total de 182.000, quase o dobro das pouco equipadas e mal treinadas forças sul-coreanas de menos de 100.000 efetivos –, além de um planejado (porém, abortado pela presença da 7ª Frota Americana no estreito que separa a ilha do continente) ataque chinês a Taiwan, não foram antecipados, em suas reais dimensões, pelos EUA.
Muito embora a URSS não contasse, à época, com poder militar e econômico para um confronto direto com Washington, – razão maior para seu “recuo estratégico” no apoio direto ao regime de KIM IL-SUNG (no total, apenas 26.000 efetivos soviéticos, em sua maioria pilotos e pessoal de apoio participaram diretamente do conflito coreano) –, Moscou soube muito bem manobrar não somente com a envergadura dos seus exércitos (não totalmente desmobilizados após o fim da Segunda Guerra Mundial), mas, particularmente, com uma política diplomática ardilosa e propositalmente dúbia e dissimulada, ainda que alguns estudiosos, em sentido diverso, concluam que STALIN tenha sido o verdadeiro “perdedor” do conflito coreano.
“Ironicamente, quem mais saiu perdendo com a Guerra da Coreia foi Stalin, que dera o sinal verde para Kim Il-sung iniciá-la e insistira com Mao, e até mesmo o chantageara, para intervir maciçamente. Encorajado pela aquiescência americana com a vitória comunista na China, ele havia calculado que Kim Il-sung podia repetir o padrão na Coreia. A intervenção americana frustrou esse objetivo. Ele insistiu na intervenção de Mao, esperando que esse ato criasse uma hostilidade duradoura entre a China e os Estados Unidos e aumentasse a dependência chinesa de Moscou.
Stalin estava certo quanto a sua previsão estratégica, mas errou gravemente em avaliar as consequências. A dependência chinesa da União Soviética era uma faca de dois gumes. O rearmamento da China empreendido pela União Soviética, no fim das contas, encurtou o tempo em que a China seria capaz de agir por conta própria. O cisma sino-americano que Stalin promovia não levou a uma melhoria das relações sino-soviéticas, tampouco reduziu a opção titoísta chinesa. Pelo contrário, Mao calculou que podia desafiar ambas as superpotências simultaneamente. Os conflitos americanos com a União Soviética eram tão profundos que Mao julgou não precisar pagar qualquer preço pelo apoio soviético na Guerra Fria; na verdade, achou que poderia usar isso como uma ameaça mesmo sem sua aprovação, como fez em inúmeras crises subsequentes. Começando com o encerramento da Guerra da Coreia, as relações soviéticas com a China se deterioraram, provocadas não em pequena parte pela opacidade com que Stalin encorajara a aventura de Kim Il-sung, a brutalidade com que pressionara a China a intervir e, acima de tudo, o modo relutante com que veio o apoio soviético, todo ele na forma de empréstimos reembolsáveis. Dentro de uma década, a União Soviética se tornaria a principal adversária da China. E, antes que mais uma década se passasse, outra reviravolta de aliança teria lugar.” (HENRY KISSINGER; Sobre a China, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2011)
Em necessária adição informativa histórica, resta registrar, por oportuno, que, em abril de 1975, a capital do Vietnã do Sul (Saigon) foi capturada pelo exército norte-vietnamita, encerrando o conflito no Sudeste da Ásia com a vitória do Vietnã do Norte. Encorajado pelo sucesso do comunismo na Indochina, o ditador norte-coreano, KIM IL-SUNG, interpretou o episódio como uma nova oportunidade de conquistar o sul da sua península. KIM visitou a China em abril daquele ano e se encontrou com MAO TSE TUNG e com ZHOU ENLAI, pedindo ajuda para uma futura incursão militar. Apesar das expectativas de Pyongyang, Pequim deixou claro que, com sua nova política distensiva com os EUA, iniciada com a histórica visita de NIXON em fevereiro de 1972, não tinha qualquer interesse em entrar em outra guerra na Coreia (cf. RIA CHAE; NKIDP e-Dossier No. 7: East German Documents on Kim Il Sung’s April 1975 Trip to Beijing, North Korea International Documentation Project, Woodrow Wilson International Center for Scholars).
