Dissolução da Iugoslávia: Identidades, Normas e Narrativas sob a Ótica Construtivista

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Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

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A dissolução da Iugoslávia como construção social: como identidades nacionais, narrativas políticas e práticas normativas internacionais moldaram a fragmentação federativa e a reconfiguração da ordem pós-Guerra Fria.


Introdução

Este artigo dá continuidade a um primeiro estudo de caráter histórico, quando iniciamos analisando as origens da Iugoslávia, destacando como etnias, impérios e a geopolítica dos Bálcãs moldaram um mosaico complexo de identidades e tensões. A leitura do primeiro artigo, Origens Históricas da Iugoslávia: Etnias, Impérios e Geopolítica nos Bálcãs, é recomendada para quem deseja compreender em detalhe o pano de fundo histórico da dissolução da federação.

Neste segundo trabalho, o olhar se voltará para o enfoque proporcionado pela teoria do construtivismo, buscando analisar como identidades e normas construíram interesses e comportamentos que culminaram na fragmentação do Estado, em interação com pressões externas. A escolha por essa abordagem decorre da necessidade de compreender a dissolução da Iugoslávia para além dos fatores materiais e institucionais. O realismo, ao enfatizar a balança de poder, e o liberalismo, ao destacar aspectos institucionais e a cooperação, oferecem explicações relevantes, mas insuficientes para captar a dimensão simbólica do processo. O construtivismo, por sua vez, permite revelar como narrativas, discursos e práticas sociais foram mobilizados para legitimar a fragmentação da federação e sustentar a emergência de novos Estados.

Essa opção dialoga com reflexões mais amplas da teoria crítica das Relações Internacionais. Robert Cox lembra que “uma teoria é sempre para alguém e para algum propósito” (COX, 1986), sublinhando que conceitos e estruturas não são dados naturais, mas produtos de contextos sociais e políticos. Jatobá (2013) reforça essa perspectiva, ao destacar que as teorias de Relações Internacionais (RI) devem ser compreendidas como construções históricas, vinculadas a projetos políticos e sociais.

Aplicar um olhar construtivista ao caso iugoslavo significa reconhecer que interesses e identidades não estavam previamente determinados, mas foram socialmente construídos e mobilizados por elites políticas, discursos nacionalistas e práticas institucionais. Como destacam Silber e Little, “o colapso da Iugoslávia não foi inevitável; foi o produto de escolhas políticas e da retórica nacionalista” (SILBER; LITTLE, 1996, p. 23, tradução nossa).

Entretanto, como observa Kugler (1992), a dissolução não pode ser entendida apenas como processo interno. A OTAN, diante do fim da bipolaridade, buscava redefinir sua missão, passando de uma estratégia de “flexible response” (resposta flexível) para objetivos voltados à estabilidade regional e operações além de suas fronteiras tradicionais. Os Bálcãs tornaram-se um laboratório para a construção de normas e práticas que legitimaram a liderança americana e consolidaram uma ordem unipolar.

O objetivo deste artigo, portanto, é mostrar que a dissolução da Iugoslávia foi uma disputa por significados e legitimidades, revelando dimensões simbólicas e normativas que complementam, e não substituem, as análises históricas e realistas, ao mesmo tempo em que se conectam à redefinição estratégica da OTAN no pós-Guerra Fria.

Fundamentos Construtivistas

O construtivismo, enquanto abordagem das Relações Internacionais, parte da premissa de que interesses e identidades não são dados objetivos, mas sim construções sociais que emergem da interação entre atores, normas e discursos. Essa perspectiva rompe com leituras essencialistas e materialistas, ao enfatizar que a realidade internacional é moldada por significados compartilhados e práticas sociais.

No campo das Relações Internacionais, o termo “anarquia” refere-se à ausência de uma autoridade central acima dos Estados. Tradicionalmente as teorias realistas interpretam a anarquia como uma premissa, mas que inevitavelmente gera insegurança, competição e conflito. O construtivismo, porém, questiona essa leitura determinista: a anarquia não possui um significado único ou fixo, mas depende das práticas sociais e das interpretações que os Estados constroem.

Alexander Wendt sintetiza essa visão ao afirmar que “A anarquia é aquilo que os Estados fazem dela: a autoajuda e a política de poder são instituições, não características essenciais da anarquia.” (WENDT, 1992, p. 395, tradução nossa). Em outras palavras, a anarquia não determina automaticamente o comportamento dos Estados; são as práticas sociais que definem instituições como a autoajuda e a política de poder. Assim, identidades e interesses não são exógenos, mas construídos por meio da interação social (WENDT, 1992, p. 398).

Sergej Flere e Rudi Klanjšek reforçam essa lógica ao afirmar que “O caso iugoslavo demonstra que a construção de nações não é um processo natural, mas sim de construção e reificação1” (FLERE; KLANJŠEK, 2016, p. 843, tradução nossa). Para os autores, a formação de nações não decorre de dados objetivos ou naturais, mas de processos políticos e sociais que cristalizam identidades antes mais fluidas. O caso iugoslavo mostra como repúblicas e províncias funcionaram como unidades de reificação, transformando diferenças culturais em fronteiras políticas.

