O alto preço da soberania: fronteira e insurgência

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Mapa constata a presença de grupos armados na região amazônica. Estados falidos, instabilidade e baixa presença estatal tornam os locais verdadeiros atrativos para grupos armados (https://infoamazonia.org/).

Mapa constata a presença de grupos armados na região amazônica. Estados falidos, instabilidade e baixa presença estatal tornam os locais verdadeiros atrativos para grupos armados (https://infoamazonia.org/).

Ausência de ordem permite a instalação do caos, ou, nas palavras do comandante-geral da PMESP, coronel PM Cássio Araújo de Freitas, “não há progresso sem ordem”.


O termo “soberania” é constantemente citado quando são mencionadas as prerrogativas das posturas tomadas por autoridades nacionais. Uma nação soberana, portanto, teria seus dirigentes tomando suas decisões, com amplos reflexos que extrapolam o período em que as emitem, não raramente com efeitos regionais, políticos, diplomáticos e comerciais (entre vários outros) de longo prazo.

Dentro dessas prerrogativas encontra-se aquela de fomentar maior ou menor foco no empenho e fortalecimento da máquina pública (e, portanto, da governança estatal) em setores específicos. A Defesa e a Segurança Pública (que, por várias questões, podemos falar que andam de mãos dadas em diversos aspectos práticos) são áreas onde o efetivo investimento, fortalecimento e incentivo para permanência de bons quadros, acabam por impactar o cotidiano de toda nação, mesmo que fuja à compreensão de uma maioria a imensa importância de uma mera ação de presença e/ou fiscalização.

Podemos citar um exemplo da importância da missão de “preservar a soberania” de décadas atrás, quando integrantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) atacaram um pequeno contingente do Exército Brasileiro (EB) em ambiente amazônico.

No dia 26 de fevereiro de 1991, cerca de 40 terroristas do autodenominado Comando Simón Bolívar adentraram ao território brasileiro (estado do Amazonas, região próxima à fronteira com a Colômbia) e atacaram 17 militares do EB em seu posto às margens do Rio Traíra. Garimpos ilegais forneciam parcela expressiva do financiamento das atividades daquele grupo terrorista e, o EB, cumprindo sua missão, estava atuando de forma incisiva inibindo esse tipo de ilícito. A soberania de uma nação custa caro e esse preço normalmente é pago por poucos: três militares brasileiros foram mortos e nove restaram feridos.


Ataque a fração do Exército Brasileiro na Amazônia (O Estado de São Paulo, edição de 2 de março de 1991).

A notícia (considerando o cenário em que ocorreu a ação) demorou alguns dias para ser divulgada pela imprensa brasileira. Mas a resposta estatal foi rápida e eficaz. Unidades extremamente especializadas do EB foram enviadas para o local. Guerreiros de selva e elementos de Forças Especiais, entre outros, fizeram-se presentes, assim como meios de aviação (do Exército). Aeronaves de transporte, de asas rotativas e algumas adequadas para missões de ataque (AT-27 Tucano) foram destacadas pela Força Aérea Brasileira (FAB) para apoio, bem como a Marinha do Brasil (MB) deu suporte à “Operação Traíra” que começava a entrar em curso. Contatos de alto nível entre o governo brasileiro e o colombiano foram feitos. Por sinal, pelo lado colombiano, uma unidade no valor de batalhão foi inicialmente destacada.

O resultado foi uma vitória retumbante e inegável frente às forças irregulares. Terroristas foram mortos ou aprisionados. A maior parte do armamento e material subtraído (do posto do Exército) foi recuperada. Ficou claro que a soberania seria defendida. Interessante lembrar que, dias após a divulgação do ataque, foi também noticiado que se sabia da existência de vários grupos irregulares por aquela região.


Notícia mostra que, em 1991, já era reconhecida a presença de grupos irregulares na região amazônica (O Estado de São Paulo, edição de 8 de março de 1991).

