O Dilema do Tempo na Atuação Policial: Entre a Pressa, a Hesitação e a Decisão sob Estresse

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Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

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O tempo, fator crítico na atuação policial, influencia decisões sob estresse; ele pode ser inimigo ou aliado, dependendo da preparação e da doutrina, conforme ilustrado pela experiência de um sargento do GATE.


Este artigo analisa o tempo como elemento central na atuação policial, especialmente em situações críticas de alta intensidade e baixa frequência. Partindo da premissa de que o tempo é um fator tático, psicológico e institucional, o estudo discute como a percepção temporal sob estresse afeta a tomada de decisão, a segurança operacional e a legitimidade das ações policiais.

A partir de fundamentos da psicologia cognitiva, da doutrina de gerenciamento de incidentes e de estudos sobre resposta humana ao estresse agudo, argumenta-se que o tempo pode ser simultaneamente inimigo e aliado, dependendo da preparação, da estrutura de comando e do domínio técnico do operador.

A inspiração para este artigo nasceu em uma conversa com o sargento Raphael Romão Penna, operador do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE), que recentemente sobreviveu a um ferimento grave em serviço — um disparo no rosto durante uma operação de altíssimo risco. Seu relato, marcado por lucidez, fé e resistência, revelou como o tempo em frações de segundo pode definir a linha entre a vida e a morte, entre a reação e a sobrevivência.

Assim, este texto se dedica a todos os policiais que enfrentam o dilema do tempo não como teoria, mas como realidade diária.

Introdução

O tempo é o elemento invisível e determinante em toda ocorrência policial.

Diferente do relógio civil, que mede minutos e horas, o tempo operacional mede ritmos, percepções e reações humanas sob perigo. Em uma ocorrência com reféns, em um cerco armado ou em um confronto direto, o tempo se comprime e se expande, transformando segundos em eternidades.

É nesse território que o policial vive o dilema da profissão: agir rápido demais pode gerar erro; agir tarde demais pode custar vidas.

A inspiração para esta reflexão surgiu de uma conversa com o sargento Raphael Romão Penna, veterano do GATE, que sobreviveu a um disparo no rosto durante uma operação real. Mesmo ferido, sua calma e clareza de raciocínio revelaram uma verdade pouco compreendida fora do ambiente tático: o tempo não é apenas cronológico: é moral, emocional e espiritual.

Naquele instante, o tempo deixou de ser o inimigo e se tornou o espaço da fé, do instinto e da doutrina vivida.

O Tempo Como Inimigo

Em incidentes críticos, o tempo frequentemente trabalha contra o policial.

O agressor escolhe o local, o momento e o método; o policial chega para reagir a um evento já em andamento. Essa assimetria faz com que cada segundo seja uma escolha entre a vida e o fracasso. A hesitação de dois segundos pode significar a perda de um refém; a precipitação pode resultar em erro fatal. O tempo torna-se o campo de batalha invisível onde se mede o preparo psicológico e a confiança nos protocolos.

Como ensina Sid Heal (2006), “a maioria das decisões em combate é feita com base em informações imperfeitas, sob alta pressão e em tempo insuficiente.

Dominar o tempo, portanto, é dominar o próprio medo — e a mente.

O Tempo Como Aliado

Quando há preparo, doutrina e comando claro, o tempo deixa de ser caos e se torna ritmo operacional.

A mente treinada aprende a decidir sem pressa, mas sem demora. Esse domínio é fruto de treinamento realista, planejamento integrado e liderança presente princípios que estruturam o Sistema de Comando de Incidentes (SCI). Gordon Graham (2018) chama essa capacidade de competência para eventos de alta consequência e baixa frequência: o treinamento que transforma o imprevisível em controlável.

A diferença entre falhar e vencer, muitas vezes, está na capacidade de transformar o tempo de reação em tempo de decisão.


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• Wanderley Mascarenhas de Souza, Márcio Santiago Higashi Couto, Valmor Saraiva Racorti e Paulo Augusto Aguilar (Autores)
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A Percepção do Tempo sob Estresse

Durante situações de alto risco, o cérebro humano sofre uma distorção temporal. O tempo parece desacelerar, os sons se tornam distantes, e a visão se afunila. Esse fenômeno neuropsicológico é natural: é o corpo tentando processar o impossível.

