
Uma análise da crise diplomática Brasil-EUA sob os níveis individual, doméstico e sistêmico, propondo estratégias racionais, técnicas e apartidárias para superá-la, evitando contaminação interna e buscando mediação eficaz.
Introdução
A recente deterioração das relações entre Brasil e Estados Unidos revela um quadro diplomático delicado, marcado por episódios sucessivos e crescentes de tensão. A imposição de tarifas comerciais sobre produtos brasileiros, a suspensão unilateral de vistos de autoridades nacionais e a negativa de diálogo formal por parte da diplomacia norte-americana indicam uma ruptura que transcende o habitual desacordo entre governos.
Diante dessa conjuntura, este artigo propõe uma análise estrutural da crise sob os três níveis clássicos das Relações Internacionais — individual, doméstico e sistêmico — com o objetivo de identificar caminhos estratégicos que permitam ao Brasil enfrentar o impasse com sobriedade e racionalidade institucional. O argumento central é que a resolução efetiva do conflito depende de uma atuação sistêmica e coordenada, capaz de evitar a contaminação da política externa por disputas internas e personalizações político-eleitorais.
A exploração do nacionalismo como ferramenta de mobilização política, bem como acusações de traição e tentativas de responsabilização criminal de agentes públicos, intensifica os ruídos internos e amplia os riscos de escalada. Ao projetar para o plano internacional as tensões e polarizações domésticas, o Brasil corre o risco de comprometer sua capacidade de negociação, para algo que precisará ser efetivamente negociado. Sem isso, perderemos margem de manobra e nos aproximaremos perigosamente de um isolamento diplomático autoinduzido.
Diagnóstico Multinível da Crise
A crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos exige uma leitura estruturada que ultrapasse análises pontuais e permita compreender suas dimensões interdependentes. Utilizando os três níveis clássicos de análise das Relações Internacionais — o individual, o doméstico e o sistêmico — é possível identificar os fatores que tensionam o cenário e os riscos que emergem caso não sejam corretamente compartimentalizados.
Nível Individual
No plano individual, figuras como Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Alexandre de Moraes, Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump se tornaram protagonistas diretos ou indiretos da crise. A revogação de vistos diplomáticos e familiares, a retórica presidencial norte-americana e as reações brasileiras geraram uma dinâmica de responsabilização pessoal. No Brasil, de um lado, há denúncias de “traição” cometida por bolsonaristas e tentativas de criminalização passaram a ser exploradas como instrumentos políticos internos. De outro, alegações de comportamento antidemocrático e falhas na gestão da política externa tem sido explorados.
Contudo, é essencial sublinhar que disputas dessa natureza devem permanecer restritas às esferas institucionais competentes no nível doméstico — como o Judiciário ou o Legislativo — evitando o transbordamento para o plano externo, onde podem fragilizar a posição brasileira e comprometer a possibilidade de resolução diplomática.
Nível Doméstico
No nível doméstico, a crise foi rapidamente absorvida pela polarização política, servindo como combustível para narrativas de desgaste institucional e agendas eleitorais. O uso da crise como palanque para as eleições de 2026, por ambos os lados, evidencia uma tentativa de instrumentalização do episódio em favor de disputas internas.
Mais preocupante, no entanto, é a exploração do nacionalismo como ferramenta política. Ao transformar a crise em confronto identitário, a retórica nacionalista pode consolidar posturas de enfrentamento emocional, radicalizando o discurso e tornando a resolução diplomática significativamente mais difícil no plano internacional.
A crise política interna não pode contaminar a crise política externa. Elas devem ser tratadas de forma compartimentada, evitando uma politização internacional da crise.
Geopoliticamente as crises externas, ou seja, aquelas verificadas no nível do sistema internacional, somente podem ser resolvidas de duas formas: pelo poder e pela cooperação.
Nível Sistêmico
O nível sistêmico é o nível do tabuleiro internacional, onde se joga o jogo da geopolítica.
Uma sobreposição entre conflitos internos e desafios externos impõe ao Brasil a necessidade de redefinir sua abordagem diplomática. É preciso enxergar a crise como fenômeno do sistema internacional e, portanto, tratá-la com ferramentas compatíveis com sua escala e complexidade.
Neste sentido, uma análise no plano sistêmico revela que o Brasil enfrenta um cenário adverso. O descompasso entre sua capacidade estratégica e a postura assertiva do governo norte-americano limita a margem de ação autônoma. Tensões como a possível aplicação da Lei Magnitsky, a imposição de sanções comerciais e o isolamento diplomático constituem ameaças concretas de escalada.