Hugo Marcos-Marné acrescenta que “A nação não constitui um dado objetivo e natural prévio à mobilização, mas é o fruto de um processo político além de social” (MARCOS-MARNÉ, 2014, p. 110, tradução nossa). Para o autor, os nacionalismos iugoslavos foram processos eminentemente políticos, moldados por elites e discursos, e não fenômenos espontâneos derivados de diferenças históricas ou étnicas.

Daniel Jatobá também enfatiza que “Dizer que a realidade é socialmente construída implica reconhecer que aquilo que consideramos realidade resulta dos entendimentos coletivos e das práticas que constituem o mundo social. O que existe resulta de escolhas feitas por agentes humanos, mesmo quando elas não ocorrem sob circunstâncias livremente escolhidas por nós” (JATOBÁ, 2013, p. 82).

Ele observa ainda que “tanto as dinâmicas de cooperação, quanto as de conflito, tanto a guerra como a paz, tudo isso resulta do modo como os agentes estruturam suas relações sociais e, não menos importante, como as estruturas intersubjetivas constroem os próprios agentes” (JATOBÁ, 2013, p. 82). Essa análise reforça a ideia de que a realidade internacional é produto de práticas sociais e escolhas humanas, mesmo em contextos de restrição.

Nicholas Onuf, por sua vez, sistematiza essa lógica ao afirmar que o mundo é resultado das regras que os agentes criam e seguem. Em Worlds of Our Making, ele distingue três tipos de regras que condicionam a construção de qualquer realidade social: regras de instrução, que estabelecem como agir em determinadas situações; regras diretivas, que orientam comportamentos desejados; e regras compromissórias, que regulam acordos e compromissos entre atores (ONUF, 1989). Essa tipologia mostra como normas não apenas refletem práticas sociais, mas também moldam identidades e interesses.

Aplicando essas premissas ao caso iugoslavo, percebe-se que a dissolução da federação não pode ser explicada apenas por fatores materiais, como crise econômica ou disputas militares. Ela deve ser entendida como resultado da construção social de identidades nacionais, da mobilização de narrativas históricas e da institucionalização de normas que legitimaram a fragmentação.

Nesse contexto, a influência alemã pode ser interpretada sob a ótica construtivista: ao reconhecer precocemente Croácia e Eslovênia em 1991, a Alemanha não apenas reagiu a fatos consumados, mas construiu uma nova prática normativa, legitimando identidades separatistas como soberanias reconhecidas.

No plano interno, a identidade alemã pós-reunificação, marcada pela defesa da autodeterminação e dos direitos humanos, funcionou como narrativa legitimadora, confirmando que a dissolução da Iugoslávia foi também resultado de escolhas políticas e discursos normativos (SILBER; LITTLE, 1996).

Esse processo, contudo, não se limitou ao plano interno. Como observa Kugler (1992), a OTAN, diante do fim da bipolaridade, redefiniu seus objetivos estratégicos, passando de uma lógica de flexible response para a busca de estabilidade regional e operações além de suas fronteiras tradicionais. Os Bálcãs foram identificados como foco de instabilidade no novo sistema europeu, tornando-se um laboratório para a construção de normas e práticas que legitimaram a liderança americana e consolidaram a nova ordem internacional.

Tito e a Construção da Identidade Iugoslava

A figura de Josip Broz Tito foi central para a manutenção da unidade federativa da Iugoslávia. Como líder carismático e fiador da narrativa socialista autogestionária, Tito conseguiu articular um projeto político que conciliava diversidade étnica e estabilidade institucional. O modelo de socialismo autogestionário oferecia uma identidade coletiva que transcendia as diferenças nacionais, enquanto o Movimento dos Não-Alinhados, do qual Tito foi um dos principais arquitetos, reforçava a identidade internacional da Iugoslávia como ponte entre Leste e Oeste, conferindo legitimidade externa ao projeto federativo.

A morte de Tito, em 1980, representou um marco decisivo. Silber e Little observam que “A morte de Tito deixou um vazio no qual identidades concorrentes floresceram sem controle” (SILBER; LITTLE, 1996, p. 45, tradução nossa). Em outras palavras, a ausência de sua liderança abriu espaço para que identidades nacionais fragmentadas emergissem sem contenção, enfraquecendo a narrativa unificadora construída ao longo de décadas. A partir desse momento, elites políticas locais passaram a mobilizar discursos nacionalistas que corroeram o tecido federativo.

Hugo Marcos-Marné acrescenta que a crise econômica e a perda de legitimidade do regime abriram uma “estrutura de oportunidade política” (MARCOS-MARNÉ, 2014, p. 118, tradução nossa), permitindo que lideranças nacionalistas transformassem diferenças culturais em projetos políticos de separação. Assim, a combinação entre o vazio de liderança, a deterioração econômica e a mobilização de elites nacionalistas criou as condições para que a identidade iugoslava fosse substituída por identidades exclusivas e concorrentes.