Tempos depois, as FARC (ao menos uma parte) migraram para outra arena: a política. Um acordo de paz foi assinado com o governo em 2016 na tentativa de encerrar um conflito que atravessou décadas deixando, ao menos, 260 mil mortos e milhões de pessoas direta ou indiretamente afetadas. Tornaram-se, em 2017, o partido da Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC). Conhecido também como “Partido da Rosa”, sua primeira experiência eleitoral (nos idos de 2019) foi definida pela mídia como “um miserável fracasso”.


Símbolo do Partido Comunes, anteriormente Força Alternativa Revolucionária do Comum (Fuerza Alternativa Revolucionaria Del Común, FARC), fundado por ex-integrantes do grupo terrorista FARC-EP, Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pueblo. O símbolo FARC era o adotado quando da designação inicial do partido (Wikipedia).

O fracasso eleitoral foi acompanhado de discussões internas, dissidências e, como rotina, mortes. Muitas mortes.

Nem todos os, como definidos pela mídia, “ex-combatentes” ficaram satisfeitos com o acordo de paz e, menos ainda, deixaram as armas. Continuaram o conflito e associaram-se a outros grupos (ou por vezes, criaram novos inimigos), recorrendo principalmente ao tráfico de drogas e mineração ilegal como fontes de financiamento (entre várias outras formas de ilícito). Em uma rede social, informaram em 2021 que mudaram a designação do partido para “Comunes”. Uma nova capa para um velho miolo. Partindo da premissa que as “páginas que constituem o livro” são as mesmas, quais seriam os valores defendidos, na arena política, por aqueles (e seus simpatizantes) que durante décadas se valeram da luta armada, do sequestro, da associação com grupos criminosos, do terrorismo e da violência para fazer valer “suas razões”?

A organização internacional Save The Children (fundada em 1919, com sede em Londres) em 2022 passou a alertar a respeito do alistamento forçado de crianças para atuar como “soldados” em forças irregulares na Colômbia. Sobre isso, elucida:

Em 2021, a Save The Children registrou pelo menos dois casos de recrutamento de crianças por mês nas regiões de Norte de Santander, Nariño e Arauca. Isso segue a tendência crescente de casos registrados por organizações da sociedade civil, que registraram um aumento de 11% no último ano.

Infelizmente, em janeiro de 2022, comunidades em Nariño e outros departamentos como Arauca, Valle del Cauca e Cauca foram afetadas pelo aumento da violência de grupos armados. Em Nariño, eles proibiram o acesso a serviços básicos que afetavam 18.000 pessoas, incluindo crianças. Eles também impuseram o fechamento de lojas e escolas, suspenderam as ligações de transporte fluvial (…).

Crianças-soldados são meninos e meninas forçados a se tornarem combatentes involuntários. Muitos deles são forçados a lutar nas linhas de frente, enquanto outros são usados para trabalhar como cozinheiros, mensageiros, escravos sexuais e até mesmo como homens-bomba.

Como uma organização humanitária (…) nosso trabalho (…) beneficiou 31.659 crianças e mais de 12.000 adultos que foram afetados por deslocamento forçado, massacres, confinamento, restrições de mobilidade e efeitos socioemocionais.” (Recrutamento de crianças na Colômbia: medo no rio. Save The Children, 2022).

A Save The Children foi criada com a finalidade de mitigar a fome de crianças ao final da Primeira Guerra Mundial na Europa, possuindo grande experiência na atuação em cenários pós-conflitos.

Já em 2023, a organização sem fins lucrativos de jornalismo investigativo InSight Crime, esclarecia que, desde 1962, a Colômbia havia registrado aproximadamente 16.900 casos de recrutamento de crianças. Em sua maioria, possuem entre 12 e 17 anos (12.950 casos), sendo que 49,7 % eram estudantes e 26,6% meninas. O Exército de Libertação Nacional (ELN) foi o responsável por, pelo menos, 24 casos de recrutamento forçado de crianças entre 2021 e 2023, havendo a circunstância de admissão desse tipo de conduta, também, por um integrante das Autodefesas Gaitanistas da Colômbia (AGC, mais conhecidas como o infame Clan del Golfo).

Mas, passemos a uma consideração mais prática: o que mudou, naquela região, nessas três décadas após a Operação Traíra? Das lições duramente aprendidas (e caras para alguns poucos), o que evoluiu no cenário? Talvez melhor: o quanto se fomentou para que a soberania de nações fosse fortalecida e mitigada a presença de grupos irregulares, sabidamente parceiros de Organizações Criminosas Transnacionais?

