A obtenção de armas nucleares por mais países não é bem-vista por grandes potências, mas é razoável dizer que isso ajuda a equilibrar forças e a remover ameaças à segurança nacional de algumas nações, o que deixa uma pergunta: e o Brasil?
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Um famoso provérbio iraniano diz que “o poço que não tem água para nós tem pelo menos pão para vocês”. O progresso militar do Irã, logicamente honroso para os iranianos, é um exemplo dessa questão. Por muitos anos, a população do Irã tem enfrentado uma situação econômica ruim e uma severa taxa de inflação devido às sanções internacionais, e, a cada ano, um grande número de pessoas cai abaixo da linha da pobreza. Embora o progresso militar do Irã seja motivo de orgulho, dá aos EUA e a Israel uma nova desculpa para perseguir seus interesses. Portanto, se esses desenvolvimentos não trazem benefícios ao povo do Irã, se tornam uma ferramenta no jogo diplomático dos EUA e Israel.
Mísseis hipersônicos e estratégia de defesa
Ao contrário do que destaca a mídia ocidental, mísseis superfície-superfície são classificados como armas defensivas nas doutrinas militares mundiais, e o poderio de mísseis de cada país tem papel dissuasor contra seus inimigos. É óbvio que nenhum país pode conquistar outro apenas porque tem melhor poder de mísseis. É claro que os especialistas militares atribuem importância à dissuasão militar e ao poder defensivo e os consideram eficazes em guerras, mas nunca consideram armas defensivas como sinônimo de poder ofensivo. O que é publicado na mídia ocidental hoje em dia em relação aos novos mísseis do Irã é uma continuação do projeto de iranofobia que trouxe benefícios aos inimigos de Teerã por décadas. A iranofobia, considerada durante muito tempo uma estratégia dos Estados Unidos e Israel na região do Golfo Pérsico, influenciou a matriz política da região.
A onda regional de iranofobia começou durante a revolução no Irã, mas atingiu seu auge na guerra Irã-Iraque. Ninguém, tanto quanto os Estados Unidos, a ex-União Soviética (Rússia) e Israel, sabe quais benefícios diretos a guerra Irã-Iraque lhes trouxe. A guerra que durou oito anos e foi a mais longa após a Segunda Guerra Mundial, na qual centenas de milhares de pessoas dos dois países morreram, e finalmente levou ao retorno de ambos para suas fronteiras. No entanto, o exército iraniano, que era o quarto mais poderoso do mundo na época da revolução do Irã, e o exército iraquiano, que se tornou um dos mais poderosos do mundo com grandes orçamentos militares e 250.000 soldados, tornaram-se tão enfraquecidos que Israel aliviou suas possíveis ameaças por muitos anos.
Durante essa guerra, a URSS vendeu armas ao Iraque. Os países ocidentais também venderam armas alternadamente para o lado mais fraco da guerra, o que a prolongou. Foi inclusive dito que os EUA e Israel, ao contrário de sua inimizade com o Irã, venderam armas para este país durante o conflito. A guerra Irã-Iraque não apenas fez com que esses países muçulmanos, ricos em petróleo retrocedessem décadas militar e economicamente, mas também teve um impacto de longo prazo em todo o Oriente Médio.
Talvez por isso, Pierre Razoux, chefe do Instituto de Pesquisas Estratégicas de Paris, escreveu no livro The Iran-Iraq War: “A compreensão da situação política no Oriente Médio e no Golfo Pérsico é impossível sem conhecer a guerra Irã-Iraque.” Ele também afirmou que o impacto da guerra no Oriente Médio foi equivalente ao impacto da Primeira Guerra Mundial na Europa. As declarações de Razoux foram importantes porque ele teve acesso aos relatórios dos adidos militares da embaixada francesa nas duas capitais.
As razões que levaram Saddam Hussein a atacar o Irã são um assunto que requer uma investigação profunda. O fato é que nenhuma estimativa mostrava que Saddam teria sucesso e ele sabia disso. De qualquer forma, quaisquer que fossem os principais motivos para iniciar a guerra, ela trazia benefícios diretos para os grandes países na venda de armas e, naturalmente, alimentá-la e prolongá-la também levaria ao aumento de tais benefícios. Israel, no entanto, se beneficiou ainda mais, porque desviou as mentes dos povos dos países árabes, que haviam ido à guerra contra Israel três vezes, de sua inimizade contra Israel para um novo inimigo. Israel se beneficiou dessa estratégia desde o início da revolução iraniana. Talvez o tratado de paz entre Israel e Egito, assinado em 26 de março de 1979, que encerrou oficialmente o estado de guerra entre os dois países após 30 anos, também tenha sido influenciado por essa questão. Este acordo foi chamado de Camp David e os dois países normalizaram suas relações políticas a partir dele.
O ponto interessante sobre a inimizade entre o Irã e Israel é que ambos nunca tiveram confrontos ou conflitos diretos na história. O Irã alegou como motivo para sua inimizade com Israel a questão do povo palestino, apesar do fato de que os palestinos são árabes e as relações de seu governo autônomo com os países árabes são melhores do que as do Irã.
