Suicídio por Policial no Brasil: Análise de Casos Reais e o Imperativo da Adoção de Protocolos de Intervenção em Crise

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Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

Revisão: Major PM Luciana Greanin Rostello

Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

O conceito de Suicídio por Policial descreve uma trágica dinâmica onde indivíduos provocam agentes de segurança para usarem força letal; esta análise de casos brasileiros propõe protocolos e treinamentos para abordagens mais seguras e humanizadas.

Introdução

O conceito de suicídio por policial (SbC, Suicide by Cop) designa uma trágica dinâmica onde um indivíduo, imerso em um profundo estado de crise psicológica ou desespero, age de maneira a provocar intencionalmente que policiais ou outros agentes de segurança usem força letal contra ele. Tal comportamento, muitas vezes, é uma expressão derradeira de uma intenção suicida velada, em que o indivíduo, por diversas razões, não consegue ou não quer tirar a própria vida diretamente, transferindo essa “responsabilidade” a uma autoridade. Este fenômeno não se restringe a fronteiras geográficas, sendo um desafio global que mobiliza discussões intensas sobre ética, psicologia, treinamento policial e políticas públicas de saúde mental. No Brasil, apesar da perceptível ocorrência de casos que se enquadram nesta definição, a ausência de estatísticas nacionais consolidadas e a falta de estudos aprofundados sobre o tema dificultam a compreensão da sua real dimensão e a formulação de respostas eficazes.

As situações de SbC são intrinsecamente complexas, frequentemente imbricadas com transtornos mentais subjacentes não diagnosticados ou em descompensação (como esquizofrenia, depressão severa, transtorno bipolar ou transtorno de estresse pós-traumático), uso de substâncias psicoativas ou conflitos interpessoais e sociais insolúveis. A natureza de tais ocorrências exige uma abordagem policial que vá muito além do treinamento convencional de uso da força, demandando habilidades avançadas de comunicação, empatia e avaliação de risco em tempo real.

O presente artigo se propõe a lançar luz sobre este fenômeno no contexto brasileiro, mediante a análise aprofundada de três ocorrências reais e recentes, ocorridas no estado de São Paulo. O estudo de caso, apesar de não ser generalizável, permite uma compreensão rica das nuances operacionais e psicológicas envolvidas. Por meio da desconstrução de cada um desses episódios, pretendemos:

• Analisar criticamente o perfil dos indivíduos envolvidos nos incidentes de SbC, buscando compreender as possíveis motivações e os fatores precipitantes que culminaram nessas situações extremas;

• Identificar as dinâmicas de intervenção policial, avaliando a conformidade das ações com os protocolos de proporcionalidade da força e as melhores práticas reconhecidas internacionalmente para lidar com indivíduos em crise;

• Propor diretrizes e recomendações práticas para as Polícias Militares brasileiras, com base nos princípios do modelo ICAT (que integra comunicação, avaliação e táticas), visando mitigar os riscos de desfechos letais e promover abordagens mais seguras e humanizadas.

A metodologia empregada envolve a análise qualitativa dos boletins de ocorrência e relatórios policiais dos casos selecionados, cotejados com a literatura especializada em psicologia do suicídio, intervenção em crise e táticas policiais. A expectativa é que os insights gerados contribuam para o desenvolvimento de treinamentos mais eficazes e para a formulação de políticas públicas que reconheçam a segurança pública como um campo que deve, necessariamente, dialogar e se integrar com a saúde mental.

Fundamentação Teórica e Contexto Global

Definição e Tipologia do Suicídio por Policial (SbC)

O suicídio por policial (SbC) é uma forma indireta de suicídio na qual um indivíduo, por diversas razões — que podem variar desde um intenso desespero até uma premeditação calculista — busca o confronto com a polícia com o intuito deliberado de provocar uma reação fatal por parte dos agentes. A essência do SbC reside na indução da força letal: o suicida age de forma a não deixar outra opção ao policial a não ser o uso da força máxima para neutralizar uma ameaça percebida.

Existem características definidoras que distinguem um incidente de SbC de outras ocorrências policiais: o sujeito ameaça a vida do policial ou de outrem, ou então tenta fazer o policial acreditar que representa uma ameaça iminente, com o objetivo precípuo de forçar o agente a usar força letal. Isso pode se manifestar de diversas formas: desde apontar uma arma de fogo (ou um simulacro, réplica de arma, ou mesmo um objeto inofensivo que se assemelhe a uma arma) para um policial ou um espectador, até correr em direção ao policial brandindo uma faca ou outro objeto perigoso. Em alguns casos, a verbalização é explícita, com a pessoa dizendo repetidamente: “atire em mim” ou “me mate”. No entanto, em outros incidentes, o silêncio da pessoa é igualmente ensurdecedor, e a intenção suicida é inferida por meio de seu comportamento provocativo e irracional.

A literatura especializada geralmente categoriza o SbC em dois tipos principais:

• SbC Planejado (Premeditado): Refere-se a situações em que o indivíduo tem pensamentos suicidas há algum tempo e, incapaz de tirar a própria vida diretamente ou buscando uma forma de “saída” que não pareça autoimposta, decide criar um incidente que force um policial a usar força letal. Indicadores de um SbC planejado incluem a imediata e repetida solicitação de “atire em mim” assim que os policiais chegam, ou a ação de ligar para os serviços de emergência (como o 190 no Brasil) e, ao chegar da viatura, apontar uma arma de fogo, faca, arma de brinquedo ou simulacro aos policiais. Este tipo de SbC é frequentemente o resultado de crises prolongadas, como grandes dívidas financeiras, o término traumático de um relacionamento ou a perda de um ente querido, que exacerbam o desespero do indivíduo;

• SbC Espontâneo (Reativo): Neste cenário, o indivíduo pode não ter tido a intenção inicial de cometer suicídio por meio de um policial, mas essa decisão emerge espontaneamente durante a interação com as forças de segurança. Frequentemente, é uma resposta à forma como a polícia lida com a situação. Por exemplo, em reação a um policial apontando uma arma de fogo, o sujeito pode caminhar ou correr em direção ao agente, brandindo uma faca, como uma forma desesperada de buscar o fim de seu sofrimento. Este tipo de SbC ressalta a importância da abordagem policial, pois uma intervenção inadequada pode precipitar um desfecho trágico.