Vale lembrar, por fim, que desde o armistício de 1953, houve vários desentendimentos e atos de agressão entre os dois países. Em 1976, dois soldados americanos foram mortos por norte-coreanos na zona desmilitarizada. Desde 1974, quatro túneis usados por norte-coreanos foram descobertos, sendo correto concluir que todos os túneis serviam de passagem para o sul. Em 2010, um submarino norte-coreano torpedeou e afundou uma corveta sul-coreana, o ROKS Cheonan, resultando na morte de 46 marinheiros (cf. North Korean Torpedo sank South’s Navy Ship: http://www.bbc.co.uk/news/10129703) e, ainda em 2010, a Coreia do Norte disparou vários tiros de artilharia contra a ilha de Yeonpyeong, matando dois militares e dois civis sul-coreanos (JACK KIM e JAE-WON LEE; North Korea Shells South in Fiercest Attack in Decades).
¹Ações Psicológicas
É cediço reconhecer que as denominadas ações psicológicas, de modo geral, são muito pouco exploradas pelo Ocidente. Em sentido diametralmente oposto, contudo, verifica-se que as mesmas ações psicológicas, inclusive com cunho estratégico, sempre foram e continuam a ser muito bem utilizadas pela China e, em grande medida, pela antiga União Soviética e sua atual sucessora, a Rússia de Vladimir Putin.
Durante a Guerra Fria, era extremamente comum tanto a China como a União Soviética empregarem ações psicológicas (em sua tradução mais elástica) para impor um poder perceptível muitas vezes superior ao poder militar real ou efetivo que ambas as potências desfrutavam naquele momento histórico. Destarte, a China, em particular, logrou extremo êxito em empregar ações psicológicas, sobretudo durante o governo de Mao Tse Tung (MAo Zedong), por ocasião da Guerra da Coreia (1950-53), nas crises do Estreito de Taiwan (1954 e 58) e nas Guerras da Indochina (1945-54 e 1964-75), permitindo, inclusive, a imposição de surpreendentes vitórias político-militares.
Em contraste, as potências ocidentais, na maioria dos conflitos, mesmo usufruindo de nítida superioridade militar, muitas das vezes não lograram a vitória final por não saberem explorar as ações psicológicas. Tal fato ficou muito evidenciado no conflito do Vietnã, envolvendo a França (1945-54) e, posteriormente, os Estados Unidos (1964-75), assim como no próprio conflito francês na Argélia (1954-61), em que, de uma certa forma, ocorreu, em especial, um efeito de encorajamento psicológico com a derrota francesa na Indochina em 1954.
As ações psicológicas expõem eventuais fraquezas do adversário e, mais do que isto, supervalorizam, na percepção do oponente, uma ideia de poderio militar (e de capacidade estratégica) muito superior do que efetivamente dispõe o contendor, tanto no teatro de operações como no campo estratégico-global.
Nesse sentido, não seria exagero concluir que também existe (dentro de um escopo de atuação própria) um efeito de assimetria reversa na própria ausência de exploração das ações psicológicas, por parte de um Estado que, em sentido oposto, sofre as consequências destas ações por parte do adversário.
²Superioridade Aérea no Conflito Coreano
Não obstante todas as eventuais controvérsias ainda existentes, especialmente de natureza estatística, não há qualquer dúvida que os EUA lograram estabelecer uma gradual e crescente superioridade aérea nos céus coreanos, durante sua participação no conflito, entre 1950 e 1953.