Portanto, Tito logrou construir uma identidade coletiva durante seu governo, mas sua ausência revelou a fragilidade dessa construção. O construtivismo ajuda a compreender esse processo ao mostrar que identidades não são permanentes, mas dependem de práticas sociais, discursos e lideranças capazes de sustentá-las. Sem Tito, a narrativa da unidade perdeu força, e as repúblicas passaram a reificar suas próprias identidades nacionais, abrindo caminho para a dissolução da federação.

Como observa Kugler, “os Bálcãs e a Europa Oriental provavelmente permanecerão instáveis, e a OTAN deve considerar como responder a crises nessas regiões” (KUGLER, 1992, p. 87, tradução nossa). Essa percepção externa reforça que a crise iugoslava não foi apenas resultado da ausência de liderança interna, mas também parte de uma reconfiguração estratégica internacional.

A Influência Alemã e a Reconfiguração para uma Ordem Unipolar

A Alemanha desempenhou papel decisivo no processo de dissolução da Iugoslávia, sobretudo ao reconhecer precocemente a independência da Croácia e da Eslovênia em 1991. Esse reconhecimento não foi uma consequência inevitável da crise, mas uma escolha política que acelerou a fragmentação da federação. Silber e Little observam que “o reconhecimento europeu foi uma escolha política, não uma inevitabilidade histórica” (SILBER; LITTLE, 1996, p. 102, tradução nossa), destacando que a postura alemã foi determinante para legitimar os separatismos.

O papel da diáspora croata e eslovena na Alemanha Ocidental também foi relevante, reforçando identidades nacionais e pressionando por reconhecimento externo. Ao mesmo tempo, a identidade alemã pós-reunificação, marcada pela defesa da autodeterminação e dos direitos humanos, funcionou como narrativa legitimadora. Sob a ótica construtivista, a Alemanha não apenas reagiu a fatos consumados, mas construiu novas práticas normativas, cristalizando identidades separatistas como soberanias reconhecidas.

A atuação alemã abriu espaço para que os Estados Unidos e a OTAN redefinissem seu papel na ordem internacional pós-Guerra Fria. Com o fim da bipolaridade, Washington buscava consolidar sua liderança global, enquanto a OTAN necessitava de uma nova missão. Como observa Kugler, “crises futuras podem muito bem ocorrer além das fronteiras tradicionais da OTAN, e a Aliança deve estar preparada para responder se a estabilidade europeia estiver em jogo” (KUGLER, 1992, p. 145, tradução nossa). Essa antecipação mostra que os Bálcãs foram interpretados como laboratório para a redefinição da missão da OTAN.

As guerras nos Bálcãs ofereceram a oportunidade de reposicionar a aliança como guardiã da estabilidade europeia (SLOAN, 1995). As intervenções na Bósnia (1995) e em Kosovo (1999) foram justificadas como “humanitárias”, mas também funcionaram como demonstrações de poder e de adaptação da aliança à nova ordem (RISSE-KAPPEN, 1997; WHEELER, 2000). A narrativa da “intervenção humanitária” enfraqueceu a soberania absoluta dos Estados e reforçou a ideia de que a segurança europeia dependia da liderança americana e da OTAN (IKENBERRY, 2001; NYE, 2002).

Sob a ótica construtivista, tanto o reconhecimento alemão quanto as intervenções da OTAN foram práticas normativas que moldaram identidades e legitimidades, transformando a crise iugoslava em um laboratório para a consolidação da ordem internacional baseada em regras moldadas pelo Ocidente.

Portanto, a influência alemã deve ser entendida em conjunto com a reconfiguração promovida pelos EUA e pela OTAN. A Alemanha abriu o caminho ao legitimar o separatismo; os EUA e a OTAN capitalizaram essa abertura, desconstruindo a Iugoslávia como polo autônomo e reforçando a narrativa de uma ordem unipolar.

Narrativas Nacionalistas e Memória Histórica

A dissolução da Iugoslávia foi marcada pela mobilização de narrativas históricas e mitos nacionais que reforçaram antagonismos e legitimaram projetos separatistas. Eventos como a Batalha de Kosovo (em 1389, que veremos em detalhes a seguir), as memórias da Segunda Guerra Mundial e os conflitos entre Ustasha e Chetniks2 foram constantemente reatualizados no discurso político, funcionando como símbolos de identidade e instrumentos de radicalização. A mídia desempenhou papel central nesse processo, amplificando discursos nacionalistas e transformando memórias históricas em armas políticas.

Para Conversi (1998), o nacionalismo nos Bálcãs não deve ser entendido como fenômeno espontâneo, mas como produto de manipulação política e mobilização cultural. Elites políticas instrumentalizaram símbolos e mitos para construir identidades exclusivas e antagonistas. Lampe (1995) reforça que o antagonismo fatal da dissolução foi o conflito sérvio-croata, alimentado por narrativas históricas que transformaram diferenças políticas em rivalidades existenciais. Silber e Little (1996) acrescentam que o nacionalismo foi utilizado como instrumento político deliberado, não como inevitabilidade histórica, mas como escolha estratégica de elites que buscavam legitimar seus projetos de poder.

