Por Carlos Arlindo Rondon* (Publicado originalmente na Revista Aeronáutica de maio/junho de 1993).
A História da Humanidade é a história das guerras. Infelizmente isto é uma realidade. Uma grande e incontestável realidade. Mas até quando, afinal, será assim?
“O Brasil é um país jovem que, por isso mesmo,
ainda não tem muita história para contar.
Mas o pior é que nem esse pouco ele conta…”
Taunay
O conflito Irã-Iraque, na metade da década de 1980, prosseguia encarniçado já no seu quinto ano. Milhões de vidas humanas haviam sido ceifadas e danos materiais de vulto fustigavam ambos os lados, abrangendo tanto a área militar quanto a civil. Era uma guerra de intransigências, mesclada com ódio e temperada pelo mais violento rancor religioso. Parecia que nunca iria ter fim.
Conquanto o Iraque pudesse armar-se à vontade já que possuía o aval das potências tanto ocidentais quanto orientais para a aquisição de material bélico, o regime de Khomeini, o vilão da época, deveria ser boicotado e combatido com a máxima rigidez. Era a política reinante na ocasião. Até mesmo os Estados Unidos, na vigência do governo Carter, tentaram uma operação militar contra Teerã objetivando libertar reféns americanos então retidos pelo governo do Irã, mas que redundou em total fracasso e num tremendo fiasco.
Destarte o Brasil, como emergente produtor de armamentos, já vinha de há algum tempo ensaiando os primeiros passos no intrincado mercado internacional visando colocar também os seus produtos, competindo com os clássicos e tradicionais dominadores do “métier”.
O Iraque apresentava-se então como um dos nossos principais, senão o principal cliente. Há muito cavalgava os blindados da ENGESA e inflamava os foguetes da AVIBRÁS. Para completar o tripé de apoio do sofisticado material produzido no polo tecnológico de São José dos Campos, fazia, pois, mister que igualmente flanasse com aviões fabricados pela EMBRAER, o que não demorou a ocorrer. Assim, na época, como oito outras forças aéreas pertencentes a nações espalhadas por quatro continentes, veio também a eleger o nosso T-27 Tucano (E-312) como o seu avião de treinamento militar oficial.
Cumpre seja feita, de passagem, uma observação sobre a moral de se vender armamento ou equipamento militar a uma nação em estado de beligerância. Os apregoadores deste pseudo-dogma são os países do primeiro mundo que monopolizam todos os mercados. Tornaram-se ricos e querem ser mais abastados ainda. Embora amantes da paz mundial e até mesmo celestial, possuem os maiores arsenais nucleares constituídos de milhares de artefatos atômicos, suficientes para destruir o mundo não sei quantas vezes. Mas pregam a não proliferação nuclear. Para os outros. Pregam, da mesma forma, obstaculizar corridas armamentistas com a finalidade lógica e humanitária de fazer diminuir os conflitos, embora tenham seus orçamentos anualmente engordados com o lucro de bilhões de dólares provenientes, nada mais nada menos, da venda armamentos! E paradoxal e é também engraçado.
A despeito de o Brasil não haver firmado o Tratado de Não Proliferação Nuclear e embora já tenha toda a tecnologia, não pretende fabricar bombas atômicas nem as lançar em quem quer que seja. É e sempre foi caracterizado como uma Nação pacifista no mais alto grau. Sua diplomacia possui a tradição respeitada e reconhecida internacionalmente de conseguir sempre resolver todas as contendas sem desferir tiros. São os reflexos inequívocos da herança política que nos legou o magnânimo José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco. Contudo é um país de terceiro mundo que almeja ardentemente evoluir e afirmar-se no concerto das demais nações do primeiro escalão. Necessita galgar os degraus que lhe faltam para atingir patamares mais elevados. Possuímos um parque industrial razoável e as exportações em todas as áreas vêm-nos conferindo as divisas de que tanto necessitamos. No setor específico de armamentos já dispomos de cérebros que nos conferem até uma certa – isso mesmo – tecnologia de ponta no ramo. Não é à toa que somos também exportadores e produzir material bélico é aprimorar tecnologia, é fazer ciência; como todo o produto negociável deve ser negociado e nisso não vai nenhum desdouro, nenhuma imoralidade.