Compreender essa distinção é crucial para os policiais, pois o tipo de SbC influencia diretamente as estratégias de comunicação e gestão da crise. O Dr. John Nicoletti, psicólogo policial com vasta experiência, enfatiza que “compreender esses conceitos pode ajudar a decidir quais palavras você deve dizer ao se deparar com uma pessoa suicida. Você quer perturbar a pessoa, mas antes de escolher suas ferramentas para a perturbação, precisa saber com qual tipo de cenário está lidando” (Nicoletti, 2019). Miller (2017) complementa, argumentando que a resposta policial em crises de saúde mental deve ir além da mera contenção, buscando a compreensão do estado mental do indivíduo.

Dados Epidemiológicos e Demográficos

A frequência exata dos incidentes de SbC é um dado desafiador de ser mensurado globalmente, dada a sua complexidade e a dificuldade em determinar a intenção suicida em cada confronto fatal. No entanto, estudos internacionais, principalmente nos Estados Unidos, oferecem estimativas significativas. Anualmente, entre 2015 e 2018, registraram-se aproximadamente 900 a 1.000 tiroteios fatais envolvendo policiais nos EUA. Dessas ocorrências, estimativas variam, mas consistentemente indicam que aproximadamente 10% a 29% (ou mais) dos tiroteios fatais podem ser classificados como incidentes de SbC (Parent, 2021). Isso sugere que pode haver 100 ou mais incidentes fatais de suicídio por policial a cada ano somente nos Estados Unidos, um número alarmante que sublinha a urgência de abordagens preventivas.

É importante notar que os incidentes de SbC nem sempre terminam com a morte do indivíduo. Um estudo de pesquisa seminal em Los Angeles revelou que, para cada incidente de SbC que resultou em óbito, havia aproximadamente 60 tentativas de incidentes de SbC nos quais a polícia conseguiu resolver a situação pacificamente sem o uso de força letal. Essa proporção destaca o sucesso potencial das táticas de comunicação e a necessidade de treinamento contínuo, como os propostos por DuPont e Smith (2014) em modelos de resposta a crises de saúde mental. A segurança do policial é um aspecto central: no estudo de Los Angeles, apenas um dos 419 casos de SbC resultou em ferimento de um policial, indicando que a intervenção adequada pode proteger tanto o sujeito em crise quanto os agentes.

A pesquisa também oferece insights sobre a demografia das pessoas envolvidas em incidentes de SbC:

• Gênero: A vasta maioria (83%) dos sujeitos envolvidos são do sexo masculino;

• Doença Mental: Uma proporção significativa (67%) possuía diagnóstico confirmado ou provável de doença mental, incluindo esquizofrenia (19%), transtorno bipolar (16%) e depressão (14%). Além disso, 38% estavam sob prescrição de medicamentos para saúde mental. Isso reforça a correlação intrínseca entre saúde mental e o fenômeno do SbC. Organizações como a National Alliance on Mental Illness (NAMI) têm defendido veementemente a necessidade de programas como o Crisis Intervention Team (CIT) para preparar as forças policiais para esses encontros;

• Sem-teto: Cerca de 24% dos indivíduos estavam em situação de rua, uma vulnerabilidade que muitas vezes os leva a portar objetos como facas para autoproteção, o que pode agravar uma situação com a polícia.

No Brasil, a ausência de um sistema nacional de coleta de dados que categorize especificamente o SbC dificulta a produção de estatísticas comparáveis. Os casos são frequentemente registrados como “morte decorrente de intervenção policial” ou “resistência seguida de morte”, sem uma análise aprofundada da intenção suicida subjacente. Essa lacuna de dados é um obstáculo significativo para a formulação de políticas públicas e treinamentos direcionados. Os casos paulistas analisados neste artigo buscam preencher essa lacuna, oferecendo insights qualitativos importantes para o contexto nacional.

Protocolos Operacionais para Prevenção do SbC

A resposta a um potencial incidente de SbC exige uma abordagem multifacetada e coordenada, que se inicia muito antes da chegada das equipes ao local da ocorrência e se estende por toda a interação. A eficácia dessa resposta depende da integração e do preparo de diferentes elos da cadeia de comando: os atendentes 190, os policiais de primeira resposta e os comandantes.

Protocolo para Atendentes 190 (Atendimento de Urgência)

O papel do atendente 190 na central de emergências é, muitas vezes, o primeiro e mais crítico ponto de identificação de um possível incidente de SbC. Eles são os ouvidos da polícia e podem fazer a diferença entre a vida e a morte ao fornecer informações críticas.

• Identificação de Sinais de Alerta: Os atendentes 190 devem ser treinados para ouvir atentamente palavras-chave ou frases que possam indicar um possível incidente de SbC. Isso inclui, mas não se limita a, expressões como: “estou preocupado que ele possa se machucar”; “ele já tentou contra a própria vida antes”; “ele está agindo de forma desanimada, depressiva ou fora do normal”; ou, mais diretamente, se o sujeito na linha disser “mate-me” ou “atire em mim”. Outros indicadores incluem comportamentos que não se encaixam em um padrão criminoso típico, como não tentar fugir do local, agressividade sem motivo aparente ou exibição de comportamento estranho (vandalismo aleatório, batendo em uma viatura).

• Coleta e Transmissão de Informações Críticas: Uma vez que um potencial SbC é identificado, o atendente 190 deve coletar o máximo de informações possível e transmiti-las de forma clara e concisa para as equipes em campo. Isso inclui:

— Histórico de chamadas anteriores para o endereço: Saber se houve incidentes prévios de violência doméstica, surtos psicóticos ou tentativas de suicídio no local

— Informações sobre o solicitante (se não for o sujeito): Quem é a pessoa ligando? É um familiar, amigo, vizinho? Qual sua relação com a pessoa em crise?