Essas narrativas, contudo, não permaneceram confinadas ao espaço doméstico. Como observa Kugler (1992), a OTAN, diante da instabilidade nos Bálcãs, reinterpretou o nacionalismo radical como ameaça à estabilidade europeia e oportunidade para redefinir sua missão. “Os Bálcãs e a Europa Oriental provavelmente permanecerão instáveis, e a OTAN deve considerar como responder a crises nessas regiões” (KUGLER, 1992, p. 87, tradução nossa). Assim, enquanto elites locais mobilizavam memórias históricas para fragmentar a federação, a OTAN construía narrativas externas de legitimidade, apresentando suas intervenções como necessárias para preservar a paz e consolidar a liderança americana.

Sob a ótica construtivista, a interação entre narrativas internas e externas revela que a dissolução da Iugoslávia foi tanto resultado da manipulação política da memória quanto da construção de normas internacionais que legitimaram a intervenção. O nacionalismo doméstico e a retórica da “intervenção humanitária” convergiram como práticas discursivas que moldaram identidades, interesses e legitimidades, transformando os Bálcãs em palco simbólico da transição para uma ordem unipolar.

Kosovo: Mitos Históricos, Nacionalismo e Independência

Entre os diversos fatores que marcaram a fragmentação da Iugoslávia, Kosovo ocupa um lugar singular e central. Mais do que um território em disputa, tornou-se um símbolo histórico e político capaz de mobilizar identidades, narrativas e intervenções externas. Desde a Batalha de 1389, reinterpretada como mito fundador da nação sérvia, até a declaração de independência em 2008, Kosovo funcionou como palco privilegiado da interação entre memória histórica, nacionalismo e estratégias internacionais. A análise desse caso revela como mitos, discursos e práticas normativas se entrelaçaram, transformando o Kosovo em um dos epicentros da crise iugoslava e em um laboratório da nova ordem internacional no pós-Guerra Fria.

Antecedentes Históricos

Kosovo ocupa lugar central na memória coletiva sérvia desde a Batalha de Kosovo em 1389, travada no Kosovo Polje (“Campo dos Melros”), quando as forças cristãs lideradas pelo príncipe Lázaro Hrebeljanović enfrentaram o Exército otomano comandado pelo sultão Murade I. O confronto terminou com enormes baixas em ambos os lados e a morte dos dois líderes, Lázaro, foi capturado e executado, enquanto Murade teria sido assassinado por um cavaleiro sérvio, Miloš Obilić, episódio que se tornou parte da lenda nacional.

Embora militarmente inconclusiva, a batalha enfraqueceu a Sérvia, que gradualmente se tornou vassala do Império Otomano. Mais importante do que o resultado militar foi o significado simbólico: a narrativa de que os sérvios escolheram o sacrifício pela fé e pela pátria em vez da submissão. Transmitida por séculos em canções épicas e tradições religiosas, essa memória consolidou Kosovo como o “coração espiritual” da Sérvia, mesmo diante da crescente presença albanesa na região.


FIGURA 1: Representação artística da Batalha de Kosovo, 1389 (Imagem gerada por inteligência artificial (Copilot, 2025), com base em descrições históricas do confronto entre as forças sérvias lideradas por Lázaro Hrebeljanović e o exército otomano comandado por Murade I no Campo dos Melros).

Milošević e a Questão do Kosovo

O envolvimento direto de Slobodan Milošević com a questão de Kosovo se inicia uma visita realizada à localidade de Kosovo Polje em abril de 1987. Na ocasião, Milošević presenciou uma manifestação de sérvios que denunciavam abusos por parte da maioria albanesa. Ao se dirigir à multidão, proferiu a frase que se tornaria símbolo de sua virada política: “Ninguém mais vai bater em vocês.” Esse momento foi decisivo para sua ascensão como líder nacionalista, marcando o início da chamada “revolução antiburocrática”, que revogou a autonomia de Kosovo e centralizou o poder em Belgrado.

Posteriormente, em 28 de junho de 1989, durante as comemorações dos 600 anos da Batalha de Kosovo, Milošević fez um discurso no Campo dos Merli (Gazimestan) diante de milhares de sérvios. Ele evocou o mito de Kosovo como símbolo de unidade e resistência, afirmando que os sérvios nunca seriam derrotados novamente. Esse discurso foi interpretado como marco da ascensão do nacionalismo sérvio e da radicalização política que corroeu o tecido federativo. A visita consolidou a mobilização da memória histórica como instrumento político: Kosovo deixou de ser apenas símbolo religioso-cultural e tornou-se catalisador da crise iugoslava, legitimando discursos de exclusão e projetos de poder que enfraqueceram a identidade coletiva construída sob Tito.


FIGURA 2: Visita de Slobodan Milošević ao Campo dos Merli (Gazimestan), em 1989 (Imagem gerada por inteligência artificial (Copilot, 2025), representando o discurso de Milošević durante as comemorações dos 600 anos da Batalha de Kosovo, marco da ascensão do nacionalismo sérvio).