O caso particular do T-27 então merece um enfoque todo especial e peculiar. Ao falar desta aeronave podemos dizer, providos de justo regozijo e compreensível orgulho, que o Tucano talvez seja o melhor avião do mundo na sua classe. Pode ser equipado com metralhadoras, foguetes ou bombas; pode ser utilizado em missões de reconhecimento armado, de apoio aéreo aproximado ou mesmo em operações táticas ligeiras; é uma máquina verdadeiramente extraordinária. Mas o Tucano não é uma aeronave de combate; ele é apenas um avião biposto de treinamento, um avião de treinamento militar por excelência. Em o negociando para o Oriente Médio não estaríamos fomentando guerras ou estimulando o aumento de tensões regionais. Estaríamos apenas colocando mais um dos nossos produtos no mercado, um produto eminentemente nacional, concebido nas nossas pranchetas e gerado pelos nossos engenheiros.
Para vendê-lo, entretanto, havia necessidade de ação rápida porquanto a concorrência era efetiva e não se podia perder tempo no que formular. Foi assim pensando e na observância do melhor ecletismo que resolvemos fazê-lo. Se deste modo não fosse feito, outro indubitavelmente o faria. Fizemo-lo, pois, fazendo-o rápido, com a certeza de que se alguém o fizesse à frente, não nos restariam opções. Passando a ser mais um a agir antes de outrem o fazer e a impedir que outro o faça, estávamos entrando naturalmente para o rol daqueles que o fazem. Esta é a lei universal da disputa e constituiu-se na grande verdade.
O contrato assinado previa que as dez primeiras unidades deveriam ser entregues voando no destino, o que para nós era inédito. Seria a primeira vez que a EMBRAER iria realizar uma revoada de aeronaves do Brasil à Ásia, em várias levas, o que significa cruzar quatro continentes sobrepujando um oceano, dois mares e dois desertos, porém o verdadeiro ineditismo da façanha residia mesmo no fato das aeronaves serem monomotores, o que emprestava à tarefa um cunho de desafio e uma feição de aventura.
Estipulamos logo a rota a ser seguida baseados em experiências anteriores de outras travessias e de voos de traslado ou de demonstração que esporadicamente fazíamos pela Europa ou pela Africa, tanto de Bandeirante quanto de Xingu ou mesmo de Tucano. Seria São José dos Campos – Recife – Fernando de Noronha – Ilha do Sal (Cabo Verde) – Las Palmas (Canárias) – Alicante (Espanha) – Kerkira (Grécia) – Iráklion (Grécia) – Cairo e finalmente Bagdá, num total de 42 horas de voo distribuídas por sete dias de viagem entremeados por quatro dias de descanso. O voo seriam formação de três aviões, cada um com dois pilotos, agrupados em torno de um Bandeirante que servia de avião-mãe, isto é, dava apoio logístico e conduzia os mecânicos e nossos pertences, já que no Tucano não dá para levar nem mesmo uma escova de dentes. Iríamos nos revezando continuamente na pilotagem dos T-27 e do Bandeirante, no decorrer de todo o trajeto, em um rodízio frenético com a implícita finalidade e a tênue esperança de diluir o cansaço, porém o máximo que se conseguia, na verdade, era apenas engambelar a fadiga.
O primeiro roteiro, São Jose dos Campos-Recife-Fernando de Noronha foi realizado todo no dia 1º de dezembro de 1984 e serviu para que se checassem todos os sistemas do avião, os equipamentos de navegação, a transferência de combustível, as máscaras e o consumo de oxigênio e, finalmente, as condições gerais do motor, numa preparação para a travessia do oceano, que deveria acontecer no dia seguinte. Era a primeira e única oportunidade que teríamos de poder regressar ao ponto iniciai a fim de sanar uma eventual pane. Dali para a frente a decisão firmada era seguir sempre adiante, sem tergiversações.