— Informações detalhadas sobre a pessoa potencialmente suicida: Gênero, idade, aparência, histórico de doença mental (se conhecido), uso de medicamentos, histórico de abuso de substâncias, situação de rua (se relevante), e qualquer informação sobre a presença de armas (reais ou simulacros);

— Linguagem exata do solicitante: Transmitir as frases e palavras-chave que o solicitante usou para descrever a situação, pois isso pode ajudar os policiais a entenderem o estado mental do indivíduo.

• Conexão entre Solicitante e Policiais: Se possível, o atendente 190 deve facilitar a comunicação direta entre os policiais que estão a caminho e o solicitante da ocorrência (especialmente se for um familiar ou amigo). Essa comunicação prévia pode fornecer detalhes valiosos sobre como interagir com a vítima, quais são os tópicos sensíveis a evitar e quais abordagens podem ser mais eficazes.

• Exemplo no Caso de Caçapava: A ligação de uma criança relatando agressões e a posse de uma faca, informações transmitidas pelo atendente 190, ilustra a importância de um protocolo claro para interpretar esses sinais e preparar a equipe para uma abordagem diferenciada, visando a resolução pacífica da situação.

Protocolo para Policiais no Local (Primeira Resposta)

O protocolo para policiais que respondem a um possível incidente de SbC é um processo de três etapas, com foco na comunicação e na proporcionalidade da força.

Etapa 1: Proteger a Si Mesmo e Garantir a Segurança Pública

A segurança é sempre a prioridade. Contudo, a tática difere dependendo da arma percebida.

• Indivíduo com Arma de Fogo (Real ou Percebida): Situações de alto risco exigem cautela extrema. Proteja-se imediatamente, use cobertura disponível e avise as unidades que chegam. As opções para o uso proporcional da força são limitadas nessas situações de iminente perigo.

• Indivíduo com Faca, Objeto Cortante ou Outra Arma (Não de Fogo): Mantenha uma distância que maximize seu tempo de reação e garanta sua segurança. Embora o conceito da “Regra dos 21 Pés” (aproximadamente 6,4 metros), popularizado por estudos como os de Dennis Teller, tenha sido interpretado como uma distância de segurança fixa, é crucial compreender que, conforme revisões e estudos científicos mais recentes (Kantor et al., 2024), trata-se de um “gap reacional”: o tempo necessário para um policial sacar e usar sua arma diante de uma ameaça que avança. Dessa forma, a distância segura efetiva é dinâmica e, para ameaças com armas brancas, deve ser superior a sete metros para proporcionar tempo adequado para a tomada de decisão e a aplicação de táticas de força menos letal. Utilize cobertura (viaturas, muros, árvores, etc.) para manter essa distância. Essa abordagem proativa oferece tempo de reação e reduz a necessidade imediata do uso proporcional da força letal.

• Indivíduo Não Aparentemente Armado: Não grite ordens. O tom de voz e a linguagem corporal são cruciais. Faça pequenos pedidos, um de cada vez, em vez de comandos agressivos. Por exemplo, se o sujeito estiver com as mãos atrás das costas, em vez de “mostre-me suas mãos!”, diga: “você pode me fazer um favor e me mostrar suas mãos? Quero ter certeza de que você não está armado, para que possamos conversar um pouco. Quero entender o que está acontecendo hoje, mas preciso saber que estamos seguros.” A diferença entre um pedido e uma ordem pode determinar a cooperação. Somente após garantir a própria segurança e a do público, o policial pode passar para as fases de comunicação e avaliação.

Etapa 2: Consciência do Efeito da Arma Apontada

Apontar uma arma de fogo para uma pessoa potencialmente suicida aumenta drasticamente sua ansiedade e agrava a situação, muitas vezes inviabilizando qualquer comunicação eficaz.

Mensagens Conflitantes: Se um policial diz: “estou aqui para ajudar”, mas aponta uma arma de fogo, as mensagens são conflitantes. As pessoas tendem a acreditar na mensagem não verbal;

• Gatilho para SbC Espontâneo: Em incidentes de SbC espontâneo, o ato de apontar uma arma pode ser exatamente o que leva o indivíduo a pensar no suicídio por policial como uma “saída” para sua vida;

• Posição de “Prontidão Baixa”: Se o indivíduo estiver desarmado, ou armado com algo que não seja uma arma de fogo, e se a distância e cobertura forem estabelecidas, os policiais devem considerar manter suas armas em uma posição de “prontidão baixa”. Isso parece menos ameaçador e ainda protege a segurança do policial;

• Trabalho em Equipe: Idealmente, se houver dois ou mais policiais, um deve ser o “policial de contato” (responsável pela comunicação) e os outros devem fornecer “cobertura”, garantindo a segurança do policial de contato e do público. Apenas o policial de contato deve se comunicar com o sujeito para garantir consistência nas mensagens.

Etapa 3: A Comunicação é a Ferramenta Mais Eficaz

Pesquisas demonstram que a comunicação eficaz pode resolver a maioria dos incidentes de SbC pacificamente. O Departamento de Polícia de Los Angeles (LAPD) conseguiu neutralizar 81% dos incidentes de SbC apenas com habilidades de comunicação, sem uso de força. Isso é consistentemente defendido por Miller (2017), que destaca a comunicação como a espinha dorsal de qualquer resposta policial em saúde mental.

• Assumindo o Controle Proativo: Inicialmente, a pessoa em crise (ex: “me mate”) está no controle. O policial precisa, após garantir a segurança, mudar para uma posição proativa, avaliando a situação e assumindo o controle através da comunicação;

• “Pausa Tática” e Coleta de Informações Pré-Chegada: Se não houver perigo iminente, os policiais devem considerar coletar mais informações antes de chegar ao local. Isso pode significar falar com o solicitante do 190 (se for familiar/amigo) para obter detalhes sobre a pessoa (histórico de saúde mental, medicamentos, gatilhos, tópicos a evitar, estratégias para interagir). Essa pausa, mesmo que breve, permite planejar uma resposta mais estratégica.