O sargento Raphael Romão Penna, ao relatar o momento em que foi alvejado, descreveu o instante como “silencioso e longo”, embora tudo tenha ocorrido em menos de dois segundos. Essa sensação é o resultado da descarga de adrenalina, da hipervigilância e do foco absoluto em sobreviver.

Com preparo e fé, ele transformou o pânico em lucidez — exemplo real do que a ciência chama de mindful action under threat (ação consciente sob ameaça).

A distorção temporal não deve ser temida, mas compreendida. O policial preparado reconhece o fenômeno e o utiliza a seu favor, mantendo-se lúcido onde o caos tenta dominar.

O Tempo Institucional

O dilema do tempo também é institucional.

Enquanto o operador vive o tempo em segundos, a burocracia vive em semanas. Essa defasagem entre o tempo da rua e o tempo da administração cria falhas de resposta e decisões tardias. O amadurecimento institucional exige reação compatível com a urgência operacional. Planejamento, protocolos e interoperabilidade reduzem o tempo de resposta e evitam que a tropa pague com a própria vida pela lentidão da estrutura.

O caso do sargento Raphael Romão Penna, assim como tantos outros, demonstra que a linha entre sobrevivência e tragédia muitas vezes é definida pela rapidez da decisão — não apenas do policial, mas do sistema que o apoia.

O Tempo da Decisão

Toda operação contém um ponto de inflexão — o momento em que não decidir já é uma decisão.

O policial, o negociador e o comandante vivem essa pressão. A dúvida é inevitável, mas a paralisia é mortal. A melhor decisão nem sempre é a mais perfeita, mas a mais oportuna. O tempo certo não é o do relógio, mas o da percepção tática quando o instinto, a doutrina e o dever se alinham.

A liderança nasce justamente aí: no segundo em que a mente entende que não há mais tempo a perder.

Conclusão

O tempo é o juiz silencioso da atuação policial.

Ele mede não apenas a velocidade da resposta, mas a qualidade da consciência. Para o policial, o tempo não é uma linha — é uma curva que se estreita diante do perigo e se expande na memória de quem sobrevive.

A história do Sargento Raphael Romão Penna é o testemunho vivo desse dilema: o tempo que quase o levou foi o mesmo que o manteve consciente, firme e confiante de que sua missão ainda não havia terminado. O tempo, quando iluminado pela fé e pela técnica, se transforma em ferramenta de sobrevivência.

Dominar o tempo é, portanto, a arte maior da profissão policial: agir com rapidez sem precipitação, esperar sem omissão, e decidir no exato instante em que o dever encontra o destino.

O tempo é o inimigo dos indecisos e o aliado dos preparados. No caos, quem domina o tempo, domina a sobrevivência.


A complexidade da gestão de crises e incidentes em ocorrências policiais,  bem como transformar o tempo, de inimigo em aliado na atuação policial, é uma temática central que ressoa com a Pós-Graduação em Gestão de Crises e Sistema de Comando de Incidentes (SCI/ICS), da qual o autor é membro do corpo docente. Este curso, que adota padrões internacionais de resposta a emergências, capacita profissionais a planejar, coordenar e avaliar incidentes críticos, fornecendo o arcabouço doutrinário e técnico necessário para uma tomada de decisão eficaz e liderança estratégica sob pressão, elementos cruciais para que o tempo seja gerido com maestria. Faça sua inscrição aqui.

Referências

GRAHAM, G. (2018). High-Risk, Low-Frequency Events: Managing the Unexpected. California: Lexipol.

HEAL, S. (2006). Field Command. California: Command Concepts Press.

HANCOCK, P. A., & WEAVER, J. L. (2005). On Time Distortion Under Stress. Theoretical Issues in Ergonomics Science, 6(2), 193–211.

FEMA (2017). National Incident Management System (NIMS). Washington, D.C.: U.S. Department of Homeland Security.

GLADWELL, M. (2005). Blink: The Power of Thinking Without Thinking. New York: Little, Brown and Company.

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