Além disso, a administração Trump tem mostrado baixa disposição para a cooperação multilateral, o que fragiliza canais tradicionais como OMC, ONU e BRICS. No caso dos BRICS, a vinculação brasileira pode ser interpretada por Washington como um alinhamento político indesejado, o que, diante do perfil unilateralista da atual administração norte-americana, contribui para agravar o quadro.
Ainda assim, é possível que ações discretas e juridicamente fundamentadas nesses fóruns tenham papel complementar — desde que não sejam conduzidas como gestos políticos públicos ou ideológicos.
A única forma de conter o agravamento da crise no nível sistêmico parece decorrer de uma atuação racional, institucional e cuidadosamente descolada dos ruídos domésticos, de ordem nacionalista e emocional. Misturar níveis de análise equivale a abrir mão da capacidade de negociação sistêmica — e pode levar ao aprofundamento de um impasse de difícil reversão.
O paradigma básico da resolução de crises internacionais se apoia em dois pilares tradicionais da geopolítica: o poder e a cooperação. Sendo uma potência regional, o Brasil não dispõe de instrumentos estruturais — político, econômico ou militar — para adotar uma estratégia de confronto direto.
Resta, portanto, o uso inteligente do soft power e o investimento em uma diplomacia sofisticada, com destaque para uma ferramenta até então pouco explorada: a diplomacia presidencial. O contato direto entre chefes de Estado, especialmente em contextos de alta tensão como o atual, pode abrir canais informais de negociação, permitir a mediação de impasses e sanar mal-entendidos gerados por declarações públicas à imprensa — um dos principais elementos que têm alimentado esta crise.
O histórico de diálogo pessoal entre outros líderes internacionais e Donald Trump, em crises conhecidas com líderes europeus, mexicanos, canadenses e com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, demonstrou que a interlocução direta no mais alto nível pode ser o caminho mais eficaz para a resolução de disputas comerciais, tensões institucionais e impasses diplomáticos gerados pela condução personalista do presidente norte-americano. Em momentos como este, é a racionalidade e a responsabilidade de Estado — não a retórica emocional, nem interesses conjunturais — que devem orientar a atuação diplomática brasileira.
Estratégias para Descontaminar a Solução Sistêmica
A persistência da crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos exige mais do que reação política: impõe a adoção de estratégias refinadas que preservem o campo internacional da contaminação por disputas domésticas. A separação dos níveis de análise não é apenas um recurso teórico, mas uma exigência prática para restaurar a capacidade negociadora do Brasil no sistema internacional.
Compartimentalização Institucional
A primeira medida essencial é a compartimentalização institucional das agendas. Temas sensíveis — como responsabilizações políticas, investigações por suposta traição ou condutas antidemocráticas — devem ser debatidos e julgados exclusivamente no nível doméstico, por canais jurídicos e institucionais adequados. Sua migração para o plano diplomático não apenas inviabiliza interlocuções técnicas, como também reforça narrativas externas de instabilidade política.
A gestão da crise exige, portanto, a criação de estruturas específicas e blindadas para condução das relações internacionais, com baixa exposição política e alta credibilidade técnica. O Brasil deve evitar que disputas internas interfiram em negociações com impacto sistêmico, que é justamente o caso da crise ora vivida.
Essa compartimentalização permite à política externa operar com racionalidade, protegida do ciclo eleitoral e do conflito ideológico, permitindo que a atuação diplomática, particularmente da diplomacia presidencial, se constitua uma estratégia indispensável para reconstruir pontes diplomáticas e buscar saídas eficazes para o impasse.
Contenção da Retórica Nacionalista
Em momentos de tensão diplomática, a retórica nacionalista tende a se intensificar como recurso político interno — especialmente em cenários polarizados e em proximidade com ciclos eleitorais. A crise entre Brasil e Estados Unidos fornece terreno fértil para esse tipo de narrativa, que mobiliza setores da opinião pública em torno de supostas ameaças externas, exaltando a soberania nacional e convertendo o conflito em disputa simbólica.
Apesar do apelo imediato, esse tipo de discurso apresenta um risco estratégico elevado. Ao transformar uma crise diplomática em confronto identitário, o nacionalismo emocional desloca o foco da racionalidade institucional e conduz o país para posturas de enfrentamento que comprometem canais de negociação e cooperação. A escalada retórica fragiliza a imagem internacional do Brasil, aumenta sua vulnerabilidade comercial e dificulta a articulação de soluções técnicas junto a parceiros externos e organismos multilaterais.