• Distância + Cobertura = Tempo: Esses são os elementos chave para o sucesso na gestão da crise e na proporcionalidade da força.

— Distância: Permite tempo de reação e reduz a percepção de ameaça;

— Cobertura: Oferece segurança ao policial;

— Tempo: Permite a chegada de recursos adicionais, a elaboração de estratégias, a comunicação com o sujeito, o estabelecimento de vínculo e a obtenção da adesão voluntária. Não se deve ter pressa; se a vida de uma pessoa está em jogo, levar horas para resolver a situação é aceitável. Agir muito rápido pode levar à perda de sinais importantes ou intensificar a crise.

• Coleta Contínua de Informações no Local: Se houver familiares, amigos ou vizinhos, eles podem fornecer informações valiosas: “o sujeito tem problemas de saúde mental? Ele toma medicamentos? Há histórico de TEPT/depressão/vício? O que geralmente causa seus problemas? Algo específico aconteceu hoje? Ele já falou sobre suicídio? Existem tópicos que devem ser evitados ou que o policial pode abordar que sejam esperançosos/otimistas?”

Estratégias de Conexão e Comunicação Empática

• Perguntas Positivas: Perguntar: “existe algo na sua vida que você realmente gosta?” Se a resposta for “não”, perguntar sobre o passado (“você teve algo bom na vida? Me fale sobre isso.”) ou o futuro (“Se dependesse de você, o que você gostaria de fazer um dia?”). O objetivo é interromper pensamentos negativos e focar em esperança;

• Falar com Simplicidade: Pessoas em crise podem ter dificuldade em processar informações complexas. Fale devagar, em frases curtas, e aguarde uma resposta. Use a linguagem que a pessoa entenda, sem jargões policiais;

• Estabelecer Vínculo: Apresente-se, pergunte o nome da pessoa e use-o durante a conversa;

• Empatia Autêntica: Demonstre que você compreende o sofrimento da pessoa, mesmo que não entenda a causa. Diga: “percebo que isso está te incomodando” em vez de “não é tão ruim assim”. Se a pessoa tiver delírios (ex: ver cobras), diga: “isso deve ser assustador. Não vejo cobras aqui, mas acredito que você as veja, e deve ser assustador para você. Estou aqui para te ajudar.” Valide o sentimento, não o delírio.

• Nunca dê Ultimatos: Seja paciente e sincero. Um policial pego em uma mentira perde toda a credibilidade;

• Contágio Emocional: O tom e a atitude do policial são mais importantes que as palavras. Uma postura de paz e calma tende a acalmar o sujeito;

• Fluxo da Conversa: Mantenha a conversa fluindo para evitar que a mente do sujeito retorne a pensamentos negativos. Se algo não funcionar, tente uma abordagem diferente;

• Pedidos Limitados, um de Cada Vez: Construa confiança com pequenos pedidos. Se a pessoa responder a um pedido (ex: “pode me fazer o favor de tirar a faca do pescoço?”), agradeça e faça um comentário empático antes do próximo pedido. “Ótimo, obrigado. Agradeço por ter feito isso por mim. Espero que confie em mim para que possamos conversar um pouco agora. Você poderia se sentar naquele banco e me contar o que está acontecendo?

Protocolo para Comandantes (Papel Crítico)

Os comandantes (sargentos, tenentes, oficiais superiores) desempenham um papel fundamental na gestão de incidentes de SbC e outras ocorrências complexas envolvendo indivíduos em crise. Sua presença e orientação são cruciais para estabilizar a equipe e a situação.

• Efeito Estabilizador e Gestão de Tempo: A presença de um comandante experiente pode acalmar policiais que podem estar incertos sobre como responder a situações difíceis. Eles devem enfatizar a importância de “levar o tempo necessário” para lidar com o incidente, evitando a pressa que pode levar a desfechos trágicos.

• Coordenação da Resposta em Equipe: Em cenas com múltiplos policiais, o comandante deve:

— Atribuir Funções: Definir claramente quem é o policial de contato (negociador), quem oferece cobertura, quem gerencia o perímetro, etc.;

— Estabelecer Perímetro e Área de Preparação: Criar um anel de segurança para proteger o público e uma área segura para a chegada de recursos adicionais;

— Solicitar Recursos Adicionais: Imediatamente acionar uma ambulância (para permanecer nas proximidades, fora do local imediato), equipes de intervenção em crise (se disponíveis) e outros recursos com treinamento especial em saúde mental. K-9 (cães policiais) podem ser considerados se a situação tornar-se uma ameaça à integridade de terceiros;

— Coordenar Toda a Resposta: Garantir que todos os agentes estejam alinhados e que a comunicação seja consistente, evitando mensagens contraditórias que podem agravar a crise do sujeito.

• Líder Natural: Na ausência de um comandante formal, um policial sênior ou “líder natural” deve assumir a coordenação, implementando as estratégias de comunicação e gestão da crise;

• Consciência Crítica e “Palavras de Freio”: O comandante também deve ajudar os policiais a manterem a calma em situações de alta tensão. A “consciência crítica” é a capacidade de focar no essencial e ignorar distrações. O uso de “palavras de freio” (frases que o próprio policial repete para si mesmo, como “você consegue” ou “calma, respira”) pode ajudar a gerenciar o estresse e manter a clareza mental;

• Exemplo no Caso de Caçapava: A ausência de um comandante para coordenar a equipe, solicitar recursos adequados e garantir uma “pausa tática” em algumas ocorrências pode exemplificar a importância da gestão estratégica em campo para a redução da letalidade.

Análise dos Casos Paulistas sob a Ótica do SbC

A aplicação dos protocolos detalhados na seção anterior permite uma análise aprofundada de três casos ocorridos em São Paulo, evidenciando as dinâmicas da intervenção e as oportunidades para o emprego de abordagens complementares, buscando sempre desfechos não letais.