A resposta mais rápida para tais questionamento pode ser visualizada em um mapa interativo. Levando o cursor para o município de São Gabriel da Cachoeira-AM, percebemos naquele que é o terceiro maior município em extensão territorial do Brasil (o maior é Altamira, no Pará, e o segundo maior é Barcelos, no Amazonas) a indicação de alguns nomes que deveriam causar inquietação. São eles: Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Ejército de Liberación Nacional (ELN) e Facción Disidente de las FARC Acacio Medina (Segunda Marquetalia). Suas atividades vão do tráfico de drogas e armas à mineração ilegal. Já no segundo maior município em extensão (Barcelos), é indicada a presença do PCC, CV, Terceiro Comando Puro (TCP) e Crias da Tríplice. Os últimos (Crias) seriam uma organização criminosa relativamente nova quando comparada às demais citadas, formada por brasileiros, peruanos e antigos integrantes do grupo colombiano Alcateia (o termo “tríplice” é em alusão à fronteira Colômbia, Brasil e Peru, chamada de Três Fronteiras, Tres Fronteras e, em ticuna, Tamái-pi três Nazones, onde se localiza o município brasileiro de Tabatinga, o colombiano de Leticia e o peruano de Santa Rosa de Yavarí).

Em Japurá-AM, município fronteiriço com a Colômbia, além do CV, é indicada a presença da Estructura Jorge Briceño, pertencente ao Estado Mayor Central (EMC, dissidência das FARC), Estructura Miller Perdomo e Frente Carolina Ramirez.

Para elucidar, Jorge Briceño Suárez (cujo verdadeiro nome é Víctor Julio Suárez Rojas), também conhecido como Mono Jojoy, foi um integrante das FARC morto em 2010 na Colômbia, no departamento de Meta, na localidade de La Macarena (a Colômbia é constituída, do ponto de vista político-administrativo, por 32 Departamentos e um Distrito Capital, possuindo aproximadamente 1.120 municípios). Miller Perdomo (nome verdadeiro Vladimir González Obregón), também integrante das FARC, foi morto em 1999. O nome da Frente Carolina Ramírez se deve à primeira guerrilheira a cair em combate (contra os dissidentes).

O mapa em questão é o Amazon Underworld (Submundo da Amazônia) e pode ser consultado no site Amazon Underworld. O trabalho de mapeamento detectou a presença de grupos armados (incluindo organizações criminosas transnacionais) em 242 dos 348 municípios das regiões fronteiriças amazônicas da Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, ou seja, a indesejável presença destes em 69,5% dos municípios. O site Infoamazonia também possibilita acesso a estas informações.


Mapeamento da presença de grupos armados na região amazônica (Infoamazonia).

Curiosamente, o nome Marquetalia (quando citamos anteriormente a Facción Disidente de las FARC Acacio Medina, componente da Segunda Marquetalia) pode ser encontrado com especial destaque no site do Partido Comunes, fazendo alusão à “resistência camponesa” e ao sistema socialista marqueteliano. Trata-se da região para onde Manuel Marulanda dirigiu-se com 48 famílias para “cultivar a terra e praticar autodefesa” em uma terra onde “ninguém era dono e era administrada coletivamente”.

Manuel Marulanda Vélez (cujo verdadeiro nome era Pedro Antonio Marin) foi um dos principais líderes das FARC-EP. Esse enclave era conhecido extraoficialmente como “República de Marquetalia” e era mantido por guerrilheiros comunistas camponeses. Novamente, o governo colombiano iniciou conversações para alcançar a paz, no presente ano. A Segunda Marquetalia se sentará para dialogar (com o governo) em Havana (Cuba), tendo as negociações ocorrido, inicialmente, na Venezuela.

O conhecimento e a divulgação de informações em relação a presença de grupos armados na região amazônica é algo que já ocorreu, também, em passado recente. Em 2019, o excelente InSight Crime já havia informado sobre a presença de grupos armados em território amazônico, havendo a difusão de mapa a respeito destes na Venezuela.