No segundo dia despertamos bem cedo para cumprir a grande jornada que consistia no imenso salto sobre o Atlântico. Embora na véspera já tivéssemos executado o trecho Recife-Fernando de Noronha, o que para alguns se constituía no chamado “Batismo d’Água”, agora sim iríamos efetuar a etapa crítica de toda a viagem num total de 7h30m de calço a calço, entre Fernando de Noronha e a Ilha do Sal, numa exígua nacele, sentados sobre um pequeno bote salva-vidas, atados a um assento ejetável, capacete pesado, máscara de oxigênio, colete inflável e segurando o manche o tempo todo, sem piloto automático, é claro. Como alimentação para essas quase oito horas de trabalho intenso, apenas o que cabia nos bolsos das pernas do macacão de voo, ou seja, duas maçãs, umas quatro barras de chocolate e uma ou duas bananas; no assoalho, uma garrafa plástica de água mineral e era tudo. A missão caracterizava-se mesmo como de sacrifício. Etapa crítica não somente desta viagem, mas também a maior etapa dentre todas as viagens que o Tucano consegue realizar no seu limite máximo.
Após o táxi, todos os aviões já na cabeceira da pista, os canopies um a um, alinhados, reluzentes no clarão do alvorecer insular, e eis que vem a autorização para que seja iniciada a decolagem da esquadrilha. Um forte e diferente sentimento então se apossa de todos, numa emoção invulgar e perfeitamente compreensível, dadas as peculiaridades com que se reveste esta decolagem ímpar, realmente marginal. O Bandeirante é o último a sair do chão e ascende no mesmo rumo dos T-27, estes subindo com o motor um pouco reduzido à espera dele, arrastando-se, pesadão, devido ao grande tanque interno extra envasado de combustível.
Após a reunião prosseguimos num voo de formação relaxado, mantendo-se estrito contato visual entre todos os aviões, que deverá perdurar por todo o percurso. Este longo voo terá então como únicos espectadores serenos, como únicas testemunhas soturnas da façanha, apenas o horizonte azul infinito ao brilho refletido na gigantesca lagoa, lá embaixo.
Mas afinal como é que um Tucano consegue cumprir uma jornada assim tão longa, indo em voo do Brasil a qualquer local do mundo sem maiores problemas e com tão grande segurança? Bem, vamos respondendo por partes. Inicialmente, para fazer uma viagem dessas, o avião é equipado com dois tanques de combustível adicionais subalares alijáveis, que lhe dobram a autonomia assegurando cerca de oito horas de voo. Deste modo é possível cumprir a etapa Fernando de Noronha-Ilha do Sal em regime de longo alcance, voando à velocidade de cerca de 190 nós (352 km/h) e alternando Dakar no continente africano.
Todavia se por qualquer motivo tiver mesmo de prosseguir para essa alternativa, no caso de mau tempo no Sal, por exemplo, o avião não pode sequer tentar uma descida e deverá continuar mantendo rigorosamente o nível sob pena de não conseguir alcançar o ponto alternado. São os inarredáveis percalços que as etapas críticas inexoravelmente impõem. Felizmente isto nunca aconteceu, porém em condições de vento favorável o avião deverá atingir Dakar para um pouso direto, no limite, sem oportunidade de nem mesmo circular. O nível de voo escolhido para a travessia é o FL 130, isto é, 13.000 pés (3.900 metros), para toda a esquadrilha, porquanto esta é aproximadamente a maior altitude a que um piloto com o organismo habituado ao voo consegue se expor e resistir durante as 7h30m do percurso sem usar o oxigênio do avião.
Como o T-27 possui autonomia de combustível para cumprir o trajeto, mas não possui autonomia de oxigênio, planeja-se o voo na maior altitude em que não se faz necessária a utilização da máscara, conservando-se o precioso gás para ser usado, em eventual emergência, somente nas quatro horas finais do voo, caso seja necessário subir em busca de correntes de vento mais favoráveis, ou visando-se a um menor gasto de querosene quando se pega forte vento de proa e o consumo de combustível começa a preocupar (a título de ilustração, já fiz uma vez, de Bandeirante, o trecho Ilha do Sal-Recife, a 14.000 pés de altitude – 4.200 metros – em voo direto de 8h50m, sem usar o oxigênio, trasladando enfim, de volta para o Brasil, o PT-GKJ de que tratou o artigo “De Bandeirante do Rio á Somália”, publicado no n° 188 set-out/1992 da Revista Aeronáutica).