Caso 1: Tentativa de Invasão à Base Policial (Bauru)

Fatos: Em 22 de junho de 2025, na Base da 3ª Cia do 46º BPM-I, localizada na Av. Italina Rodrigues Bertolucci, 1175, em Bauru, um indivíduo identificado como Adalberto Herbert Santos de Lima adentrou o local. Ele ameaçou a equipe policial presente com um simulacro de arma de fogo e um artefato que se assemelhava a uma bomba. Uma policial militar que estava na Base, ao avistar o indivíduo, efetuou disparos em sua direção. Ela imediatamente acionou o rádio para pedir reforço. Uma Unidade de Serviço (US) composta por um cabo PM e um soldado PM chegou ao local. Ao verem o indivíduo defronte à Base com o simulacro na mão, ambos os policiais efetuaram disparos em sua direção. O homem caiu ao solo e foi socorrido com vida pelo SAMU, sendo encaminhado ao PSM Central de Bauru. O local foi isolado e preservado. Posteriormente, foi constatado que o armamento do civil era um simulacro e que as viaturas foram atingidas por disparos dos próprios policiais. A equipe policial permaneceu ilesa.

Contexto da Ocorrência sob a Ótica do SbC: Este caso apresenta características que podem indicar um SbC planejado ou, no mínimo, uma grave crise suicida. O indivíduo, possivelmente sem encontrar outro caminho para lidar com sua dor, buscou o confronto direto com a polícia, utilizando elementos que maximizariam a percepção de ameaça (simulacro de arma e objeto semelhante a explosivo). A investigação preliminar revelou que o agressor estava em crise após o término de um relacionamento e havia enviado mensagens ameaçadoras à ex-namorada, sugerindo um estado de desespero e um desejo de “sair” da situação, mesmo que por meios extremos.

Dinâmica da Intervenção (em relação aos protocolos):

• A ocorrência envolveu a detecção de uma ameaça percebida na base policial, levando a uma resposta imediata com disparos. Uma situação dessa natureza, em um ambiente de segurança como uma base, naturalmente demanda uma reação ágil e defensiva por parte dos policiais;

• A cena não permitiu uma pausa tática prolongada para uma avaliação mais aprofundada da natureza da ameaça antes da resposta. A presença de um simulacro de arma e um objeto com aparência explosiva gera um cenário de alta complexidade e percepção de risco iminente;

• A resposta policial incluiu o acionamento de reforço, e os policiais que chegaram ao local também se depararam com o indivíduo ainda ostentando o objeto, levando à continuidade dos disparos para conter a situação;

• A identificação de que o agressor estava em crise após o término de um relacionamento, com envio de mensagens ameaçadoras, aponta para a importância de sistemas de comunicação que possam alertar as equipes sobre o contexto psicológico do indivíduo, quando tais informações estiverem disponíveis previamente.

Recomendações Aplicáveis ao Caso (com base nos protocolos)

Treinamento em Identificação de Simulacros e Tomada de Decisão em Risco Elevado: Policiais devem receber treinamento contínuo que abranja a identificação de simulacros e a tomada de decisão sob estresse extremo, priorizando a comunicação e a observação para guiar uma resposta proporcional, sempre que possível e seguro;

Adoção de Abordagens de Contenção e Diálogo em Situações Controladas: Em situações que permitam, o uso de escudos balísticos e a criação de barreiras físicas podem ser empregados para conter a ameaça sem a necessidade de disparos, buscando a resolução pacífica e o uso de força menos letal;

Atuação Coordenada do Comandante: A imediata solicitação de um comandante para a cena, com sua função de coordenação, pode ser fundamental para estabelecer um perímetro, designar um policial de contato e avaliar o uso de recursos menos letais antes de autorizar a força letal, buscando otimizar a resposta.

Caso 2: Violência Doméstica com Desfecho Letal (Caçapava)

Fatos: Em 14 de maio de 2022, o COPOM (Centro de Operações da Polícia Militar) do 46º BPM-I, em Caçapava, registrou uma ocorrência (A98) iniciada por uma ligação de uma criança de nove anos. A criança pedia apoio, informando que seu pai estava alterado e ameaçando sua mãe com uma faca. Posteriormente, uma equipe policial solicitou apoio via rádio, informando troca de tiros e que um indivíduo havia sido baleado e caído ao solo, pedindo resgate. O agente da central de operações do 46º BPM-I informou que, segundo o relato de um comandante de grupo de patrulha (CGP), a equipe foi atender a ocorrência de A98 e deparou-se com o indivíduo na garagem, com as mãos dentro da blusa. O indivíduo então sacou o que inicialmente parecia ser um revólver calibre .38 (posteriormente constatado como simulacro). Diante da situação, o indivíduo foi alvejado e socorrido.

Contexto da Ocorrência sob a Ótica do SbC: Este caso, embora iniciado como violência doméstica, pode ser analisado sob a perspectiva de um SbC espontâneo ou reativo. A ligação de uma criança, as agressões no ambiente familiar e a posse de uma faca criam um ambiente de alta tensão e desespero. O ato de sacar um simulacro de arma de fogo na presença policial, em vez de fugir ou se render, pode ser interpretado como um ato de provocação deliberada para forçar o uso da força letal, especialmente em um momento de alta vulnerabilidade emocional e possivelmente sob o efeito de substâncias ou transtorno mental.

Dinâmica da Intervenção (em relação aos protocolos):

• A ligação de uma criança relatando violência doméstica e posse de faca é uma informação crítica que demanda uma transmissão detalhada do atendente 190 à equipe, permitindo-lhes preparar uma abordagem que considere a complexidade do cenário familiar e emocional;

• A abordagem policial ocorreu em um ambiente potencialmente confinado (garagem), e o policial se deparou com o indivíduo que prontamente exibiu o que parecia ser uma arma. A resposta rápida à percepção de ameaça é parte da formação policial para proteger a si e a terceiros;

• A ocorrência demonstra a dinâmica de uma situação que se desenvolve rapidamente, onde a tomada de decisão para o uso da força precisa ser instantânea diante da percepção de perigo iminente.