É fato que esses grupos acabam tendo parcerias por interesses. Apesar de ser um cenário facilmente mutável (o parceiro de hoje ser o inimigo de amanhã) é algo preocupante e transcende fronteiras (bem como soberanias). O lucro e seus interesses em primeiro lugar (ao custo de vidas e da desgraça que ocorre em locais por vezes longínquos).


Presença de grupos dissidentes das FARC na Venezuela (e área de fronteira com o Brasil), resultado de anos de parceria com organizações criminosas transnacionais (Insight Crime).

A mídia leiga já havia noticiado, anos atrás, da guarida dada por um desses grupos terroristas a um integrante de alta hierarquia do Comando Vermelho. Posteriormente, após anos de “entendimentos comerciais”, o líder das FARC acabou sendo morto em uma operação militar colombiana na região de Caguán, a aproximadamente 400 km ao sudoeste de Bogotá. Falamos de “Negro Acácio”, cujo verdadeiro nome era Tomás Medina Caracas. Com Negro Acácio fora de ação (após seis anos de parceria com o Comando Vermelho e Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar), a então Frente 16 das FARC passa a ser liderada por John 40 (Gener García Molina). Com o passar do tempo esse grupo passa a se chamar Frente Acácio Medina, e torna-se um dissidente das FARC, tendo continuado a operar. Segundo publicado no Insight Crime, o grupo continuou atuando a partir do estado do Amazonas, no sul da Venezuela, angariando influência transnacional, controlando o tráfico de drogas e a mineração ilegal. Por sinal, a Frente 16 tinha como missão dar maior robustez às operações “comerciais” das FARC na região de fronteira Colômbia/Venezuela e Colômbia/Brasil. Também deveria promover relativo domínio territorial, mantendo área de refúgio para proteção de frações guerrilheiras em fuga. Com o passar do tempo, uma parceria comercial acabou sendo firmada (segundo informações), com o PCC. A antiga Frente 16 passou, em 2021, a compor a chamada Segunda Marquetalia.

Em relatório produzido pelo governo norte-americano, constata-se que o grupo pode ter recebido apoio do governo venezuelano. Assim sendo, o território (e soberania) daquele país estaria sendo utilizado como base operacional (e livre da represália das forças armadas colombianas).

Maduro e seus associados usam atividades criminosas para ajudar a manter seu controle ilegítimo sobre o poder, fomentando um ambiente permissivo para grupos terroristas conhecidos, diz o relatório, incluindo dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), do Exército de Libertação Nacional (ELN) de origem colombiana e simpatizantes do Hezbollah.

(…) Nicolas Maduro acolheu abertamente ex-líderes das FARC que anunciaram um retorno às atividades terroristas.

Em 28 de julho de 2019, durante o Foro de São Paulo em Caracas, Maduro disse que Iván Márquez e Jesús Santrich – ex-líderes das FARC – eram bem-vindos no país.” (U.S. Department of State, Bureau of Counterterrorism, 2019).

Poderemos assim fazer uma série de questionamentos. Há soberania onde existe expressiva penetração de organizações criminosas nos poderes constituídos? Provavelmente quando se chega ao ponto onde o número de “exceções” começa a ser grande (sendo impossível que deixem de ser percebidas), causando impacto no cotidiano dos cidadãos, estaremos diante de um Estado Falido (ou, como termo atualmente utilizado por ser mais brando, Estado Frágil).

A falência (ou fragilidade) não é necessariamente vinculada com o fracasso econômico. Trata-se do fracasso ou ineficácia em questões de ordem política, social, vulnerabilidade frente a ameaças externas ou internas, incapacidade ou permissividade em relação à presença de grupos terroristas, entre vários outros pontos a considerar.