Para evitar esse cenário, é necessário frear a exploração política do nacionalismo e promover uma comunicação pública orientada pela diplomacia de Estado. O discurso oficial deve ser calibrado para reafirmar os interesses nacionais de forma firme, mas não beligerante — demonstrando responsabilidade, maturidade institucional e respeito às normas internacionais. O Estado brasileiro deve resistir à tentação de reagir com palavras inflamadas a pressões externas e optar por uma estratégia de contenção discursiva, que proteja sua imagem e preserve suas margens de manobra.
Diplomacia Técnica e Silenciosa
Diante de um cenário internacional marcado por assimetrias de poder e reações imprevisíveis, especialmente sob a administração Trump, a condução diplomática brasileira deve priorizar uma abordagem técnica, discreta e estrategicamente calibrada. A exposição excessiva, particularmente no nível presidencial, seja por meio de discursos públicos ou por enfrentamentos midiáticos, pode agravar a crise e reduzir o espaço de manobra institucional.
A diplomacia silenciosa consiste em articular canais informais e negociações reservadas com interlocutores confiáveis — tanto no campo bilateral quanto multilateral — para reconstruir pontes sem ampliar o custo político da retomada. Países moderadores, como o Chile ou a Alemanha, podem desempenhar papel importante como mediadores indiretos, criando espaços de aproximação com Washington sem gerar repercussões indesejadas.
Além disso, é fundamental que os protagonistas desse esforço sejam diplomatas de perfil técnico e baixa exposição partidária. A composição da equipe que lidera o processo deve inspirar confiança internacional e afastar qualquer percepção de interferência ideológica, garantindo que o Brasil se apresente como um ator racional, pragmático e comprometido com a estabilidade sistêmica.
Uma atuação silenciosa, nesse caso, não significa passividade — mas sim inteligência estratégica. Ao se resguardar das pressões internas e evitar declarações precipitadas, o Brasil preserva sua capacidade de interlocução e evita o risco de ser enquadrado como antagonista ativo, especialmente por uma liderança estrangeira que valoriza o confronto como parte de sua gramática política.
Cooperação Estratégica e Não-Ideológica
Apesar das limitações impostas pela conjuntura internacional e pelo perfil unilateralista da administração Trump, o Brasil ainda dispõe de caminhos diplomáticos que, se bem calibrados, podem contribuir para mitigar os impactos da crise. O acionamento de fóruns multilaterais — como a OMC, a ONU ou mesmo o BRICS — deve ser pensado de maneira estratégica, com ênfase em argumentos técnicos, jurídicos e comerciais, e não em posicionamentos políticos ou ideológicos, que podem agravar a crise.
A cooperação internacional, quando conduzida com sobriedade e respaldo institucional, pode gerar efeitos indiretos relevantes: mobilizar outros países em defesa de práticas comerciais justas, denunciar medidas unilaterais abusivas e preservar a imagem brasileira como ator comprometido com o diálogo e as normas internacionais. Contudo, qualquer tentativa de transformar essa via em palco para disputas narrativas ou confrontos retóricos tende a aumentar o isolamento do Brasil e alimentar ainda mais o antagonismo com Washington.
É necessário, portanto, que o Brasil estruture sua ação cooperativa de forma não provocativa — com foco no fortalecimento de sua posição sistêmica e na preservação de canais legais e diplomáticos. A adesão a mecanismos internacionais deve ser utilizada como instrumento de proteção institucional e de recomposição estratégica, e não como mecanismo de confronto simbólico. A cooperação, quando desvinculada de ideologias e alicerçada na diplomacia de Estado, pode se converter na principal ferramenta de resgate da normalidade diplomática.
Mediação como Ferramenta Estratégica: Caminhos em um Cenário de Pontes Queimadas
A ausência de um canal de interlocução direta entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump representa um dos principais obstáculos à construção de uma saída diplomática para a crise. Historicamente, o estilo de negociação adotado por Trump privilegia relações personalizadas, informais e de alta centralidade executiva. Nesse contexto, lideranças estrangeiras que lograram avanços significativos em crises anteriores — como Vladmir Putin, Volodymyr Zelensky, Benjamin Netanyahu, Andrés Manuel López Obrador e Emmanuel Macron — o fizeram sobretudo por meio de contato direto e pessoal com o presidente norte-americano.
O desafio brasileiro é que grande parte dos potenciais interlocutores internacionais para uma mediação Brasil-EUA encontra-se, hoje, politicamente distanciada do Brasil. Os presidentes da Argentina e do Chile enfrentam atritos recentes com o governo brasileiro; Netanyahu mantém relação fria com Brasília após reorientações diplomáticas sobre o conflito palestino; e lideranças do BRICS têm sido tratadas com desconfiança por Washington. Na prática, os principais canais informais já estão comprometidos — o que limita a possibilidade de uma mediação tradicional.