Esta questão é sempre levantada entre a opinião pública iraniana: se um dia os palestinos chegarem a um acordo abrangente com os israelenses, que razão restará para a inimizade do Irã com Israel? Inclusive o líder do Irã indicou uma solução para a questão da hostilidade Irã-Israel: um referendo. No site do escritório do aiatolá Khamenei, afirma-se que um plano de referendo para todas as religiões e grupos étnicos palestinos é a única maneira de superar os desafios da questão palestina hoje e no futuro. Nesse plano, propõe-se que palestinos judeus, cristãos e muçulmanos participem juntos de um referendo e determinem o sistema político do Estado palestino. Claro, o “povo palestino” são as pessoas que vivem nas antigas fronteiras da Palestina antes da formação de Israel.
O fato é que a inimizade do Irã com Israel, baseada no eixo palestino, trouxe dificuldades políticas e econômicas para o Irã, mas não deixou de trazer benefícios para Israel.
Opinião pública iraniana e a questão da guerra
Nesta era, quando a mudança de fronteiras internacionais por meio da guerra é mais improvável e, na prática, a ocorrência de um conflito raramente beneficia os povos dos países envolvidos, cada guerra geralmente traz perdas financeiras e de vidas para as partes implicadas. Por esta razão, a opinião pública no Irã nunca é a favor de iniciar uma guerra. Na verdade, na guerra Irã-Iraque, o Iraque atacou e os iranianos se defenderam. O fato é que não apenas o Irã não iniciou guerra alguma nas últimas décadas, mas até agora os comandantes e tomadores de decisão iranianos enfrentam a frequente questão do porquê o Irã se recusou a fazer a paz depois de expulsar o Iraque de seu território.
Para provar a oposição do povo iraniano a iniciar qualquer nova guerra, basta lembrar que o Irã não participou das guerras de coalizão contra Saddam Hussein em 1990 e 2003 ou da guerra contra o Talibã em 2001. Ou seja, apesar do fato de que a coalizão internacional havia chegado à região com o objetivo de derrubar Saddam Hussein, os iranianos o odiarem e as circunstâncias mostrarem que a derrota iraquiana era certa, não permitiram que seus governantes entrassem na guerra em apoio à coalizão.
Eles nem sequer concordaram em participar da coalizão global na guerra contra o Talibã, isso apesar do fato de que o Talibã massacrou os membros do consulado iraniano na ocupação do Afeganistão. Isso aconteceu em 1998, quando o Talibã matou onze membros do consulado iraniano em Mazar Sharif, entre os quais, além de diplomatas, havia também vários jornalistas e especialistas militares.
É claro que, nos mesmos anos, os extremistas revolucionários do Irã tinham posições diferentes em relação à participação do Irã nessas guerras. Pesquisas de opinião pública no Irã mostram que, nos últimos anos, os iranianos têm opiniões diferentes sobre a doutrina da profundidade estratégica.
Eles também têm uma visão diferente sobre o apoio do Irã às forças por procuração na Síria, no Líbano, na Palestina e no Iêmen, e sobre a venda de armas para a Rússia na guerra da Ucrânia. Por isso, é quase impossível imaginar que a opinião pública no Irã seja favorável ao início de uma nova guerra. Os iranianos têm a dura experiência da guerra contra o Iraque e, mesmo que seu país se torne uma potência militar indiscutível na região, parece quase impossível que eles concordem com uma invasão aos vizinhos.
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Nova ordem no Oriente Médio
Além do fato de a opinião pública do Irã não ser favorável a nenhuma nova guerra, o processo de mudanças políticas na região mostra que o Irã, com mediação da China, está convergindo com os países da região, com os quais havia cortado ou reduzido relações diplomáticas. Por exemplo, o Irã conseguiu reativar seus laços com a Arábia Saudita depois de 12 anos de desconexão e está em processo de reabertura de sua embaixada na Arábia Saudita.
A razão para romper o relacionamento anterior com a Arábia Saudita foi o ataque de extremistas à embaixada saudita em Teerã e seu consulado em Mashhad. Além disso, o nível das relações entre o Irã e os Emirados Árabes Unidos, antes muito extenso, diminuiu ao mesmo tempo em que a tensão entre o Irã e a Arábia Saudita chegou ao nível do encarregado de negócios da embaixada. Além disso, os laços entre o Irã e Bahrein, um aliado próximo dos sauditas, também estão sendo restaurados. Talvez a convergência mais considerável seja a renovação das relações entre o Irã e o Egito, rompidas um ano depois da revolução no Irã devido ao acordo de Camp David entre Egito e Israel. Esse relacionamento está sendo reatado.
A melhoria das relações do Irã com esses países ocorre enquanto Israel se aproxima dos países árabes à sombra da iranofobia. Desde a época do presidente Donald Trump e dos chamados Acordos de Abrahão, os países árabes, vêm restaurando suas relações com Israel, que, nos últimos meses vinha incentivando o lançamento uma “OTAN árabe” a pretexto de apoiá-los. Israel geralmente alegou que para lidar com uma ameaça do Irã, eles precisavam do apoio israelense.