Não há um consenso geral para uma definição “padrão” sobre a fragilidade de um Estado. O Reino Unido, no entanto, têm como entendimento que a maioria das definições enfatiza tipos semelhantes de falhas e vulnerabilidades. O United Kingdom’s Department for International Development (DFID, Departamento para o Desenvolvimento Internacional) bem como a Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), concentram-se em falhas de direitos de serviços. O DFID define como Estados Frágeis aqueles em que “o governo não pode ou não quer desempenhar funções essenciais à maioria da população, incluindo os pobres”. Tais funções seriam as que incluem direito à justiça, segurança e serviços. Já o Canadá (Canada’s Country Indicators for Foreign Policy, CIFP) entende que além dos “direitos de serviços” (ou a ausência deles), um Estado Frágil “não têm autoridade funcional para fornecer segurança básica dentro de suas fronteiras, o sistema institucional é incapaz de fornecer as necessidades básicas à população e/ou não possui legitimidade política para representar efetivamente seus cidadãos no país ou no estrangeiro”.

Além de governos ou instituições governamentais, existem outras organizações não estatais que se dedicam a estudar as vulnerabilidades de Estados. Uma delas é o FFP.

The Fund For Peace (FFP, Fundo para a Paz) é uma instituição fundada em 1957, cujo principal foco é a pesquisa e educação, bem como “trabalha para prevenir conflitos violentos e promover segurança sustentável”. Sua sede é em Washington (Estados Unidos) e seu fundador é Randolph Compton, sendo que a instituição foi criada em memória de seu filho mais novo, John Parker Compton, morto na Segunda Guerra Mundial. John havia redigido um ensaio sobre a necessidade da adoção de outros métodos que não a guerra para a resolução de conflitos. A FFP possui dois sites na internet: https://fragilestatesindex.org/ e https://fundforpeace.org/.

A partir deste último (Fragile States Index), passamos a verificar o que poderia significar a fragilidade (ou falência) de um Estado, no que lemos:

Um estado frágil tem vários atributos, e tal fragilidade pode se manifestar de várias maneiras. No entanto, alguns dos atributos mais comuns da fragilidade do estado podem incluir:

• A perda do controle físico do seu território ou o monopólio do uso legítimo da força;

• A erosão da autoridade legítima para tomar decisões coletivas;

• Incapacidade de fornecer serviços públicos razoáveis;

• A incapacidade de interagir com outros estados como membro pleno da comunidade internacional.

O Fragile States Index (FSI) baseia-se em uma ampla análise, pautada em 12 indicadores, onde são avaliadas desde as vulnerabilidades estatais ao colapso. São agrupadas em quatro categorias. Há os indicadores de coesão (se verifica desde o aparato de segurança, atividade paramilitar, controle de territórios por grupos guerrilheiros à identidade nacional, eleições justas e lideranças que representam a população), econômicos (desde o desenvolvimento à constatação de números expressivos de pessoas com grande nível de escolaridade que deixam o país), políticos (incluindo as evidências de corrupção de autoridades federais, confiança no governo, insurgência armada, saúde, educação, infraestrutura, justiça etc.) e sociais (população, meio ambiente, segurança alimentar etc.).

Considerando um total de 179 “posições” na análise do FSI (2024), estando em 1º lugar a Somália e no outro extremo, em 179º, a Noruega, nota-se que a Venezuela se encontra na preocupante 30ª colocação e o Brasil na, não tão confortável, 78ª. Como Estado, constata-se que a “fragilidade” brasileira está mais próxima de nações como o Irã, Iraque e Venezuela do que a de países como o Paraguai (e, em bem melhor avaliação, o Chile). Na verdade, Bolívia, México, El Salvador, Equador, Paraguai, Cuba, Suriname, Argentina e Chile se encontram melhor avaliados do que o Brasil. É uma situação que merece reflexão.


Mapa de calor do índice de estados frágeis (fonte: Fragile State Index, FSI).

Imagem compilada a partir do site do FSI. A posição do Brasil no índice deixa-o mais próximo da condição constatada na Venezuela do a que encontrada em países como Chile ou Argentina. Bolívia, México, El Salvador, Equador, Paraguai, Cuba e Suriname estão, também, melhor avaliados (Fragile States Index, 2024).