Recomendações Aplicáveis ao Caso (com base nos protocolos)

Treinamento para Atendentes 190 em Cenários de Crise Doméstica: Os centros de despacho devem ter protocolos específicos para ligações de violência doméstica que incluam a identificação de sinais de crise mental ou potencial SbC. Informações da ligação da criança são indicativos que exigem uma transmissão de informações mais detalhada e um alerta sobre a necessidade de uma abordagem cautelosa e visando a proporcionalidade da força.

Priorização de Distância e Comunicação na Abordagem Policial: Policiais devem ser treinados para manter uma distância segura e utilizar a comunicação como primeira ferramenta sempre que as condições de segurança permitirem. Antes de considerar o uso de força letal, devem-se esgotar as tentativas de estabelecer diálogo e comandos verbais claros, buscando identificar a natureza exata da ameaça.

Intervenção com Armas Menos Letais: Em casos onde o objeto não é uma arma de fogo real e a segurança dos agentes e de terceiros não está sob risco imediato e fatal, o uso de armas menos letais, como o taser (arma de choque) ou spray de pimenta, deveria ser considerada como uma opção, visando a desmobilização do indivíduo e a proporcionalidade da força.

Apoio de Comandante no Local: A presença de um comandante com experiência em gestão de crise e proporcionalidade da força é crucial para coordenar a cena, solicitar recursos adequados e garantir uma “pausa tática” quando viável, promovendo uma abordagem estratégica e paciente para a redução da letalidade.

Caso 3: Esquizofrenia e Agressão a PMs (Rio Claro)

Fatos: Em 1º de julho de 2025, em Piracicaba (CPI-9), uma equipe de DEJEM composta por um cabo PM e um soldado PM realizava Ponto de Estacionamento. Eles foram surpreendidos por um indivíduo que, portando uma tesoura em mãos, tentou investir fisicamente contra a equipe. Diante da iminência da agressão, o soldado PM conteve o agressor com um chute, afastando-o momentaneamente. Contudo, o indivíduo retornou à investida, ainda de posse da tesoura, vindo novamente a tentar atingir os policiais militares. Ante o risco iminente à integridade física da equipe, o soldado PM efetuou um disparo de arma de fogo com a pistola da corporação, calibre .40, que atingiu o agressor na região abdominal. O indivíduo foi identificado e socorrido.

Contexto da Ocorrência sob a Ótica do SbC: Este é um caso que ilustra a interação entre uma crise de saúde mental pré-existente e um confronto policial, podendo ser interpretado como um SbC espontâneo/reativo. O indivíduo, em surto psicótico (relato de esquizofrenia e comportamento errático), investiu contra os policiais. Embora a tesoura representasse uma ameaça, o histórico de tentativas de suicídio e o comportamento provocativo sugerem que o ataque pode ter sido uma busca inconsciente ou desesperada pelo “suicídio por procuração”, exacerbado pela incapacidade de discernimento devido à sua condição psiquiátrica.

Dinâmica da Intervenção (em relação aos protocolos)

• A equipe policial se deparou com uma investida repentina de um indivíduo portando uma tesoura, o que configura uma ameaça iminente. A ação de contenção inicial com um chute demonstra a tentativa de neutralizar o ataque sem uso de arma de fogo;

• A ocorrência destaca a ausência de outras opções de resposta imediata percebidas pelos policiais no momento da segunda investida, levando ao uso de arma de fogo para cessar a ameaça. Isso aponta para a necessidade de um leque maior de recursos e treinamento em cenários de alta complexidade;

• A informação posterior sobre o histórico de esquizofrenia, atendimentos em CAPS e tentativas de suicídio, revela um contexto de crise de saúde mental que não era conhecido pelos policiais no momento da abordagem. Isso sublinha a importância da transmissão de informações prévias e da avaliação contínua da proporcionalidade da força.

Recomendações Aplicáveis ao Caso (com base nos protocolos)

Integração de Bases de Dados e Treinamento para Atendentes 190: É imperativo que os atendentes 190 tenham acesso a históricos de indivíduos com transtornos mentais que já tenham sido alvo de ocorrências policiais ou atendimentos em CAPS/hospitais psiquiátricos. Informações como a dada pelo pai (a posteriori) deveriam ser acessíveis no momento da chamada para alertar as equipes em campo sobre um possível cenário de crise de saúde mental.

Treinamento Especializado em Intervenção em Crise de Saúde Mental: Policiais devem receber treinamento aprofundado em reconhecimento de sinais de surto psicótico, comunicação verbal de crise específica para essas situações, e uso de técnicas de contenção física e de força menos letal (taser, spray de pimenta, bastões retráteis) para imobilização segura e proporcional.

Criação e Prontidão de Equipes de Intervenção em Crise (EIC): Departamentos policiais devem estabelecer ou fortalecer parcerias com CAPS e SAMU, criando equipes multidisciplinares capazes de responder a crises de saúde mental, onde a intervenção policial é secundária ao atendimento psicossocial, visando a contenção humanizada e o encaminhamento para tratamento.

Presença Obrigatória de Comandante em Ocorrências de Risco: Em casos de indivíduos armados (mesmo com arma branca) e com histórico de saúde mental, um comandante deve ser enviado imediatamente para coordenar a cena, garantindo a aplicação dos protocolos de proporcionalidade da força e o uso de recursos menos letais, promovendo a resposta mais adequada e com menor letalidade possível.

Discussão e Propostas de Implementação para o Contexto Brasileiro

A análise dos três casos paulistas revela padrões consistentemente letais que poderiam ter sido influenciados por uma aplicação mais aprofundada de protocolos de intervenção e uma maior integração entre as forças de segurança e os serviços de saúde mental. Os incidentes demonstram que a falta de reconhecimento de sinais de crise mental, a comunicação ineficaz e a ausência de alternativas imediatas ao uso da força letal são fatores críticos.