A mediação, nestas circunstâncias, não é uma opção tradicional — é uma engenharia diplomática complexa que exige criatividade, sobriedade e profunda consciência das limitações impostas pelo cenário. Se conduzida com discrição e racionalidade, pode ser o ponto de virada que o Brasil precisa para desescalar a crise e recuperar sua margem de negociação no sistema internacional.
Ainda assim, é possível vislumbrar alternativas que, embora não ideais, podem cumprir função estratégica importante:
Interlocutores Técnicos
Ex-Diplomatas Brasileiros de Perfil Técnico e Reconhecimento Externo: figuras como Rubens Ricupero ou Celso Lafer poderiam ser acionados como ponte institucional, capazes de abrir diálogo com figuras do establishment norte-americano que orbitam Trump. A credibilidade desses nomes permitiria dissociar a mediação da arena partidária e focar exclusivamente em soluções técnicas e comerciais.
Empresários com Trânsito Internacional: Nomes como Jorge Paulo Lemann, Roberto Setúbal ou Fábio Barbosa possuem reputação sólida junto a instituições norte-americanas e poderiam atuar como facilitadores discretos, sobretudo na agenda econômica. A mediação via setor privado tem menor risco político e pode gerar resultados mais rápidos e pragmáticos.
Mediação Funcional e Não Oficial: Ao invés de nomear um “mediador”, o Brasil pode investir na construção de um ambiente informal de diálogo, acionando múltiplos atores que tenham acesso lateral a Washington — como acadêmicos, think tanks ou jornalistas influentes. A inteligência diplomática está em mapear esses canais não institucionais e ativá-los com precisão narrativa, evitando qualquer sinal de confronto ou submissão.
Mediação como uma Solução Construída: Diante da rarefação de canais formais e do desgaste político com potenciais interlocutores externos, a habilidade do Brasil em ativar alternativas discretas e técnicas será determinante para evitar que a crise evolua para um impasse sistêmico e de difícil reversão.
Conclusão
A crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos constitui um teste decisivo à maturidade institucional do Estado brasileiro. Em meio a pressões internas, disputas de protagonismo político e um cenário internacional marcado pela imprevisibilidade e pela assertividade unilateral da administração Trump, torna-se imperativo que o Brasil adote uma postura racional, técnica e sistemicamente orientada.
A análise multinível revela que os principais riscos da crise não estão apenas no enfrentamento externo, mas na tendência de sua contaminação por disputas domésticas e personalizações políticas. A sobreposição entre os níveis individual, doméstico e sistêmico compromete a capacidade de ação estratégica e coloca o país em posição de vulnerabilidade — tanto diante de sanções concretas como no plano simbólico da diplomacia internacional.
As estratégias delineadas ao longo deste artigo apontam caminhos viáveis para reequilibrar a condução da política externa brasileira: compartimentalização institucional, contenção da retórica nacionalista, reativação da diplomacia técnica e silenciosa, construção de cooperação não ideológica e desenvolvimento de vias alternativas de mediação. Ainda que pontes tenham sido queimadas, há margem para reconstrução — desde que o esforço seja liderado por atores com credibilidade e respaldado por uma lógica de Estado, e não de governo.
A crise Brasil–EUA não demanda bravura política nem reação emocional — exige atuação no nível de análise apropriado: o nível do sistema internacional.
E para tal, será necessário lançar mão de engenharia diplomática, inteligência estratégica e responsabilidade sistêmica. Se o Brasil for capaz de fazer essa distinção e sustentar a atuação em níveis apropriados, poderá não apenas desescalar o conflito, mas reafirmar sua relevância como ator confiável no sistema internacional, evitando confrontos retóricos e práticos, que em nada contribuem para a sua resolução.









O autor não destaca o quanto a política de relações internacionais implantada pelos governos petistas, desde o primeiro mandato em 2003, é consistentemente hostil aos EUA, variando apenas o grau retórico, a prática comercial e política.
O presidente Obama, que uma vez elogiou Lula, mudou completamente de opinião e isto, partindo do símbolo maior da esquerda do partido democrata norte americano, é mais do que meramente simbólico.
Anda que a interferência do governo Biden nos processos eleitorais brasileiros pudesse ser vista como apoio democrata a esquerda brasileira, em verdade simbolizava muito mais o compromisso globalista em combater adversários de tal política, tal como o governo Bolsonaro era então visto.