O equipamento extra de navegação utilizado para esses deslocamentos transcontinentais é o Ômega, pré-instalado no Bandeirante e somente em um dos Tucanos. Trata-se de um computador que processa ondas de rádio emitidas por diversas estações especiais espalhadas pelo mundo; escolhendo as três melhores emissões no momento e, por triangulação, fornece a qualquer instante as coordenadas do local sobrevoado, velocidade do avião no solo, vento, desvios da rota, tempo, distâncias estimadas ao destino ou alternativas, etc., etc.; é um ótimo e imprescindível companheiro de voo e só dele vamos depender durante a travessia, nas muitas horas em que, devido à grande distância, os equipamentos convencionais de navegação ficam inoperantes por não receber qualquer sinal rádio.
Finalmente vamos abordar o que é o mais importante nesse voo ousado, qual seja, o assunto segurança. O fato de o avião possuir unicamente um motor não chega a preocupar in extremis. A turbina da série PT 6 produzida pela Pratt and Whitney do Canadá e que compõe a grande maioria dos aviões fabricados pela EMBRAER é confiabilíssima; é mesmo um verdadeiro primor da engenharia mecânica. É uma delas que equipa o T-27 e nos proporciona a tão almejada e necessária tranquilidade nas várias incumbências desempenhadas. Nos meus quase onze anos de empresa, considerando apenas o Tucano, tive oportunidade de fazer entregas desta aeronave no Paraguai, na Venezuela (várias), em Honduras, na França, Egito, Iraque, demonstrações no Marrocos, Congo, Camarões, Angola, Arábia Saudita, no Sri Lanka (antigo Ceilão), uma ilha a sudeste da Índia, lá no Oceano Índico – o ponto mais afastado do Planeta – onde um T-27 jamais alcançou! E a volta ao Brasil ainda foi via Paris, só para complicar! Sempre com a PT 6. O que já voei de monomotor em rotas transoceânicas foi muita coisa! Para quem estava beirando os sessenta, talvez até tivesse sido recorde. Pena que os editores do Guinness, lá em Londres, não saibam disso. Mas deixa pra lá.
Entretanto as restrições do avião para esse tipo de missão não se resumem somente ao fato de ser monomotor, ele também é monoalternador. E perder o alternador é tão grave quanto perder o motor, já que o avião ficará sem energia elétrica, não poderá efetuar a transferência de combustível dos tanques externos para os internos (a transferência é elétrica) e vai mergulhar no oceano em uma autêntica “pane seca”, paradoxalmente, com os tanques adicionais cheios de querosene! Contudo o avião não é somente monomotor e monoalternador, ele também é monobomba de transferência de combustível do tanque externo adaptado, o que significa dizer que se essa bomba falhar recairemos no caso anterior e a aeronave vai igualmente cair por falta de alimentação do motor.
Como se vê, o avião monomotor é também “mono” em quase tudo e, de acordo com o que dizem troçando os pilotos de multimotores, já decola em emergência. Evidentemente, a possibilidade destes fatos acontecerem juntos ou isoladamente, e ainda mais no meio do Atlântico, é assaz remota, mas eles inegavelmente fazem parte do rol dos fatores adversos cujo somatório, num específico instante, pode dar o cunho ou o valor negativo que faz com que determinado segmento de uma viagem seja caracterizado como a Etapa Crítica.
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Mas enfim se o avião tiver mesmo que cair no mar, a situação ainda assim não estará irremediavelmente perdida; a possibilidade de uma amerissagem forçada é nula, já que os pilotos dependerão inicialmente de um exíguo bote inflável de cerca de 1,5×1 metro que está acondicionado sob seus assentos e cujo acesso só é praticável através do desenvolvimento do paraquedas principal, o que também só é possível de ser obtido através da ejeção. Isso significa dizer que se o avião tiver que cair no oceano os pilotos deverão forçosamente se ejetar a uma altitude de segurança, livrar-se do paraquedas cerca de cinco metros antes de tocar a água e inflar o tal botezinho que então estará preso por uma fita aos seus coletes salva-vidas.