Como bem lembra ANDRÉ VARGAS (O Conflito que Quase Deu Início à Terceira Guerra, Aeromagazine, 2012, p. 1), copilando JORG FRIEDRICH (Yalu, Record, 2011), TOM CROUCH (Asas, Record, 2008), KENETH WERREL (Sabres over MIG Alley: The F-86 and the Battle for Air Superiority in Korea, Naval Institute Press, 2005), DAVID C. ISBY (Fighter Combat in The Jet Age, Harper Collins, 1997) e JAMES MICHENER (As Pontes de Toko-Ri), o primeiro combate aéreo na península coreana ocorreu em 8 de novembro de 1950, “quando russos e americanos se enfrentaram no primeiro confronto da era dos jatos. Naquele dia, o primeiro-tenente RUSSEL BROWN, do 16º Esquadrão de Interceptação (16th FIS) da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF), voando em formação a 20.000 pés com seu F-80C Shooting Star, avistou oito MiGs-15 Fagot cerca de 10.000 pés acima de sua altitude. A Guerra da Coreia estava em pleno curso. A missão dos MiGs do 28º Regimento de Aviação de Caça (Istrebeitel Aviatsionnaya Polk) era simples: decolar da Manchúria, cruzar o rio Yalu, na divisa da China com a Coreia do Norte, esperar os caças-bombardeiros (B-26 Invader, F-80C e, posteriormente, F-84 Thunderjet) e bombardeiros americanos (notadamente os B-29 Superfortress), mergulhar sobre eles utilizando canhões, subir usando a boa potência de seus motores e retornar à base, em Antung, evitando os interceptadores inimigos. O tenente BROWN tomou proveito do descuido de um MiG-15, que abandonou a cobertura de seu companheiro, permitindo aproximação. As metralhadoras .50 (12,7mm) do Shooting Star travaram logo após o início dos disparos, mas uma delas sustentou uma rajada de cinco segundos, que abateu o MiG. O que BROWN desconhecia é que sua vitória não havia sido contra um piloto chinês, como indicavam as marcações da aeronave. O caça abatido era comandado pelo tenente soviético Shchegolev. Naquele dia, os russos ainda abateram um P-51 Mustang, veterano a pistão da Segunda Guerra. E, assim, a batalha aérea prosseguiu por quase três anos.”
Uma nova vitória contra os MiG-15 ocorreu, logo em seguida, por parte de um F-9F Phanter da Marinha, não obstante também tratar-se de uma aeronave de desempenho inferior.
A decisão presidencial de restringir o conflito, com a destituição de McARTHUR (em 11 de abril de 1951), acabou por estabelecer a MiG Alley (a Alameda dos MiGs) ao longo da fronteira do rio Yalu, onde pilotos de ambos os lados exerceram suas habilidades e instintos como poucas vezes ocorreria novamente.
Conforme muito bem lembra ANDRÉ VARGAS (ob. cit., p. 2), em apoio às forças chinesas que atravessaram o rio Yalu, “JOSEPH STALIN enviou esquadrões de seu novo caça MiG-15 Fagot para tentar reverter o domínio americano nos céus, o que permitia o intenso bombardeio das tropas comunistas. STALIN desejava derrotar os EUA sem se expor desnecessariamente. Para tanto, optou por mandar suas esquadrilhas ‘incógnitas’ para as bases de Mukden, Amshan e Antung, na Manchúria. As aeronaves tiveram os caracteres em cirílico apagados das fuselagens e receberam novas pinturas com marcações em alfabeto romano. Era exigido silêncio absoluto no rádio para não denunciar a presença de russos no front e quem fosse abatido deveria cometer suicídio para não ser capturado. Em solo, os pilotos usavam roupas civis e, no ar, uniformes chineses. A intenção era defender a fronteira chinesa, principalmente contra os bombardeiros BOEING B-29 Superfortress, desgastando os americanos, enquanto chineses e norte-coreanos eram treinados para a guerra aérea. Antes da chegada dos russos, as esquadrilhas chinesas eram formadas por ultrapassados Yakovlev Yak-7, Yak-9 e Ilyushin Il-10 Shturmovik, adversários que os jatos F-80 Shooting Star, F2H Banshee, F9F Panther e F-84 Thunderjet, além do velho Gloster Meteor britânico, conseguiam superar sem dificuldade.”