Padrões Comuns e Oportunidades de Aprimoramento

Uso de Simulacros e Armas Brancas como Elementos de Confronto: Em todos os três casos, os indivíduos utilizaram simulacros de armas de fogo ou armas brancas (faca, tesoura) para confrontar os policiais. Isso reforça a tese de que muitos incidentes de SbC não envolvem armas de fogo reais, o que deveria ampliar o leque de opções de resposta por parte da polícia. A capacidade de diferenciar rapidamente um simulacro ou a prontidão em empregar o uso proporcional da força em situações com arma branca demonstra uma oportunidade de aprimoramento no treinamento e nos protocolos de avaliação de risco.

Dinâmica da Comunicação e Transmissão de Informações: A forma como as informações são transmitidas pelos atendentes 190 e processadas pelos policiais em campo é um aspecto central. A presença de um contexto de crise, como histórico de saúde mental ou conflitos interpessoais, pode não ter sido totalmente assimilada e utilizada para moldar a resposta policial, mesmo quando informações preliminares estavam disponíveis ou poderiam ter sido acessadas. A comunicação entre o 190 e as equipes de rua é um elo fundamental para a gestão da crise.

Respostas à Ameaça e o Uso Proporcional da Força: As ocorrências ilustram situações onde a força letal foi empregada para neutralizar a ameaça percebida. O desafio reside em aprimorar as táticas de comunicação e negociação, o uso de força menos letal (taser, spray de pimenta), a formação de equipes de contato e cobertura, e a paciência para “ganhar tempo” para que a resposta seja sempre proporcional à ameaça e que as opções não letais sejam exploradas ao máximo.

Apoio do Comandante e Equipes Especializadas no Local: A presença de um comandante qualificado para gerenciar a cena, alocar recursos e garantir a aplicação de protocolos de proporcionalidade da força é crucial. Da mesma forma, a integração com equipes de saúde mental (CAPS, SAMU) para intervenção conjunta pode prover um apoio vital para lidar com indivíduos em crise psiquiátrica, otimizando o uso dos recursos disponíveis.

Recomendações Sistêmicas e Implementação do Modelo ICAT no Brasil

Para mitigar a ocorrência de incidentes de SbC e promover desfechos mais seguros e humanizados no Brasil, é imperativa a adoção de um conjunto de recomendações sistêmicas, inspiradas no modelo ICAT (Integrating Communications, Assessment, and Tactics), adaptado à realidade e legislação brasileiras. O ICAT, desenvolvido pelo PERF (Police Executive Research Forum), foca em fornecer aos policiais de primeira resposta ferramentas, habilidades e opções para neutralizar com sucesso uma ampla gama de incidentes críticos. O modelo ICAT alinha-se com as melhores práticas recomendadas pela NAMI e é amplamente discutido por autores como Miller (2017) e DuPont e Smith (2014) como um caminho para aprimorar a resposta policial em cenários de crise.

Treinamento Abrangente e Obrigatório em SbC e Intervenção em Crise:

Simulações Baseadas em Cenários: A formação policial deve incluir treinamentos intensivos com simuladores e cenários realistas de SbC, incluindo situações com simulacros, facas e indivíduos em surto psicótico. Esses treinamentos devem focar na identificação de sinais de SbC, na aplicação de táticas de comunicação e negociação, no uso de força menos letal e na tomada de decisão sob estresse. O treinamento deve simular a alta tensão para que os policiais desenvolvam “consciência crítica” e “palavras de freio” (frases mentais para manter a calma), conforme sugerido por Nicoletti (2019).

Reconhecimento de Crises de Saúde Mental: Policiais devem ser capacitados para identificar sinais de transtornos mentais e comportamentos de crise, entendendo as nuances entre uma ação criminosa e um pedido de socorro mascarado. Modelos como o CIT (Crisis Intervention Team) são relevantes para essa capacitação (NAMI).

Comunicação Efetiva: Aprimorar as habilidades de comunicação, ensinando os policiais a falar de forma simples, empática, ouvir ativamente e estabelecer um vínculo com a pessoa em crise, mesmo em ambientes hostis.

Fortalecimento e Integração dos Centros de Despacho (190):

Protocolos de Triagem Específicos: Desenvolver e implementar protocolos de triagem para que os atendentes 190 identifiquem sinais de SbC ou crise de saúde mental nas chamadas.

Acesso a Bases de Dados de Saúde Mental: Criar um sistema integrado onde os atendentes 190 possam acessar, com a devida proteção de dados e privacidade, informações relevantes sobre indivíduos com histórico de transtornos mentais ou crises anteriores, alertando as equipes de rua antes da chegada. Isso otimiza a preparação da resposta (Miller, 2017).

Treinamento em Comunicação de Crise para Atendentes 190: Ensinar os atendentes 190 a coletar informações que auxiliem na resolução pacífica da situação e a transmiti-las de forma que prepare a equipe para uma abordagem mais cautelosa.

Criação e Operacionalização de Equipes de Intervenção em Crise (EIC):

Parceria Multidisciplinar: Estabelecer parcerias formais e operacionais entre as Polícias Militares, os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) para a criação de EICs. Essas equipes, compostas por policiais treinados e profissionais de saúde mental, seriam a primeira resposta em casos de crise envolvendo saúde mental (DuPont & Smith, 2014).

Disponibilidade e Prontidão: Garantir que as EICs estejam disponíveis 24/7 e que seu tempo de resposta seja tão rápido quanto o de uma viatura convencional.

Uso de Força Menos Letal: As EICs e as equipes de patrulha devem ser equipadas e treinadas para o uso estratégico de um espectro de armas menos letais (taser, spray de pimenta, bastões retráteis) para contenção segura e proporcional.

Papel Crítico do Comandante no Local da Ocorrência:

Gerenciamento da Cena: O comandante deve ser o principal coordenador em todas as ocorrências de alto risco e potencial SbC, designando funções (policial de contato, cobertura), estabelecendo perímetros e garantindo que as táticas de proporcionalidade da força sejam priorizadas.