O Desfecho da Independência

Em 17 de fevereiro de 2008, Kosovo declarou unilateralmente sua independência. O ato foi prontamente reconhecido por países da OTAN, liderados pela influência política do presidente Bill Clinton, dos Estados Unidos, e apoiado por grande parte da União Europeia. Contudo, a independência foi contestada pela Sérvia e rejeitada por diversos Estados, incluindo Rússia, China, Brasil, Espanha, Grécia, Romênia e Eslováquia, entre outros. Essa divisão internacional impediu que Kosovo obtivesse assento na ONU, já que membros permanentes do Conselho de Segurança mantêm oposição ao reconhecimento.


FIGURA 3: Estátua de Bill Clinton em Pristina, Kosovo (Imagem gerada por inteligência artificial (Copilot, 2025), representando o monumento inaugurado em 2009 na Bill Clinton Boulevard, como símbolo da influência externa na consolidação da independência kosovar).

O desfecho reforçou a lógica construtivista: a independência não decorreu automaticamente de fatores materiais ou demográficos, mas da construção de narrativas históricas, da mobilização política de elites locais e da tentativa de legitimação internacional, sustentada por normas e práticas da OTAN e da União Europeia, mas não da lei internacional. Assim, Kosovo tornou-se exemplo de como a ordem internacional pós-Guerra Fria se molda por disputas de significados e pela capacidade de atores centrais de impor interpretações normativas sobre soberania e autodeterminação.

A independência foi, portanto, resultado da construção de narrativas históricas, da mobilização política de elites e da legitimação internacional por meio da “Ordem Baseada em Regras”, derivadas de normas e práticas da OTAN e de interesses dos Estados Unidos.

Síntese

Kosovo exemplifica como mitos históricos, discursos nacionalistas e intervenções externas se entrelaçaram na dissolução da Iugoslávia. O mito da Batalha de 1389, a mobilização política de Milošević entre 1987 e 1989, e a declaração de independência em 2008 mostram que a crise não pode ser compreendida apenas como disputa territorial ou étnica, mas como uma disputa por significados, identidades e legitimidades.

Sob a ótica construtivista, a trajetória de Kosovo revela que os atores políticos não apenas reagiram a condições materiais, mas construíram narrativas, símbolos e normas que moldaram interesses e justificaram ações. A memória histórica foi mobilizada para reforçar identidades exclusivas; o nacionalismo foi instrumentalizado como ferramenta de poder; e a intervenção internacional foi legitimada por discursos de “ordem baseada em regras” e “intervenção humanitária”. A homenagem pública a Bill Clinton em Pristina ilustra como a influência externa foi incorporada à identidade política kosovar, evidenciando que a soberania foi construída tanto internamente quanto por meio da produção discursiva de legitimidade internacional.

Kosovo, portanto, não foi apenas palco de conflitos, mas um espaço simbólico onde se cruzaram narrativas locais e globais, revelando como a ordem internacional pós-Guerra Fria se molda por disputas normativas e pela capacidade de atores centrais de impor interpretações sobre soberania, autodeterminação e estabilidade.

Normas Internacionais e Reconhecimento Externo

Como já estamos vendo, a dissolução da Iugoslávia não pode ser entendida apenas como resultado de dinâmicas internas. O processo foi profundamente condicionado pela atuação de atores internacionais que, ao mobilizar normas jurídicas e princípios políticos, construíram novas formas de legitimidade. A União Europeia, a ONU, os Estados Unidos e a OTAN desempenharam papel central nesse processo, estabelecendo parâmetros normativos que moldaram a emergência dos novos Estados balcânicos.

Dentre tais parâmetros normativos, o papel da chamada “Comissão Badinter” é central, pois validou o direito de áreas de países soberanos a declararem sua independência, subordinando a soberania aos direitos humanos e à necessidade de proteção das minorias.

Como observa Pellet (1992, p. 178), “a Comissão Badinter não se limitou a interpretar o direito existente, mas contribuiu para a criação de uma nova realidade jurídica”. Essa constatação reforça a leitura construtivista: normas não são apenas aplicadas, mas produzidas e ressignificadas em contextos de crise.

Autodeterminação e Direitos Humanos como Catalisadores

As normas de autodeterminação dos povos e de proteção dos direitos humanos foram reinterpretadas como fundamentos para justificar a fragmentação da federação. Em vez de permanecerem como princípios abstratos, tornaram-se instrumentos políticos. A Comissão Badinter, em seu Parecer nº 5, afirmou que “o reconhecimento internacional deve estar condicionado ao respeito pelos direitos humanos e pela proteção das minorias” (COMISSÃO BADINTER, 1991, p. 12).

Essa vinculação entre soberania e direitos humanos foi decisiva para legitimar a fragmentação da Iugoslávia e abriu espaço para intervenções externas. Fitzmaurice (1993, p. 5) destaca que “a Comissão estabeleceu critérios normativos que não existiam previamente, vinculando o reconhecimento à prática democrática e ao respeito por minorias”. Sob a ótica construtivista, esses princípios não existiam como verdades universais, mas foram ressignificados para atender às necessidades políticas do momento.