Com a introdução do MiG-15, essa situação alterou-se, obrigando os EUA a enviar o mais avançado de seus caças, o F-86 Sabre, que havia realizado seu primeiro vôo em 1º de outubro de 1947 e sido entregue ao 1º Grupo de Caça da USAF, na Base Aérea de March, em fevereiro de 1949.
Os primeiros 19 Sabres, versão A, da 4ª Ala de Caça Interceptadores (4th Fighter Interceptor Wing), chegaram à Coréia em 16 de dezembro de 1950, revertendo a situação em favor dos EUA. Até junho de 1951, apesar da nítida inferioridade numérica, 90 F-86A se opunham a 450 MiG-15, com relativo sucesso em combates. Somente essa primeira unidade abateu 40 MiGs e danificou outros 71, com apenas seis perdas.
À medida que os encontros ficavam mais intensos, conforme leciona ANDRÉ VARGAS (ob. cit., p. 3-4), “as estritas regras de engajamento de ambos os lados foram ignoradas. Em muitas ocasiões, diálogos nervosos em russo foram captados pela fonia aliada. Os norte-americanos, por sua vez, eram expressamente proibidos de ultrapassar a fronteira da China, o que nem sempre era respeitado. Em busca hot pursuits, líderes americanos acompanhados de alas confiáveis entravam em silêncio de rádio fronteira adentro”. Na volta, as imagens das câmeras ligadas às metralhadoras sumiam misteriosamente, o que restou parcialmente comprovado pelo fato de que as bases da Manchúria eram constantemente protegidas por patrulhas aéreas.
O planejamento soviético previa um rodízio maior dos pilotos, uma vez que STALIN era temeroso de um conflito em suas fronteiras europeias. Já a USAF optou, por razões práticas, em sentido oposto, pelo rodízio restrito e dentro das próprias unidades. Segundo ANDRÉ VARGAS (ob. cit., p. 3-4), “do lado soviético, a rotatividade envolvia unidades inteiras, tornando virtualmente impossível o compartilhamento de experiências entre quem chegava e quem partia.”
É importante registrar que os americanos tiveram que desenvolver táticas para lidar com os MiGs, que chegavam do alto em grandes formações. Uma das alternativas criadas, recorda-se ANDRÉ VARGAS (ob. cit., p. 4), “foi a jet stream, tática em que uma esquadrilha se dividia em unidades menores, com quatro aviões (o four fingers, aperfeiçoado pelos alemães na Guerra Civil Espanhola), que se apoiavam mutuamente e, com intervalos de alguns minutos, atacavam a partir de diferentes altitudes, forçando a quebra da formação inimiga e atraindo o combate para altitudes mais baixas, onde o Sabre era reconhecidamente superior. Em contrapartida, os soviéticos adotaram a tática apelidada de bandit trains, com objetivo de anular os caça-bombardeiros aliados, principalmente os F-84 Thunderjets. Dotado de um motor Klimov melhorado, os MiG-15 BIS preferiam ignorar a escolta dos F-86, partindo direto contra o alvo prioritário em sucessivas vagas de ataque, o que anulava em parte a deficiência do modelo em altitudes mais baixas.”
A resposta foi o aperfeiçoamento dos F-80 (dotados de atenuadores hidráulicos similares aos usados em automóveis) e a chegada de novos Sabres, versão E (com novo desenho de cauda que lhe permitia manobras em alta velocidade e altitude; atenuadores eletro-hidráulicos; e motor mais potente). Em setembro de 1951, a superioridade desta nova versão do Sabre restou imediatamente estabelecida, sendo gradativamente acentuada com 39 MiGs derrubados em março de 1952 e mais 44 aeronaves no mês de abril do mesmo ano. No início de 1952, todos os F-80C foram substituídos por F-84E Thunderjet em missões de apoio tático e suporte (apoio aéreo aproximado), sendo certo que, no início de 1953, uma última versão do Sabre, o F-86F, iniciou suas operações derrubando um total de 308 MiGs e estabelecendo uma supremacia aérea plena nos céus da Coreia com a incrível marca de 77 MiGs derrubados em julho de 1953, sem qualquer perda de aeronaves F-86F naquele mês. No total, durante toda a extensão temporal do conflito, foram derrubados, em combates diretos, 800 MIG-15 Fagot B contra 78 F-86 Sabre.