Tudo isso, embora meio inverossímil, deverá ocorrer quase que natural e automaticamente como decorrência da ejeção comandada. O Bandeirante, em seguida, abandonando o nível, fará um voo rasante a baixa velocidade e tentará “bombardear” os náufragos com um bote adicional, o seu próprio, este um pouquinho maior, para quatro pessoas, e é tudo o que pode fazer pois deverá retomar à altitude e prosseguir viagem imediatamente sob pena de também acabar não tendo combustível para atingir o destino e a alternativa.
Os demais Tucanos componentes da esquadrilha mantêm o nível e lá de cima ficam a tudo observando numa prece silenciosa. Se o Bandeirante vai conseguir acertar o alvo lançando o bote adicional razoavelmente próximo aos sobreviventes, se estes vão conseguir alcançá-lo a nado em alto mar, se vão desfruir desenvolvê-lo e nele subir e, em progressão, se enfim vão lograr ser localizados por qualquer aeronave ou finalmente ser recolhidos por algum navio… bem… respeitando a lei das probabilidades, é como costumamos dizer em gíria aeronáutica utilizando o alfabeto fonético – “Sierra Delta Sierra” (S.D.S.) – o que traduzindo em miúdos significa: “Só Deus Sabe!”. Manifestamente isso tudo é a teoria e nunca ocorreu, mas se acontecer, esta será, em consequência, a progressão natural e exata dos fatos.
A avizinhação e pouso na Ilha do Sal pôs fim aos trabalhos desse estafante e incomum dia de viagem. Na manhã seguinte prosseguimos por mais 4h30m sobre a água para fruirmos atingir as Canárias. A chegada à simpática e já tradicional Las Palmas proporcionar-nos-á, entre iguarias espanholas e compras de zona franca, um merecido repouso de um dia inteiro. O quinto dia inicia-se com mais 4h sobre do mar para, depois de quase 16h de voo integralmente sobre o Atlântico, enfim voltarmos a ver um continente, a velha e badalada Europa, através do litoral sul da Espanha. Daí seguimos costeando por mais 1h30m e pousamos em Alicante onde teremos mais um dia de repouso preparando-nos para a próxima e longa jornada.
O sétimo dia constitui-se no voo sobre o Mediterrâneo, com características e duração semelhantes à travessia do Atlântico, mas com a diferença de que, de quando em vez, sobrevoa-se uma ilha, o que serve para quebrar a enjoativa monotonia do céu e mar. Assim, decolamos de Alicante, passamos sobre Palma de Mallorca, sobre a Sardenha, sobre a Sicília e após quase seis horas atingimos a ilha de Kerkira (Corfu) já na Grécia, para um rápido reabastecimento; o último destino do cansativo dia, no entanto, será a ilha de Creta (Iráklion) distante ainda 2h15m de voo, tudo sobre o mar.
O oitavo dia foi o da chegada ao Cairo, num prenúncio de que a missão se aproximava do seu final. Seriam mais três horas de voo, a maior parte sobre o Mediterrâneo, demandando a capital egípcia, penúltima escala da viagem. Fizemos um só plano de voo em formação – Bandeirante (líder) e Tucanos – e toda atenção a partir de agora seria pouca já que nos aproximávamos de área conflagrada. Ainda sobre o mar fomos interceptados por um caça a jato que nos observava e fez duas passagens a grande velocidade, acima e abaixo de nós. Jamais saberemos quem foi.
Após quase duas horas começamos afinal a vislumbrar a tênue linha branca que assinalava a costa oeste de Alexandria. Era a África – o Continente Negro – cujo adjetivo ali contrastava com a alvura das areias do deserto egípcio. Aproximávamo-nos do Cairo e recebemos instruções para contatar o Controle de Aproximação; o Bandeirante era o encarregado das comunicações para toda a esquadrilha e iria propiciar um fato pitoresco em oposição às agruras naturais da viagem, e que serviria de “pano de fundo”, para as gozações do resto do dia.