No caso de Kosovo, a intervenção da OTAN em 1999 foi justificada como “humanitária”, inaugurando uma prática normativa que extrapolava os limites tradicionais da defesa coletiva. Como sintetiza a cronologia da crise balcânica (CIA, 1995), a OTAN passou a legitimar sua ação com base na proteção de civis e na preservação da estabilidade europeia, redefinindo os parâmetros de soberania e não intervenção.

A Comissão Badinter

A Comissão de Arbitragem da Conferência de Paz para a Iugoslávia, conhecida como Comissão Badinter, foi decisiva ao fornecer pareceres jurídicos que orientaram o reconhecimento internacional das repúblicas iugoslavas. Seus principais pareceres ilustram como normas foram reinterpretadas e, em certo sentido, criadas para lidar com a crise:

Parecer nº 1 (1991): declarou que “a República Federativa Socialista da Iugoslávia encontra-se em processo de dissolução” (COMISSÃO BADINTER, 1991, p. 3), estabelecendo a base jurídica para tratar cada república como Estado sucessor, e não como secessão.

Pareceres nº 5, 6 e 7: condicionaram o reconhecimento internacional ao respeito por direitos humanos, democracia e proteção de minorias. O Parecer nº 5 afirma que “o reconhecimento internacional deve estar condicionado ao respeito pelos direitos humanos e pela proteção das minorias” (COMISSÃO BADINTER, 1991, p. 12).

Pareceres nº 9 e 10: trataram da sucessão de tratados e bens, estabelecendo que os novos Estados deveriam assumir obrigações internacionais, reforçando a continuidade jurídica.

Autores como Pellet (1992, p. 178) observam que “a Comissão Badinter não se limitou a interpretar o direito existente, mas contribuiu para a criação de uma nova realidade jurídica”.

Sob a ótica construtivista, a Comissão Badinter exemplifica como normas internacionais não são apenas aplicadas, mas produzidas e ressignificadas em contextos de crise. Ao declarar a dissolução e condicionar o reconhecimento, a Comissão moldou conceitos de soberania e legitimidade estatal, atuando como agente normativo que construiu novas realidades jurídicas.

O Papel da União Europeia, ONU e Estados Unidos

A União Europeia assumiu protagonismo no processo de reconhecimento, condicionando a aceitação dos novos Estados ao cumprimento dos critérios estabelecidos pela Comissão Badinter. Como observa Radan (1997, p. 540), “a União Europeia utilizou os pareceres da Comissão como guia normativo, vinculando o reconhecimento ao respeito por direitos humanos e democracia”. Essa postura evidencia como normas jurídicas foram reinterpretadas e transformadas em instrumentos políticos.

A ONU, por sua vez, forneceu o espaço institucional para debates e missões de paz, mas sua atuação foi limitada pelo veto de grandes potências no Conselho de Segurança. A cronologia da crise balcânica registra que “a ONU aprovou diversas resoluções de sanções e missões de paz, mas não conseguiu impor consenso sobre o reconhecimento dos novos Estados” (CIA, 1995, p. 22). Esse impasse reforça a ideia construtivista de que a legitimidade internacional não é automática, mas depende da disputa de narrativas entre atores centrais.

Já os Estados Unidos exerceram influência política e militar decisiva, apoiando o reconhecimento seletivo e reforçando a narrativa de que a fragmentação era necessária para garantir a estabilidade regional. Como sintetiza Nogueira (2000, p. 45), “a intervenção norte-americana foi decisiva para legitimar a independência de algumas repúblicas, especialmente no caso de Kosovo”. Essa atuação mostra como interesses estratégicos foram revestidos de discursos normativos, moldando a legitimidade externa.

Agindo de forma construtivista quando seu interesse geopolítico assim demandava, a União Europeia, a ONU e os Estados Unidos não apenas aplicaram normas existentes, mas produziram novas práticas discursivas que condicionaram o reconhecimento e redefiniram os parâmetros de soberania e autodeterminação.

O Papel da OTAN

A OTAN foi além da interpretação normativa: sua intervenção em Kosovo, em 1999, inaugurou uma prática que extrapolava os limites tradicionais da defesa coletiva. Ao justificar sua ação como “humanitária”, a Aliança construiu uma nova narrativa de legitimidade, redefinindo os parâmetros de soberania e não intervenção.

Como observa Bellini (2012, p. 33), “a intervenção da OTAN no Kosovo representou uma ruptura paradigmática, pois legitimou o uso da força fora do mandato clássico da defesa coletiva”. De forma semelhante, Carvalho, Lima e Oshima (2019, p. 12) destacam que “a operação foi apresentada como humanitária, mas na prática consolidou um novo padrão normativo de intervenção internacional”.

A cronologia da crise balcânica também registra que “a OTAN passou a legitimar sua ação com base na proteção de civis e na preservação da estabilidade europeia” (CIA, 1995, p. 44). Essa prática, mesmo sem consenso no Conselho de Segurança da ONU, reforçou a ideia de que a Aliança atuava como agente normativo, criando discursos e práticas que moldaram a ordem internacional.