Vale consignar que, na MiG Alley, como bem lembra ANDRÉ VARGAS (ob. cit., p. 4), “a disponibilidade de caças sempre foi maior do lado comunista. Em 275 combates registrados contra os Sabres, os MiGs estiveram em maioria em 197 deles. Mesmo assim, os aliados conseguiam extraordinária vantagem. Em 13 de dezembro de 1951, dois bandit trains com 150 MiGs falharam em abater um único Sabre e ainda acumularam 14 perdas.”
A partir de 1953, segundo ANDRÉ VARGAS (ob. cit. p. 4-5), “os aliados aprimoram suas capacidades, com novos radares de solo e a chegada da versão F do Sabre. Os ‘bandit trains’ foram reduzidos e entraram em ação unidades chinesas e norte-coreanas. Para piorar, a retirada das unidades soviéticas experientes prejudicou mais ainda os comunistas. A principal preocupação aliada era a presença na China de mais de 100 bombardeiros Ilyushin Il-28, capazes de carregar bombas nucleares, mas que jamais entraram em ação. O armistício assinado em 27 de julho de 1953 encerrou o conflito, manteve as fronteiras anteriores e deixou lições. A mais importante foi que a superioridade aérea norte-americana na MiG Alley não se traduziu, como se esperava, em uma inconteste ‘virada’ no conflito. O clima ruim, a insuficiência de aeronaves (incluindo a resistência de TRUMAN em transferir um maior número de Sabres das bases americanas e europeias) e a falta de precisão do armamento ar-solo prejudicaram uma força aérea que na guerra anterior era capaz de arrasar metrópoles. Na Coreia rural, tais alvos não existiam, ainda que a capital Pyongyang tenha sido completamente destruída pelos bombardeiros B-29. E, por fim, – e talvez o mais importante –, houve a impossibilidade política de atacar o inimigo além da fronteira a fim de destruir sua infraestrutura e barrar a ofensiva terrestre (uma limitação política que também seria vista no Vietnã, na década seguinte).”
É importante registrar, contudo, que o grande sucesso dos Sabres decorreu, acima de tudo, da superioridade tecnológica da aeronave, sobretudo a partir da introdução do F-86E, em fins de 1951, dotado de atenuador de controle eletro-hidráulico que lhe outorgava uma especial vantagem sobre os Fagots, mesmo em sua versão aperfeiçoada MiG-15 BIS, que possuía controles convencionais, dificultando o desempenho em rolagens e curvas e em altas velocidades, vantagem esta que se tornou definitiva com a chegada da versão “F” (com novos motores J-47 GF-33, com 2.680 Kgf de empuxo, em comparação ao J-47 GE-13, da versão “A”, com 2.359 Kgf de empuxo), ambas dotadas de uma mira A-1CM (acoplado a um radar Sperry K-14) de alta precisão, contra a mira convencional (semelhante a dos caças da Segunda Guerra) utilizada pelos MiG-15.
Porém, foi também marcante, conforme adverte ANDRÉ VARGAS (ob. cit., p. 5), “as diferenças entre as doutrinas americana e soviética. Os soviéticos, conforme já afirmado, preconizavam o contínuo rodízio de pilotos. STALIN estava preocupado com um ataque na Europa e queria pilotos experientes disponíveis. Já os americanos preferiam manter seus pilotos no front, em um esquema de rodízio, como mostrado no filme As Pontes de Toko-Ri, baseado em livro homônimo de JAMES A. MICHENER.”