Como aquela área terminal é sempre muito tumultuada decido ao grande movimento de aeronaves, só fomos atendidos depois da quarta ou quinta chamada. O controlador, em resposta, falando continuamente muito rápido e com vários aviões ao mesmo tempo bradou entre dentes num inglês provido de forte acento árabe em que o “p” é substituído pelo “b”: Report abeam pyramids (acuse no través das pirâmides). O copiloto do Bandeirante, novato em operações internacionais, sem entender direito, deu o clássico Say again (diga novamente), que é a solicitação para que a instrução fosse dada de novo. Ela foi repetida na confusão geral, entremeada com mensagens para outros aviões e já com certa impaciência por parte do controlador:
Report abeam pyramids, disse ele outra vez. O copiloto, ainda sem entender, mas agora desconfiando tratar-se de algum fixo-rádio, arriscou no meio de toda aquela balbúrdia: Say again and confirm the frequency julgando poder sintonizar a tal incompreensível estação. Aí o controlador perdeu a serenidade de vez e, abandonando a fraseologia padrão, redarguiu quase aos gritos: Frequency?!?! THE PY-RA-MI-DS!!! VERY, VERY, VERY OLD MONUMENTS…!!! DON’T YOU KNOW THEM?????
Esta era a minha segunda estada no Egito e como de costume aproveito ao máximo a rara e valiosa oportunidade que a profissão nos outorga, qual seja, a de ver e conhecer o mundo. Quando estou no exterior desfruto todos os valiosos segundos disponíveis, partindo sempre do pressuposto de que aquela ocasião pode ser a última e talvez não se renove jamais. Assim pensando fui logo dizendo aos companheiros ao chegarmos: “Amanhã vou ao grande mercado da cidade e ver as maravilhas do Museu do Cairo; vou ver a máscara de ouro do Tutancâmon. Quem quer vir comigo?” convidei. Todavia ninguém se habilitou. Na manhã seguinte ao sair do hotel ainda me lembro quando alguém perguntou: “Escuta aqui ô meu: máscara de quem mesmo que você vai ver?”
Ao começo da noite do nono dia recebemos instruções de não mais abandonarmos o hotel pois as várias autorizações de sobrevoo estavam já processadas e deveríamos prosseguir a qualquer momento. Ficamos então na situação de “alerta no lobby”, plano de voo preenchido, prontos para seguir destino, provavelmente na manhã do décimo dia. Porém como nessa manhã nada ocorreu, já pensávamos que a viagem ficaria para o outro dia cedo, dada a grande distância que separava o Cairo de Bagdá e ao adiantado da hora.
Ao fim da tarde, entretanto, recebemos a surpreendente determinação de seguirmos imediatamente para o aeroporto!?! “Não vai dar…” foi a conclusão. Mas já haviam determinado por nós: assim teria de ser feito e assim foi feito. E mais: deveríamos trasladar, além dos nossos, outros dois T-27 que havíamos entregado ao governo do Egito no mês anterior, numa viagem prévia da qual eu também participara. Para cumprir esta nova diretriz tivemos então de nos desdobrar. Cada T-27 seguiria a partir de agora apenas com um piloto e faríamos um “grupão” de 6h15m de voo e com seis aviões (um Bandeirante e cinco Tucanos), na calada da noite, sobre as areias dos desertos egípcio e arábico! Como corríamos o risco de interceptação, estrito silêncio rádio deveria ser mantido e unicamente uma mensagem de posição para certa estação da Arábia Saudita poderia ser tentada durante todo o trajeto. Coisa de louco mesmo…
Foi-nos imposto um novo plano de voo totalmente modificado visando nos afastar ao máximo das fronteiras de Israel e da Jordânia. Assim, ao anoitecer, decolamos no rumo sul com proa de Luxor; depois do bloqueio de Luxor navegamos para leste, cruzamos o Mar Vermelho e iniciamos o longo voo sobre a Península Arábica. Somente o Bandeirante e o meu Tucano possuíam Ômega, e se algum outro se desgarrasse da esquadrilha, adeus. E isto realmente viria a acontecer… com todos!
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Transcorridas 5h30m de viagem e a cerca de quarenta minutos fora, começamos enfim a receber indicações do VOR de Bagdá; estávamos chegando. Mas, avis rara, chovia à noite no deserto! O mau tempo e a turbulência faziam com que cerrássemos cada vez mais o voo de formação noturno até chegarmos ao limite da segurança, porém quando a visibilidade caiu mesmo a zero a solução foi “espirrar a formatura” passando do voo visual ao voo por instrumentos.