Sob a ótica construtivista, a OTAN não apenas aplicou normas existentes, mas produziu novas práticas discursivas que legitimaram a independência parcial de Kosovo. A intervenção humanitária tornou-se um marco da transição para uma ordem internacional em que a soberania passou a ser condicionada ao respeito por direitos humanos e à estabilidade regional.


LIVRO RECOMENDADO:

Yugoslavia: Death of a Nation

• Laura Silber e Allan Little (Autores)
• Capa dura ou Capa comum
• Edição Inglês


Do Direito de Proteger (Responsabilidade de Proteger – R2P)

A intervenção da OTAN em Kosovo, em 1999, é frequentemente interpretada como um marco precursor da doutrina da Responsabilidade de Proteger (R2P). Embora o conceito só tenha sido formalizado em 2001 pela Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal e adotado pela ONU em 2005, a operação no Kosovo antecipou a lógica segundo a qual a soberania estatal não é apenas um direito, mas também uma responsabilidade.

Sob essa perspectiva, quando um Estado falha em proteger sua população contra genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica ou crimes contra a humanidade, a comunidade internacional assume a responsabilidade de intervir. Em Kosovo, a narrativa humanitária da OTAN relativizou a soberania da Sérvia e inaugurou uma prática que seria posteriormente codificada como norma emergente.

Como observa Evans (2008, p. 41), “Kosovo foi o exemplo paradigmático de como a comunidade internacional passou a considerar a proteção de civis como justificativa legítima para a intervenção, mesmo sem consenso no Conselho de Segurança”. Essa prática reforça a ótica construtivista: normas não apenas são aplicadas, mas também criadas e transformadas por meio de discursos e ações concretas.

Assim, a R2P consolidou a ideia de que a dissolução da Iugoslávia e, em especial, o caso de Kosovo, não podem ser compreendidos apenas como fatos materiais, mas como momentos de transição normativa, nos quais a soberania passou a ser condicionada ao respeito por direitos humanos e à estabilidade regional.

Síntese

O reconhecimento externo dos novos Estados balcânicos foi resultado de uma interação entre normas internacionais e interesses políticos. A União Europeia, a ONU, os EUA e a OTAN não apenas aplicaram regras existentes, mas produziram novas práticas e significados que moldaram a legitimidade da fragmentação.

A Comissão Badinter forneceu a base jurídica ao declarar que “a República Federativa Socialista da Iugoslávia encontra-se em processo de dissolução” (COMISSÃO BADINTER, 1991, p. 3), vinculando o reconhecimento ao respeito por direitos humanos e democracia. Como observa Pellet (1992, p. 178), “a Comissão não se limitou a interpretar o direito existente, mas contribuiu para a criação de uma nova realidade jurídica”.

A OTAN, por sua vez, consolidou a prática da intervenção humanitária. Bellini (2012, p. 33) destaca que “a intervenção da OTAN no Kosovo representou uma ruptura paradigmática, legitimando o uso da força fora do mandato clássico da defesa coletiva”. Essa prática, mesmo sem consenso na ONU, redefiniu os parâmetros de soberania e não intervenção.

A subseção sobre a Responsabilidade de Proteger (R2P) reforça esse ponto: Kosovo foi um marco precursor da norma que, anos depois, seria formalizada pela ONU. Como sintetiza Evans (2008, p. 41), “Kosovo foi o exemplo paradigmático de como a comunidade internacional passou a considerar a proteção de civis como justificativa legítima para a intervenção, mesmo sem consenso no Conselho de Segurança”.

Sob a ótica construtivista, a dissolução da Iugoslávia não foi apenas um fato material, mas uma construção normativa. Atores internacionais criaram regras e moldaram realidades jurídicas para justificar a emergência de novos Estados. Fitzmaurice (1993, p. 5) resume: “a Comissão estabeleceu critérios normativos inéditos, vinculando o reconhecimento à prática democrática e ao respeito por minorias”.

Outros Fatores Relevantes

A dissolução da Iugoslávia não pode ser explicada apenas por dinâmicas normativas ou pela atuação de atores internacionais. Fatores sociais, econômicos e culturais também desempenharam papel decisivo na fragmentação da federação, reforçando narrativas de exclusão e legitimando projetos separatistas.

Crise Econômica

Um dos elementos centrais foi a crise econômica que atingiu a região nos anos 1980 e início dos anos 1990. O desemprego elevado e a hiperinflação criaram um ambiente de instabilidade que foi instrumentalizado por elites políticas para reforçar identidades exclusivas. Como observa Severo (2002, p. 87), “a deterioração das condições materiais de vida foi utilizada como argumento para justificar a ruptura federativa”, mostrando que a economia funcionou como catalisador de discursos nacionalistas.

Diáspora e Redes Transnacionais

Outro fator relevante foi a atuação da diáspora e das redes transnacionais, que ampliaram a capacidade de mobilização dos grupos separatistas. Severo (2002) destaca que comunidades externas forneceram apoio político e econômico, reforçando identidades nacionais e legitimando movimentos de independência. Esse aspecto evidencia como fluxos transnacionais contribuíram para sustentar a fragmentação da federação.

