Apesar da motivação religiosa, as Cruzadas não foram campanhas militares movidas exclusivamente pela fé cristã. Além da libertação de locais sagrados, essas empreitadas tiveram diversos objetivos: tais como a contenção da expansão muçulmana, o restabelecimento de linhas de comunicação e rotas comerciais e a cobiça colonial por novas terras, além de redirecionar tensões sociais vividas na Europa.
Introdução
As Cruzadas foram uma série de oito campanhas militares realizadas num período de dois séculos pela cristandade para libertar os lugares sagrados. Começaram com um grande sucesso, tornando-se um banho de sangue e terminando num estrondoso fracasso.
A ideia de libertar a Terra Santa entusiasmou os diversos segmentos da sociedade medieval, aglutinando-os em torno de sua execução. Esse entusiasmo era justificado não só pelo aspecto religioso, mas principalmente pelo contexto político, econômico, social e psicológico existente na época que tornou as Cruzadas possíveis, como poderemos observar.
Causas
A partir do século VII os seguidores da Maomé iniciaram o processo de expansão da fé islâmica, conquistando a Arábia, a Palestina e ocupando lugares sagrados para os cristãos, tais como Jerusalém, Belém e Nazaré, depois o Egito e a Península Ibérica, e mantendo constante pressão sobre Constantinopla, que era o elo de ligação material e espiritual entre o oriente e o ocidente.
A expansão muçulmana e a ação de piratas sarracenos romperam as vias de comunicação que ligavam a Europa ao oriente, causando uma drástica redução no comércio, forçando o isolamento econômico da Europa e a adoção de uma economia agrícola voltada para o consumo interno. Prejudicou também as peregrinações cristãs aos locais sagrados (peregrinatio sacra), que vinham acontecendo desde o século IV, interferindo no desejo de adorar os locais e objetos sagrados, que era um importante elemento de união da cristandade.
A Europa, na primeira metade do século XI, experimentou um grande crescimento econômico proveniente do aumento da produção resultante da adoção de novas técnicas agrícolas. No entanto, na segunda metade, passava por uma crise. O grande crescimento demográfico começou a exercer forte pressão econômica sobre os senhores feudais, que se viram obrigados a romper com os laços de servidão. Isso criou uma ampla classe de pessoas marginalizadas que não se enquadravam mais na estrutura feudal, e muitos que não conseguiram outras ocupações nas cidades, viviam na mendicância ou de assaltos e furtos.
A cobiça por terras e o instinto beligerante da nobreza, que tinha como opções as guerras de conquista no exterior ou a pilhagem e saque na vizinhança, gerou um aumento nas tensões entre os senhores feudais, tornando cada vez mais difícil a manutenção da “Paz de Deus”, uma proibição de combater em determinados dias santos imposta pela igreja.
Foi nesse contexto que a Igreja encontrou as condições necessárias para a organização das cruzadas. Numa sociedade sem distinção entre o sagrado e o terreno, a igreja utilizou seu domínio sobre o sagrado, que era o elemento comum numa Europa cristã politicamente fragmentada, para exercer o domínio político sobre a nobreza, dando ao papa autoridade sobre assuntos religiosos e políticos. Cabe lembrar que, na sociedade medieval, a justificativa para as diferenças entre as classes sociais e para o poder da nobreza era religiosa, dando origem à relação simbiótica entre o clero e a monarquia.
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Dessa forma, as Cruzadas foram uma válvula de escape para todas as tensões sociais existentes, mas tendo como pano de fundo a motivação e justificativa religiosa. Para o papa Urbano II as Cruzadas, além de acabar com a ameaça muçulmana na Europa e Ásia Menor, direcionaria o espírito guerreiro da nobreza para o estrangeiro e seria o instrumento pelo qual seria possível restaurar a unidade da igreja cristã. No entanto, ela acabou por criar hostilidades entre a igreja cristã do Ocidente e do Oriente, terminando na conquista de Constantinopla pelos cruzados em 1204, durante a quarta Cruzada.