Vale destacar que o MiG-15 foi construído, consoante ensina ANDRÉ VARGAS (ob. cit., p. 5-6), “para abater pesados bombardeiros americanos em grandes altitudes, como o B-29. O avião era dotado de três canhões – dois de 20 mm e um de 37 mm. Baseado em estudos alemães capturados após a Segunda Guerra, seu projeto só foi viabilizado após a desastrada venda à URSS, em 1947, de 25 turbinas britânicas Rolls-Royce Nene, que foram escancaradamente copiadas através de técnicas de ‘engenharia reversa’. De visual atarracado, o projeto de ARTEM MIKOYAN e MIKHAIL GUREVICH foi o primeiro jato bem-sucedido no emprego de asas enflechadas. Ao chegar ao front coreano, o MiG era capaz de abater tudo que fosse americano ou britânico. Lentos e de asa reta, os caças americanos F-80 Shooting Star, F-84 Thunderjet e F-9F Panther só obtinham sucesso diante do treinamento superior das tripulações estadunidenses. Seu grande inimigo, o Sabre, era derivado de um projeto da Marinha, o FJ-1 Fury, que tinha asa reta. A USAF propôs um caça similar à North American, que incluiu, após a apresentação do projeto, uma asa enflechada a 35º. A alteração surgiu depois da captura de estudos alemães que levaram ao Me-262, no final da Segunda Guerra. As novas asas proporcionavam mais velocidade sem significativo aumento de potência e, consequentemente, de peso. O Sabre voou pela primeira vez em 1º de outubro de 1947. Na Coreia, a versão derradeira que estabeleceu a supremacia aérea, no final do conflito, conforme já afirmado, foi o F-86F. Na prática, ambos os caças apresentavam relativas inadequações para suas missões, a começar pela baixa autonomia, primordial para a interceptação de longa distância, escolta de bombardeiros e superioridade aérea. Poderosos, os canhões dos MiGs tinham uma cadência lenta demais para engajar os Sabres, que ficavam apenas por segundos enquadrados em suas alças de mira. Por sua vez, os jatos americanos, muito estáveis no combate ar-ar, possuíam uma mira A-1CM, acoplada ao radar Sperry K-14, capaz de disparos deflexivos (disparos em diversas direções em modo de divergência), mas suas seis metralhadoras de 12,7 mm (.50) muitas vezes deixavam o adversário escapar por falta de alcance e poder destrutivo. Mais leve, o MiG-15 subia melhor, alcançava qualquer adversário acima de 10.000 metros e, exceto em altas velocidades (em função da ausência de atenuadores), fazia curvas mais fechadas. Já o Sabre era mais rápido em voo nivelado, tinha melhor desempenho em baixa altitude e alta velocidade. Uma característica fundamental no dogfight pendia a favor do Sabre, – particularmente nas versões “E” e “F” –, que conseguia alcançar seu oponente em mergulho. Por sua vez, o MiG-15 também era direcionalmente instável em grandes altitudes, tinha baixa taxa de rolagem e a triste peculiaridade de travar o manche quando em mergulho acentuado.”
Apesar da superioridade tecnológica dos F-86E/F (a versão “A” empatava, na prática, com o rival MiG-15), os Fagots tiveram relativo sucesso na guerra, particularmente pela grande superioridade numérica no teatro de operações coreano, limitando, sobremaneira, a efetividade dos bombardeiros B-29 Superfortress norte-americanos em missões de interdição e dos F-84 Thunderjets em operações de apoio tático e suporte.
O Mig-15 Fagot é considerado o jato mais construído da história, com 18.000 unidades fabricadas, sendo 15.000 na antiga URSS e, estima-se, mais 3.000 em países satélites. Foi operado em diferentes versões por 42 países. Em comparação com os F-86 Sabre (construído em um total de 9.812 unidades), seu primeiro voo ocorreu em 30 de dezembro de 1947 (10 de outubro de 1947 para os Sabres), seu peso máximo de decolagem era de 6.045kg (8.061kg para os Sabres), sua velocidade máxima era de 1.075km/h (1.106 km/h para os Sabres) e tinha um alcance de 1.975km (2.120km para os Sabres).
*Reis Friede é Desembargador Federal, Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e Professor Honoris Causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR). Site: https://reisfriede.wordpress.com/. Correio eletrônico: reisfriede@hotmail.com
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