Já que estamos falando de Estado (e sua eventual fragilidade), retornando ao termo “soberania”, encontramos que, “em seu sentido político ou jurídico, é o exercício da autoridade que reside em um povo e que se exerce por intermédio dos seus órgãos constitucionais representativos. A soberania é uma autoridade superior que não pode ser restringida por nenhum outro poder e, portanto, constitui-se como o poder absoluto de ação legítima no âmbito político e jurídico de uma sociedade” (definição fornecida por Equipe Mundo Educação, UOL). Assim sendo, em um Estado Frágil (ou Falido), será difícil que a população exerça autoridade por intermédio de seus órgãos constitucionais. Não haveria, portanto, soberania.

Talvez possamos sustentar um pressuposto de que, em meio ao caos, à falência, existem organizações que lucram e aumentam seu poder. É adequado falarmos da penetração do crime organizado transnacional dentro da estrutura do Estado. Com absoluta certeza, trata-se de algo a considerar quando citamos o termo soberania.

O coronel PM Marcio Santiago Higashi Couto (atualmente na reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo), em seu Projeto de Pesquisa (Doutorado em Relações Internacionais – Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo) aborda o tema O Crime Organizado Transnacional e a Insurgência Criminal como Ameaças ao Estado Democrático de Direito e à Segurança Nacional no Brasil. Como descreve com propriedade, o “Crime Organizado Transnacional cresce, expande seus negócios e se infiltra em várias áreas da Sociedade e dos Governos, no Brasil e no Mundo. Através da ocupação e do controle de grandes regiões, seja no interior da Amazônia ou em grandes centros urbanos, como a cidade do Rio de Janeiro, onde as Organizações Criminosas Transnacionais (OCT) estabelecem áreas de poder e influência, criando um ‘estado paralelo’, e através da Insurgência Criminal, procuram desestabilizar e desacreditar o governo legitimamente constituído e dominar vários aspectos da vida da população local, enfraquecendo as Instituições e o Estado Democrático de Direito, ameaçando a Segurança Nacional e a própria Soberania Nacional”.

O crime organizado não é algo novo. Como o próprio coronel Santiago disse, existe há séculos, desde os tempos bíblicos, no Oriente, na Itália medieval, no auge da pirataria e, chegando aos dias de hoje, nas mais diversas modalidades.

Organizações criminosas existem nos mais diversos países do mundo e, em muitos deles seria impossível dizer que estamos diante de um Estado Frágil ou Falido (até pelo fato de empreenderem esforços para o combate à corrupção, à desordem social, ao crime e por tentarem prover as necessidades e expectativas de suas populações, mitigando formas de “governança alternativa”). Mas é fato que, entre os Estados Frágeis, há grande penetração do crime na máquina estatal. Existe a possibilidade de citar exemplos onde há penetração de práticas e organizações criminosas nas mais altas esferas de uma nação. Passemos a um: Venezuela.

Um grupo que se tornou infame é o Cartel de los Soles (Cartel dos Sóis). O nome vem da alusão às insígnias de oficiais (venezuelanos) de alta patente que possuem um formato que lembra um Sol, e assim sendo, há participação ativa destes (bem como de outros atores que ocupam cargos de grande influência no governo) no narcotráfico e na busca de parcerias que envolvem o relacionamento com grupos terroristas como FARC e ELN, bem como com cartéis mexicanos.

Pelo observado, a “estrutura” de operações do Cartel dos Sóis estava se tornando cada vez mais ampla nos últimos anos.

Informações divulgadas em julho pelo Departamento de Justiça dos EUA lembram que, em 2008 (…) o Cartel dos Sóis daria dinheiro e armas às FARC em troca de um aumento na produção de cocaína (…).


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Nos últimos meses, entretanto, os aliados dessa estrutura criminosa mudaram, devido à morte de seus principais líderes (…). Hoje, de acordo com Alberto Ray, diretor da ONG norte americana Risk Awareness Council, no setor de fornecedores de cocaína manipulada pelo Cartel dos Sóis, está em primeiro lugar o Exército de Libertação Nacional (ELN) e, após, uma constelação de pequenos grupos, concentrados principalmente no departamento colombiano de Norte de Santander.