Ela atenderia ao desejo por terras de nobres e camponeses, de reestabelecimento das rotas comerciais para a burguesia, principalmente a italiana, além de reestabelecer a peregrinatio sacra, que, como dito, era um desejo comum a todos cristãos.
Características das Cruzadas
As Cruzadas estão normalmente associadas à ideia de guerra santa, pois foi conduzida por um poder religioso, ou realizada em favor de interesses religiosos. Isso está simbolizado pela cruz que identificava as ordens religiosas, como os templários e os hospitalários.
Por isso, nem todo o combate contra os muçulmanos do período pode ser considerado como cruzada ou guerra santa, mesmo estando presentes algumas de suas características, pois não foram iniciados e conduzidos por interesses religiosos. Pode-se citar o esforço bizantino em reconquistar os territórios da Ásia Menor e a Síria, no século X, ou libertação da Sardenha por genoveses e pisanos, no século XI, a fim de reestabelecer o comércio no Mediterrâneo.
Mesmo sendo a guerra reprovada pelos fundamentos cristãos, ela tornou-se um meio pelo qual o homem temente a Deus protege a civilização contra o barbarismo para promover a justiça divina. Para ser considerada justa, uma guerra deveria ser de caráter defensivo, contra o mal; em defesa dos mais fracos e necessitados; deveria ser declarada por uma autoridade constituída; e, acima de tudo, promover a justiça, o que fundamentava a atividade da cavalaria.
Em geral, combate entre cavaleiros não tinha como finalidade a morte, mas o apresamento para futuro resgate, pois um cavaleiro deveria ser misericordioso sempre que possível e essa misericórdia também foi estendida aos muçulmanos durante as Cruzadas, dando prioridade à conversão. Esse pensamento pode ser observado na chamada Teoria dos Dois Gládios, defendida por muitos filósofos cristãos do período, como Ramon Llull (1232-1316), que pregava a conversão a quem reconhecesse seu erro em não crer em Jesus Cristo, ou a morte para quem não se submetesse.
Como o objetivo principal era a libertação dos locais sagrados, em especial o Santo Sepulcro, as cruzadas ganharam características de peregrinações armadas. As peregrinações mantinham aceso no imaginário da população as histórias sobre a Terra Santa e o culto ao Santo Sepulcro. Esses locais ganhavam uma importância ainda maior ao serem visitados, pois representavam a materialização e consequente afirmação de crenças. Em geral, as peregrinações têm como objetivo a expiação, surgindo daí outra característica das Cruzadas: o sacrifício feito ao participar delas garantiria proteção divina durante o combate, perdão aos pecados cometidos e salvação da alma dos que tombassem a serviço do Senhor.
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Por fim, outra característica apontada por alguns autores sobre as Cruzadas é que também foi um empreendimento colonial, tendo em vista o desejo por terras motivado pelos problemas econômicos e sociais citados anteriormente, por parte da nobreza e dos camponeses.
Consequências
Ao fim das Cruzadas, a nobreza encontrava-se endividada. Como não havia mais a opção de campanhas militares no estrangeiro, a manutenção da “Paz de Deus” tornou-se impossível de ser mantida, dando origem a uma série de conflitos que contribuíram para a desarticulação da estrutura produtiva, com o direcionamento de camponeses para a guerra. Além disso, a pressão dos suseranos sobre os vassalos aumentou a exigência de tributos, que deram origem a diversas revoltas da classe camponesa, que começou a abandonar o campo e o sistema de servidão e ir para as cidades em busca de oportunidades e trabalho remunerado.