Os músculos retesados, a mão crispada sobre o manche, cada um então, às cegas, tomou sua proa subindo ou descendo, de modo que nos transformamos em seis aviões escalonados em altitude com separação de 150 metros, tudo conforme combináramos previamente em briefing. Deu certo! Não houve colisões! Contudo o Controle Bagdá ficou perdido e não sabia mais quem era quem nem onde estava. Tivemos deste modo de ajudá-lo, cada qual dando a posição e dizendo a sua altitude no “pau de sebo”. Ai então, foi fácil para o radar iraquiano conduzir um a um até o solo. Chegávamos assim, sãos e salvos à Mesopotâmia.
Apesar da chuva e do adiantado da hora estávamos sendo aguardados. Fomos muito bem recebidos pela Força Aérea cuja oficialidade nos causou forte impressão. Eram todos muito enquadrados, falando inglês fluente, excelente apresentação. Conduziram-nos após a um hotel reservado a hóspedes do governo, no centro da cidade.
Durante o deslocamento foi quando enfim tomamos o primeiro contato com a guerra; a cada 500 metros encontrávamos pontos de defesa antiaérea superequipados com artilharia, mísseis e radar, guarnecidos 24 horas por dia, a espreita das incursões dos Phantom iranianos que frequentemente ocorriam. Era o espelho da dura realidade do conflito. Soubemos em seguida que a nossa missão não havia ainda terminado. Deveríamos, na manhã seguinte, conduzir as aeronaves até Tikrit, uma base de formação de pilotos distante mais 50 minutos de voo para o norte, rumo à fronteira com a Turquia. O negócio era mesmo “Pra lá de Bagdá!”.
Finalmente no décimo-primeiro dia de viagem entregamos todos os Tucanos em Tikrit. Eram os primeiros da nossa pujante indústria aeronáutica recebidos pelo Iraque. Fomos em seguida convidados a um banquete oferecido pelo comandante. O menu constituía-se de carne de carneiro cozida, uma especialidade da terra e acompanhando o hábito local deveríamos nos servir sem talheres. A folhas tantas, o oficial superior sentado à minha direita notou que eu não estava comendo um certo naco tido como um dos mais saborosos do carneiro. Como todos já se haviam servido e as travessas encontravam-se vazias, sem titubear, retirou a tal parte com as mãos, do seu próprio prato, repousando-a sobre o meu, tudo ao melhor estilo árabe. A carne eslava realmente deliciosa…
Após a ágape fomos agraciados com mimos oferecidos pelo governo em reconhecimento aos nossos feitos. Um dos companheiros recebeu um relógio tendo ao fundo a efígie de Saddam Hussein. Dissemos-lhe logo que era para que sentisse “insofreável entusiasmo” toda vez que olhasse as horas. Eu ganhei um jogo de caneta e lapiseira de ouro. Dei-o de presente ao meu filho quando se bacharelou em Economia, alertando-o tratar-se de peça histórica!
Naquela tarde a missão estava realmente encerrada e regressamos todos de Bandeirante a Bagdá, a fim de que retornássemos para casa em avião comercial. Todos menos eu e outro piloto. A nossa incumbência era trazer o avião-mãe de volta seguindo toda a rota ao inverso, do Iraque ao Brasil. Só chegamos afinal a São José dos Campos após mais nove dias, ao completar o vigésimo dia de viagem.
Voltei ao Iraque três meses depois, conduzindo a segunda esquadrilha constituída por mais três T-27, além do Bandeirante. A rota foi praticamente a mesma e as peripécias, angústias e perigos quase semelhantes, não tivesse ocorrido um fato inusitado! Estava havendo uma contraofensiva do Irã e recrudesciam as ações bélicas na região.
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Depois de entregar os aviões outra vez em Tikrit só nos permitiram tornar a Bagdá acompanhados por um oficial iraquiano, que veio a bordo para nos indicar “corredores aéreos mais seguros”. Chegamos bem. Mas na madrugada do dia em que deveríamos regressar ao Brasil fomos despertados por uma próxima e violenta explosão. Pulamos da cama sobressaltados e havia até quem quisesse abandonar o hotel a todo o risco. Bagdá havia sido atingida por um “Scud” iraniano e o tal petardo achou de cair bem próximo ao local onde estávamos! Passados os primeiros instantes de forte tensão e com as explicações prestadas pelos anfitriões de que se tratava de “ações da nossa defesa antiaérea”, tudo por fim foi retomando gradativamente à normalidade e o silêncio outra vez envolveu completamente a noite. Só na manhã seguinte é que viemos a saber, em verdade, o que realmente se passara. Isto tudo aconteceu exatamente às 2h40m da madrugada, hora local, do dia 14 de março de 1985.