Religião e Etnicidade

A religião e a etnicidade também desempenharam papel fundamental. Igrejas ortodoxas, mesquitas e instituições católicas tornaram-se espaços de legitimação política, transformando símbolos religiosos em marcadores identitários. Severo (2002, p. 93) observa que “a religião foi utilizada como marcador de diferença, transformando-se em instrumento de mobilização nacionalista”. Sob a ótica construtivista, esses símbolos não eram apenas elementos culturais, mas recursos discursivos que moldaram percepções de pertencimento e exclusão.

Impactos Sociais da Intervenção Externa

Por fim, os impactos sociais da intervenção externa, especialmente da OTAN, não se limitaram à redefinição normativa já discutida anteriormente. A cronologia da crise balcânica registra que “a presença militar e o discurso de intervenção humanitária reforçaram narrativas de vitimização e resistência, intensificando identidades exclusivas” (CIA, 1995, p. 44). Assim, a intervenção deve ser entendida também como fator social, que interagiu com economia, diáspora e religião para consolidar a fragmentação da Iugoslávia.

Síntese

Esses fatores mostram que a dissolução da Iugoslávia não pode ser explicada apenas por dinâmicas internas ou normas jurídicas. A crise econômica, a diáspora, a religião e a intervenção internacional atuaram como catalisadores discursivos, reforçando identidades exclusivas e legitimando projetos separatistas. Sob a ótica construtivista, esses elementos foram mobilizados como recursos simbólicos que moldaram a percepção de legitimidade e sustentaram a emergência de novos Estados.

Considerações Finais

A dissolução da Iugoslávia deve ser compreendida não apenas como uma disputa territorial, mas sobretudo como uma disputa por significados. O processo revelou que a emergência de novos Estados não decorre exclusivamente de fatores materiais, mas também da construção de narrativas normativas que moldam a legitimidade internacional.

Sob a ótica construtivista, a crise balcânica evidencia dimensões simbólicas e discursivas que complementam as análises históricas e realistas. Enquanto o realismo enfatiza a balança de poder e o liberalismo aponta para falhas institucionais, o construtivismo ilumina como normas, identidades e discursos foram mobilizados para justificar a fragmentação da federação.

Nesse contexto, a Comissão Badinter desempenhou papel central ao funcionar como ponte entre a Lei Internacional clássica e uma ordem baseada em regras. Seus pareceres não apenas interpretaram normas existentes, mas criaram novos parâmetros de reconhecimento e legitimidade, condicionando a aceitação dos Estados balcânicos ao respeito por direitos humanos, democracia e proteção de minorias.

Assim, a dissolução da Iugoslávia pode ser vista como um caso paradigmático em que atores internacionais produziram novas práticas discursivas e jurídicas para sustentar a emergência de Estados independentes. Ao mesmo tempo, abriu-se um precedente: o apoio ao reconhecimento da independência de ex‑estados federados da Iugoslávia passou a ser evocada em conflitos futuros, como na desintegração da URSS ou nas disputas envolvendo Crimeia e Donbass.

Da mesma forma, a atuação da OTAN fora de seu eixo tradicional de defesa coletiva, justificada como “humanitária”, inaugurou uma prática que redefiniu os parâmetros de soberania e intervenção, criando tensões entre a ordem baseada em regras e a Lei Internacional clássica.

Esse movimento antecipou a lógica que seria posteriormente formalizada na Responsabilidade de Proteger (R2P), consolidando a ideia de que a soberania estatal não é apenas um direito, mas também uma responsabilidade. Kosovo, portanto, não apenas marcou a fragmentação da Iugoslávia, mas também serviu como laboratório normativo para a transição rumo a uma ordem internacional em que a proteção de civis se tornou critério central de legitimidade.

Nesse cenário, a atuação da ONU, ainda que limitada por impasses no Conselho de Segurança, abriu espaço para missões de paz que buscaram conter a violência e estabilizar a região. Essas operações, algumas delas com participação brasileira, revelam outra dimensão da crise balcânica: a tentativa de traduzir normas emergentes em práticas concretas de manutenção da paz, o que constituiu um processo de aprendizado sobre como a ONU atuaria num novo contexto hegemônico: um mundo unipolar.

Esse aspecto será aprofundado no próximo artigo desta série, dedicado ao papel da ONU e das missões de paz na dissolução da ex‑Iugoslávia.

Notas

1 Reificação: termo derivado do latim res (coisa) + facere (fazer), utilizado nas ciências sociais para designar o processo pelo qual conceitos abstratos, relações sociais ou identidades fluidas passam a ser tratados como entidades fixas, objetivas e naturais. No contexto da Iugoslávia, diferenças culturais e étnicas foram reificadas em identidades políticas rígidas (croata, sérvia, eslovena etc.), transformando diversidade em fronteiras de separação (FLERE; KLANJŠEK, 2016).

2 Os conflitos entre Ustasha e Chetniks na ex-Iugoslávia foram confrontos violentos durante a Segunda Guerra Mundial, envolvendo nacionalistas croatas fascistas (Ustasha) e nacionalistas sérvios monarquistas (Chetniks), ambos lutando pelo controle político e étnico da região, muitas vezes em paralelo à ocupação nazista e italiana.

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