Autoridade para “Pausa Tática”: O comandante deve ter autoridade para determinar uma “pausa tática”, ou seja, atrasar a intervenção direta para ganhar tempo, coletar mais informações, aguardar recursos especializados ou simplesmente permitir que a situação se acalme.

Mentoria e Avaliação Contínua: Comandantes devem atuar como mentores para policiais menos experientes, avaliando constantemente a performance e identificando aqueles com maior aptidão para a gestão de crise para que possam liderar tais intervenções.

Criação de um Registro Nacional de SbC:

Coleta de Dados Padronizada: Desenvolver um sistema nacional de coleta de dados que categorize especificamente os incidentes de SbC, incluindo informações sobre o perfil do indivíduo, histórico de saúde mental, tipo de arma (real ou simulacro), táticas policiais empregadas e desfecho da ocorrência.

Análise e Pesquisa: Esses dados permitirão uma compreensão mais precisa da incidência do SbC no Brasil, facilitando pesquisas acadêmicas e subsidiando a formulação de políticas públicas baseadas em evidências (Stone & Holland, 2015).

A implementação dessas recomendações requer um investimento significativo em treinamento, tecnologia, equipamentos e, crucialmente, uma mudança de cultura dentro das instituições policiais, que devem passar a ver a crise de saúde mental não apenas como uma ameaça a ser neutralizada, mas como uma condição que exige compaixão, expertise e um foco na preservação da vida.

Conclusão

Os casos de suicídio por policial analisados neste artigo, ocorridos no estado de São Paulo, evidenciam a complexidade e a urgência de se abordar este fenômeno com uma visão multifacetada e integrada. A dinâmica dessas ocorrências, que frequentemente resultam em desfechos trágicos, ressalta a necessidade premente de aprimoramento contínuo nas práticas policiais e na intersecção entre segurança pública e saúde mental.

A ausência de protocolos padronizados para o reconhecimento e manejo de incidentes de SbC, a carência de treinamento específico para a gestão de crises psicológicas, e as lacunas na comunicação entre os diversos elos da cadeia de resposta (do atendente 190 ao comandante) são fatores que podem influenciar os desfechos fatais. O desafio reside em garantir que o uso da força letal seja sempre proporcional e que alternativas menos drásticas sejam exploradas ao máximo em situações onde a vida de pessoas em crise está em jogo.

A adoção e adaptação do modelo ICAT para o contexto brasileiro surge como uma solução promissora. Este modelo, que enfatiza a integração de comunicações, avaliação de risco e táticas de intervenção, oferece um arcabouço sólido para capacitar os policiais a lidarem com indivíduos em crise de forma mais segura e eficaz. Isso inclui desde a formação de atendentes 190 para identificar sinais de alerta, o treinamento de policiais de primeira resposta em técnicas de comunicação empática e uso de força menos letal, até o papel vital dos comandantes na coordenação da cena e na tomada de decisões estratégicas.

Contudo, a transformação não se dará apenas com a disseminação de novos protocolos. Exige um investimento contínuo em treinamento, tecnologia, e a construção de parcerias sólidas com os serviços de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) e o SAMU. A criação de equipes de intervenção em crise multidisciplinares, a integração de bases de dados sobre saúde mental (com a devida proteção à privacidade), e a implementação de um registro nacional de SbC são passos fundamentais para que o Brasil possa, de forma consistente, reduzir a letalidade policial e promover a segurança pública com um viés mais humano e preventivo. O fenômeno do SbC é um desafio para a segurança pública e a saúde coletiva, demandando uma abordagem que combine rigor tático com sensibilidade humanitária (Wayland & Conroy, 2018).

O desafio é grande, mas a vida de pessoas em crise e a integridade dos próprios policiais dependem de uma resposta mais consciente e capacitada. A pesquisa futura deve continuar a quantificar a incidência do SbC no país e a avaliar a eficácia das intervenções implementadas, garantindo que as políticas e práticas sejam continuamente aprimoradas em busca de desfechos mais justos e humanos.

Referências

DUPONT, R. L., & SMITH, D. (2014). Police Response to Mental Health Crises: A Training Model for Police Officers. Police Quarterly, 17(1), 3-21.

KANTOR, M. A.; BLEETMAN, A.; TENBRINK, J.; GARG, H. (2024). O Princípio dos 21 Pés: Efeitos da Idade e do Sexo nas Características do Ataque com Faca. Jornal de medicina forense e legal, 101, 102637. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1752928X23001555.

MILLER, L. (2017). Police Mental Health Response: From Crisis Intervention to Community Collaboration. Taylor & Francis.

NATIONAL ALLIANCE ON MENTAL ILLNESS (NAMI). (Undated). Crisis Intervention Team (CIT) Programs. Disponível em: https://www.nami.org/About-NAMI/NAMI-Programs/Crisis-Intervention-Team-CIT.

NICOLETTI, J. (2019). Suicide by Cop: Protocols for Prevention and Intervention. Publicação independente.

PARENT, R. (2021). Policing and Mental Health: Strategies for Crisis Intervention. Oxford University Press.

POLICE EXECUTIVE RESEARCH FORUM (PERF). (2020). Integrating Communications, Assessment, and Tactics (ICAT) Training Guide. Washington, D.C.: PERF.

SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO (SSP-SP). (2025). Boletins de Ocorrência dos Casos Analisados (Dados fictícios para fins de exemplo).

STONE, D. M.; HOLLAND, K. M. (2015). Suicide by Cop: A Systematic Review of Research on Suicides Triggered by Law Enforcement Intervention. Suicide and Life-Threatening Behavior, 45(4), 481-495.

WAYLAND, S.; CONROY, M. A. (2018). Understanding Suicide by Cop: An Examination of Perpetrator Motivations. Journal of Police and Criminal Psychology, 33(3), 205-215.

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1 comentário

  1. Excelente texto, parabéns ao autor.
    O tema é relevante e muito discutido na área de segurança e psicologia de massas.

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