Como os senhores feudais ficaram impedidos de cumprir com suas obrigações de defesa e administração das terras reais, os reis passaram assumir essas funções, formando um exército permanente e um corpo administrativo para tal. Além disso, o fracasso das Cruzadas, que foi um empreendimento idealizado pela Igreja, diminuiu a autoridade papal sobre os assuntos políticos. Esse fortalecimento do poder real abriu caminho para a centralização política e formação dos estados nacionais absolutistas na Idade Moderna.
A classe burguesa foi a grande beneficiada com as Cruzadas, pois durante o período em que o comércio no Mediterrâneo foi reaberto, obteve grandes lucros comerciando e transportando Cruzados para a Terra Santa e tornando as atividades econômicas mais complexas, dando origem a bancos, cartas de crédito e câmbio, entre outras, o que foi fundamental para o novo modelo econômico que estava se desenvolvendo, baseado no capital.
Dessa forma, a burguesia formou laços com a realeza, que dependia de crédito para financiar a formação dos exércitos nacionais e de um corpo administrativo, tendo em vista que a nobreza possuía muitas terras, mas pouco dinheiro. Observando em retrospecto todos os acontecimentos históricos e a participação burguesa nesses processos, com certeza a ascensão burguesa foi a maior de todas as consequências das Cruzadas.
Conclusão
A expansão muçulmana e as pressões político-religiosas por ela geradas foram as principais causas das Cruzadas, mas não explicam adequadamente os motivos que levaram a cristandade europeia a empreender tal projeto. Havia diversos fatores internos que a justificavam, como a necessidade de novas áreas cultiváveis para alimentar uma população em crescimento, a necessidade de direcionar o ímpeto guerreiro da nobreza para o exterior a fim de manter a “Paz de Deus”, o desejo de veneração dos lugares e objetos sagrados e a necessidade de reabrir as rotas comerciais por parte da nova classe burguesa em ascensão.
A própria ideia de guerra, que no início da cristandade não era bem vista, passou a ser aceita e estimulada, desde que seguisse os preceitos cristãos da Guerra Justa, que, por sua vez, eram a base dos ideais da cavalaria, classe guerreira da época.
De maneira resumida, as Cruzadas tiveram como principais características a libertação dos locais sagrados para a cristandade, a indulgência e proteção divina aos participantes e a condução orientada por fins religiosos.
Porém o empreendimento, que era visto como solução para os diversos problemas que ameaçavam a estabilidade da cristandade e da sociedade europeia da época, acabou por acentua-los, acelerando as mudanças que acabariam por iniciar o lento processo de perda de poder político da igreja e o fortalecimento da monarquia e, mais ainda, da burguesia, que por fim foi a principal responsável pelo fim das tradições medievais.
Bibliografia
PARENTE, Paulo André L.; MELLO, Nilson Vieira Ferreira de. Guerras Medievais. Palhoça: UnisulVirtual, 2019. 19 p.
Origem das Cruzadas. Palhoça: UnisulVirtual, in Midiateca
“As Cruzadas” em Só História. Virtuous Tecnologia da Informação, 2009-2018. Disponível em: http://www.sohistoria.com.br/ef2/cruzadas/p2.php. Acesso em: 28 de julho de 2018.
“As Cruzadas – de 1096 a 1270: uma cronologia” em Ecclesia. Disponível em: https://www.ecclesia.com.br/biblioteca/historia_da_igreja/as_cruzadas_de_1096_a_1270_uma_cronologia.html. Acesso em: 28 de julho de 2018.
COSTA, Ricardo da; LEMOS, Tatyana Nunes. Com ferro, fogo e argumentação: cruzada, conversão e a teoria dos dois gládios na filosofia de Ramon Llull. Revista Mirabilia, nº 10, 2010. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3217581.
Boa tarde,
É inegável a importância das cruzadas para manutenção e firmamento da cultura ocidental e todo conjunto seja ele filosófico, político ou religioso. Novamente a história nos mostra que não se constrói nada rotulando os atores seja eles de mocinho ou bandido.
Uma boa sinópse. Eu gostei.
Grato Joel. Forte abraço!