É deveras desestimulante participar de corpo presente dos perigos de um conflito como estreme expectador; o sentimento que se instala na alma, gerado pela impossibilidade de satisfazer o natural instinto de autodefesa, traduz-se numa imensa e profunda frustração. Se melhor quisesse retratá-la, em me atrevendo a parodiar o grande Francisco Otaviano no seu conhecido Ilusões da Vida, até poderia abalançar-me na ousadia se dissesse:
“Quem passou pela guerra em branca nuvem e em leito suave adormeceu;
quem não sentiu o fio da espada, quem passou pela guerra e não sofreu
foi espectro de soldado, não foi soldado: só passou pela guerra: não combateu!”
Houve uma terceira esquadrilha ao Iraque conduzindo as últimas aeronaves que deveriam ser entregues voando. As demais, de um total de 134, foram montadas no Cairo através de “kits” fornecidos pela EMBRAER e trasladadas ao destino por pilotos egípcios ou iraquianos. Destas, 54 ficaram com o Egito de acordo com o previsto no contrato; eram todas, ainda, do tipo E-312. Agora sim, está vindo aí o Tucano H, o SUPER-TUCANO. Vamos ver!
Fizemos a nossa parte percorrendo a longa caminhada entregando todos os aviões no destino, rigorosamente dentro dos prazos e sem qualquer incidente ou contratempo, tudo conforme fora determinado. Apesar de todas as vicissitudes, adversidades e dificuldades vencidas, cumprimos nossa tarefa fazendo talvez até bem mais do que pudessem esperar do grupo de voo. É sempre mui gratificante poder repousar a cabeça no travesseiro sentindo autêntico pundonor profissional. Mesmo que outros desconheçam.
Contudo a experiência iraquiana foi extraordinária e profícua, legando reflexos positivos os mais variados, tanto no campo profissional, quanto no cultural. Sentimo-nos como que mergulhados na maravilhosa atmosfera do Conto das Mil e Uma Noites em que o ambiente era evidentemente Bagdá, a “Sheherazade” poderia ser bem representada pelas linhas graciosas da nossa aeronave, “Sinbad, o Marujo”, poderia ser encarnado pelos aeronautas brasileiros, e o Sultão… bem, o Sultão estava lá. E continua lá!
A História da Humanidade é a história das guerras e dos homens que as fazem. Infelizmente isso é uma realidade. Uma grande e incontestável realidade. Mas até quando afinal será assim? Sempre será assim! O sentimento de guerra é inerente ao bicho homem; é biológico, é atávico; faz parte da sua natureza intrínseca.
Se analisarmos por amostragem o período que abrange o curto espaço de tempo de uma vida humana, se perguntarmos por exemplo, a quem tem hoje oitenta anos, de quantas guerras participou ou quantas guerras testemunhou, poderíamos então, a grosso modo, relacionando como refutação citar: a Guerra Sino-Japonesa, a Guerra Civil Espanhola, a Guerra da Coréia, a Guerra do Vietnã, as Guerras Árabe-Israelenses, a Guerra Irã-Iraque, a Guerra das Malvinas-Falklands, a Guerra do Golfo e, atualmente, a guerra na antiga Iugoslávia, além, é claro, de duas sangrentas e arrasadoras Guerras Mundiais. É muita coisa! Resta-nos, na nossa pequenez, atordoados, unicamente inquirir: entre quem será a próxima? Quando será a próxima? Onde será a próxima?
Para satisfazer a todas essas perguntas, uma única, singela, porém extraordinariamente sábia resposta:
“Sierra Delta Sierra”
Segundo o artigo, o EMB-312 Tucano foi escolhido como o trinador da Força Aérea Iraquiana durante a década de 80… Então porque o Iraque na mesma época, também comprou o Pilatus PC-9?