‘(…) as FARC acabaram trabalhando em conjunto com o ELN. Antes eles eram opostos, agora são aliados’, afirmou Ray à Diálogo, em 2 de setembro. ‘A propósito, essa aliança é negociada em Cuba, o grande mediador em tudo isso. Esses grupos têm Cuba como um escritório de acordos legais (…) negociando os acordos desde 2022’. Em uma apresentação recente para a ONG Observatório Geopolítico da América Latina, Ray revelou que 61 por cento do território venezuelano é controlado por grupos irregulares. Quando questionado a respeito, ele disse que o regime de Maduro não tem mais a mesma capacidade que tinha no passado para entregar dinheiro a essas estruturas. ‘É por isso que ele cede o controle territorial a elas. Uma paz criminosa reina nesses lugares. O modelo de paz criminal gera um status quo de intimidação que paralisa a mudança política’”. (Cartel de los Soles amplia operações com o ELN e cartéis mexicanos. Diálogo Américas, 27 de setembro de 2023).

A própria degradação (ou falência) do Estado venezuelano (que, como anteriormente mencionado, possui considerável parte do seu território sob controle ou, caso se prefira, “governança alternativa” de grupos irregulares) colabora direta ou indiretamente para que outras organizações criminosas acabem por se expandir. A expressiva vinda de imigrantes venezuelanos para vários países (principalmente da América do Sul) propiciou que, também, inúmeros criminosos se aproveitassem da imensa massa humana que procura melhores condições de vida, infiltrando-se nela e penetrando em outras nações. O Tren de Aragua é um exemplo de organização criminosa que se alastrou e passou a causar problemas além das fronteiras venezuelanas. Somente no Peru foram presos centenas de criminosos dessa organização. Estima-se que o Tren de Aragua tenha sido formado nos idos de 2014.

A British Broadcasting Corporation (BBC) em reportagem citou o trabalho da jornalista venezuelana Ronna Rísquez, que expôs desde a origem e o alistamento de novos integrantes à violência e o alcance das atividades criminosas do grupo em seu livro O Trem de Aragua: O grupo que revolucionou o crime organizado na América Latina. A jornalista esclareceu que se fez passar por parente de um detento para ter acesso à prisão de Tocorón (localizada em Aragua, a aproximadamente 60 km de Caracas). A falência (ou lapso) estatal sempre dará espaço para outras formas de “gestão alternativa”. Na Venezuela, com o consentimento (ou cumplicidade) do Estado, ocorreu o “Pranato”, governança que é feita por criminosos, controlando o ambiente prisional. Os chefes (pranes) acabaram por impor regras e mesmo explorar a massa carcerária, enquanto o Estado atuou de forma permissiva. Assim, o Tren de Aragua tornou-se o que é hoje, em apenas aproximadamente uma década, atuando em crimes que vão desde o narcotráfico, o sequestro, a extorsão e homicídios ao tráfico de pessoas, contrabando, lavagem de dinheiro, exploração de imigrantes e garimpos ilegais. O Tren de Aragua valeu-se da complexa emergência humanitária que afeta os venezuelanos desde 2015, que estimulou a imigração em massa.

Conclui-se, portanto, que um Estado Falido não somente colabora com a expansão do crime, como é causa de instabilidade (afetando o cotidiano de outras nações). A falência de um Estado não é uma questão que impacta somente seu território e população: é algo que deve interessar a todos. Onde há falência estatal, miséria humana e instabilidade, sempre haverá grupos prontos a se estabelecer e lucrar com isso. Assim sendo, sem qualquer surpresa, começam a surgir parcerias: o Tren de Aragua teria passado a fornecer armas ao PCC.

Faço recordar das palavras do comandante-geral da PMESP, o coronel PM Cássio Araújo de Freitas: “Não há progresso sem ordem”. A ausência de ordem propicia a instalação do caos. O caos é a instabilidade que, por sua vez, origina a fragilidade e, por conseguinte, a falência (estatal). Portanto, se não há ordem, se mantêm a proa na direção de um Estado Falido. Este é o paraíso a ser alcançado pela insurgência criminal. Portanto, qualquer esforço para mitigar a existência de organizações criminosas não é somente válido: é necessário!

Investir na Segurança Pública, nos assuntos afetos à Defesa Nacional é investir na nação, na paz social e na soberania.

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