Prever os resultados do conflito na Ucrânia é uma tarefa difícil, pois a guerra, segundo Clausewitz, paira em uma névoa de incerteza, definida por ele como fricção.
Segundo Roger Ashley Leonard, em “Clausewitz: trechos de sua obra”, Carl von Clausewitz foi um militar prussiano, que além de ter participado em combates por seu país, também desempenhou funções acadêmicas voltadas à formação de pessoal e de doutrina para seu exército. Durante sua vida (1780-1831), escreveu o livro Vom Krieg (Da Guerra), compêndio que aborda sua teoria sobre a guerra, alvo de estudos e discussões em ambiente acadêmico e militar por todo mundo até a atualidade. Em sua obra, deu tratamento científico ao fenômeno da guerra, quebrando um paradigma existente à época de elaboração de manuais no nível tático.
Um dos postulados da teoria de Clausewitz é que a natureza fundamental da guerra se assemelha a uma “Trindade Paradoxal”, cujos elementos são a violência, o jogo do acaso e o propósito racional. Ele sintetizou sua fundamentação afirmando que a guerra é mais do que um verdadeiro camaleão, que se adapta ligeiramente as circunstâncias, o qual prevalece o espírito criativo dos contendores em meio ao caos do conflito armado.
Nesse sentido, Clausewitz afirma que a guerra pode assumir várias formas e todas podem ser interpretadas como uma combinação de forças irracionais (emoção violenta), não racionais (acaso e sorte) e racionais (guerra como um instrumento de política), no que passou a ser chamado de trindade primária. Em uma espécie de “segunda camada”, ele define que o primeiro desses três aspectos diz respeito principalmente à População, o segundo às Forças Armadas, e o terceiro ao Governo, o que passou a ser chamado de trindade secundária.
Considerando o advento da guerra, como também a conjuntura na qual se insere a atual crise, para se compreender, de maneira científica, o conflito armado da Ucrânia, vem à tona o seguinte questionamento: “Como Clausewitz analisaria a Guerra da Ucrânia, à luz da sua Trindade Paradoxal?”
No que tange à violência irracional manejada pelo povo, ressalta-se a presença da expressão psicossocial eslava na guerra. Em 12 de julho de 2021, o presidente russo Vladimir Putin, em uma declaração oficial, enfatizou as ligações históricas, culturais e religiosas entre os russos e os ucranianos, tendo vista a origem compartilhada na população de Kiev Rus, durante a Alta Idade Média, o que fundamenta a sua alegação de “um só povo” entre as nações.
Contudo, desde 2004, com a Revolução Laranja, ficou latente no povo da Ucrânia um forte sentimento de pertencimento ao mundo ocidental, particularmente na porção Oeste do país, fortalecendo a coesão nacional em negar a narrativa dessa igualdade étnica ancestral, que para eles não passa de uma argumentação política para tentar respaldar as ações bélicas russas frente ao alargamento da OTAN no Leste europeu.
Em relação ao jogo do acaso e da probabilidade empreendido pelos militares, é possível assinalar a forte ação das forças armadas russas contra a resistência cívico-militar ucraniana. Após o reconhecimento das Repúblicas Populares de Donetsk e de Luhansk, autoproclamadas como Estados por separatistas pró-Rússia, o presidente Putin ordenou aquilo que definiu como “operação militar especial” com o objetivo de “desmilitarizar” e a “desnazificar” a Ucrânia, ao empregar forças armadas modernizadas na maior e mais complexa campanha militar organizada por Moscou desde a invasão do Afeganistão em 1979.
Frente a esse ataque, as forças armadas ucranianas, apesar da sua baixa capacidade de executar ações ofensivas que resultem na expulsão das tropas russas, efetuaram uma forte mobilização nacional na dimensão humana, empreendendo uma considerável resistência na intenção de promover uma guerra de atrito para levar a uma possível exaustão russa; a estratégia é simples: para vencer basta não ser derrotado.
No que diz respeito ao papel do Estado como grupo dirigente, é perceptível o método protagonizado pelos presidentes Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky na aplicação racional do uso da força na condução do conflito. Durante seu pronunciamento em cadeia nacional, ao anunciar a operação militar, Putin afirmou: “Nossa análise concluiu que nosso confronto com essas forças [ucranianas] é inevitável (…) Algumas palavras para aqueles que seriam tentados a intervir: a Rússia responderá imediatamente e você terá consequências que nunca teve antes em sua história”, respaldando a invasão como “guerra justa” (jus ad bellum) frente à persistente agressão ocidental.
Em resposta, Zelensky fortaleceu o sentimento de autodeterminação ucraniano e procurou apoio internacional, com destaque para a OTAN e a ONU, valendo-se da dimensão informacional ao contar com o apoio das redes sociais das “Big Techs” ocidentais, como as norte-americanas Meta e Google, a fim de potencializar a opinião pública mundial em favor do governo da Ucrânia.
Fruto dessa análise inicial, à luz da Teoria da Guerra de Clausewitz, é lícito inferir que as ações estratégicas iniciais russas e ucranianas no conflito armado emolduram um quadro de intenso diálogo da Tríade Extraordinária do Governo, das Forças Armadas e do Povo, visto que para Clausewitz “A guerra é a continuação da política por outros meios”, sendo ela “um ato de força para compelir nosso inimigo a fazer a nossa vontade”.
Contudo, mesmo com a existência e manutenção de objetivos políticos bem definidos entre os envolvidos, tentar fazer previsões de como acabará o conflito será uma tarefa difícil, pois a guerra, segundo Clausewitz, paira em uma névoa de incerteza, definida por ele como fricção. Nesse caso, somente com a evolução inesperada dos acontecimentos bélicos e políticos poderemos verificar se o objetivo russo de diminuir a influência ocidental da OTAN na Eurásia conseguirá superar a resistência nacional ucraniana.
Por fim, a utilização da Trindade Paradoxal de Clausewitz nos dá uma visão mais científica do ambiente cinzento da guerra na Ucrânia. Segundo Bart Schuurman, em artigo publicado na revista Parameters em 2010, as trindades primária e secundária nos oferecem uma compreensão sobre a natureza da guerra, pois não apenas esclarecem esse assunto difícil, mas também proporcionam um modelo teórico pelo qual a guerra pode ser estudada. Schuurman ressalta ainda que essas características sempre estarão presentes em qualquer conflito armado e nas tendências que envolvam as sociedades como um todo.