Um dos pontos estranhos da convergência do Irã com os países árabes é que ela ocorre em um momento em que o governo iraniano caiu nas mãos de extremistas e, por outro lado, não há nenhuma mudança visível na política externa de nenhum desses países árabes. Embora analistas políticos afirmem que essa convergência ocorre com mediação da China e contra a vontade dos EUA e de Israel, algumas evidências mostram uma visão diferente.
Por exemplo, os ministros das Relações Exteriores dos países membros do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico e dos EUA emitiram uma declaração conjunta saudando a decisão da Arábia Saudita e do Irã de retomarem relações diplomáticas. Esta reunião foi realizada há alguns dias em Riad. Antes disso, há três meses, o assessor de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, em resposta ao anúncio da normalização das relações entre Teerã e Riad, disse que esse é um passo positivo para reduzir as tensões na região.
Agora, uma questão a considerar, por que novas situações causaram mudanças na política externa do Irã, revisão pelos países árabes e aceitação pelos Estados Unidos, no momento em que o nível de protestos dos iranianos atingiu o nível mais alto? Além disso, as discussões sobre o acordo nuclear anterior com o Irã, o JCPOA, suspenso com a retirada unilateral dos EUA durante o governo Trump, estão prestes a ser retomadas. Essas negociações começaram com a mediação aberta do Sultão de Omã, e agora há inclusive notícias sobre a continuação de conversações diretas com os EUA.
Em paralelo a tudo isso, o comportamento da Agência Internacional de Energia Atômica também é digno de nota, porque a reunião do Conselho de Governadores da AIEA sobre o programa nuclear do Irã terminou sem emitir uma resolução contra Teerã, apesar dos esforços de alguns países. A mídia iraniana havia anunciado alguns dias antes dessa reunião que Teerã havia resolvido uma série de questões levantadas pela AIEA em relação ao seu programa nuclear.
Todas essas evidências mostram que houve mudanças fundamentais nas relações entre os países árabes e ocidentais e até mesmo entre os EUA e o Irã. Essas mudanças poderiam ser o resultado da capacidade nuclear do Irã atingir o nível militar? Mohammad Eslami, chefe da energia atômica do Irã, também disse que o alto enriquecimento de urânio no Irã visa forçar o Ocidente a suspender as sanções, e esta frase mostra que o enriquecimento de alta pureza não tinha o objetivo de produzir energia.
Deve-se lembrar que alguns analistas e mesmo parlamentares no Irã enfatizaram a necessidade de alcançar a energia nuclear de nível militar diante das ameaças dos Estados Unidos e de Israel. Fereydoun Abbasi, ex-chefe da Organização de Energia Atômica do Irã, também disse, há dois anos, que Mohsen Fakhrizadeh havia criado o sistema de armas nucleares, e Israel o assassinou devido a isso. Fakhrizadeh foi um proeminente cientista nuclear e membro sênior do IRGC morto há três anos. Com tudo isto, não parece que a convergência dos países árabes com o Irã se deva a desenvolvimentos militares, porque, assumindo que o Irã obteve armas nucleares, estas têm apenas papel dissuasor, pela mesma razão já mencionada.
As armas nucleares no novo século não são armas para uso antecipado e apenas dissuadem os inimigos de pensar em ataque e ocupação. Se a Ucrânia não tivesse entregado suas ogivas nucleares, talvez não estivesse na situação em que está hoje. Se alcançar capacidade militar nuclear levasse à convergência, isso aconteceria com a Coreia do Norte, que possui armas nucleares e mísseis hipersônicos. A obtenção dessas armas por um país na prática pode causar maior isolamento, se tal país não estiver disposto a interagir com a comunidade internacional e não estiver comprometido com leis internacionais.
Por outro lado, armas nucleares sequer levam à sobrevivência de um governo, porque esta sobrevivência depende da vontade do povo. Se essas armas pudessem levar à preservação de governos, aquele da União Soviética, que detinha um dos maiores arsenais nucleares do planeta, não teria se desintegrado.
Embora as pessoas em geral desejem um mundo sem armas de destruição em massa, vários países estão equipados com armas nucleares, e esta é uma questão inevitável. Os seres humanos deveriam alcançar um mundo livre de armas de destruição em massa, mas até lá, espera-se que outros países também possam atingir esse nível de poder militar no futuro.
Ao mesmo tempo, nas atuais condições, a obtenção de armas nucleares por mais países não é desejável para as superpotências como os EUA, porque elas podem gostar de ser únicas. Mas é razoável afirmar que essa habilidade pode ajudar a equilibrar forças e a remover ameaças à segurança nacional de algumas nações.
Nesse sentido, é curioso que um país grande e influente como o Brasil ainda não tenha feito um progresso adequado em sua indústria nuclear, e talvez seja o caso de perguntar a especialistas e analistas militares brasileiros quais fatores levaram ao lento desenvolvimento do conhecimento nuclear no Brasil.