A Guerra Russo-Ucraniana subtraiu recursos monumentais do governo dos EUA, inimagináveis para qualquer país, e fica a questão: terão efetividade, ou representam o “canto do cisne” de uma superpotência que atingiu uma descendente irreversível?
Introdução
O presente artigo tem por finalidade apresentar o volume da ajuda financeira concedida pelos EUA à Ucrânia, comparando-o com outras situações da história e da atualidade, a fim de que possamos ter a noção do quão astronômico foi (e continuam sendo) o volume dos recursos financeiros para assistência à Ucrânia, envolvendo desde valores para ajuda humanitária, funcionamento da máquina pública ucraniana e, principalmente, para a ajuda militar destinada ao desenvolvimento das operações militares.
Também apresentaremos os recursos fornecidos às empresas da base industrial de defesa do EUA, destinados a apoiar o esforço norte-americano para viabilizar sua estratégia que visa permitir, em última instância, a adesão da Ucrânia à OTAN.
Lembro que trataremos somente dos recursos fornecidos pelo governo dos EUA, deixando de considerar aqui os bilhões de dólares fornecidos pelos demais parceiros da OTAN, ou mesmo de países extra-OTAN (particularmente o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália).
Para fins de compreensão da dimensão da ajuda fornecida pelos EUA à Ucrânia entre os anos de 2022 e 2024, apresentaremos um caso histórico, qual seja, os recursos empregados pelos EUA no gigantesco esforço empreendido no pós-Segunda Guerra Mundial, no chamado Plano Marshall, entre os anos de 1947 e 1951. E para que possamos avaliar um contexto mais próximo da nossa realidade, realizaremos uma comparação com o orçamento de Defesa das Forças Armadas brasileiras no mesmo período da ajuda fornecida pelo governo Biden à Ucrânia (2022-2024).
O Plano Biden para a Ucrânia (2022-2024)
No governo Biden, desde a invasão russa de fevereiro de 2022, a Ucrânia se tornou o principal destinatário europeu de todos os tempos da ajuda externa dos EUA.
Desde o início da Guerra Russo-Ucraniana (a partir de fevereiro de 2022), o Congresso dos EUA votou cinco projetos de lei que forneceram ajuda contínua à Ucrânia, fazendo isso mais recentemente em abril de 2024. O volume orçamentário total desses projetos de lei atinge a impressionante marca de US $175 bilhões (MASTERS e MERROW, 2024).
Tais somas históricas tiveram o propósito expresso de ajudar um amplo conjunto de pessoas e instituições ucranianas, passando desde os refugiados, ao funcionamento das polícias e das emissoras de rádio privadas e estatais, atuação da inteligência ucraniana, funcionamento das instituições e do governo ucraniano, dentre muitas outras.
Entretanto, a maior parte do Plano Biden tem sido relacionada aos gastos militares. Como dissemos, estamos considerando apenas a ajuda norte-americana, pois dezenas de outros países, incluindo a maioria dos membros da organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da União Europeia (UE), também estão fornecendo grandes pacotes de ajuda à Ucrânia.
No Gráfico 1, apresentamos os volumes de recursos fornecidos à Ucrânia ao longo dos cinco projetos de lei de dotações suplementares propostos pelo governo Biden ao Congresso dos EUA, e que foram posteriormente aprovados. Os projetos aprovados entre janeiro de 2022 e janeiro de 2023 contaram com a maioria democrata, tanto no Senado quanto na Câmara dos Representantes.
O último projeto já envolveu uma longa disputa entre republicanos e democratas, fruto da maioria conquistada pelos partidários do atual presidente eleito Donald Trump.
Convém lembrar que assuntos relacionados à segurança nacional e à defesa não costumam gerar tamanha divisão política nos EUA, pois normalmente obtém um consenso bipartidário. Mas de forma inédita, republicanos adiaram ao máximo a aprovação do quinto “pacote” de ajuda financeira à Ucrânia, em troca do atendimento de outros interesses locais defendidos pelos partidários de Trump, como recursos destinados ao controle da imigração.
É importante notar que, do total de US $175 bilhões, o volume de US $106 bilhões da ajuda foi realizado diretamente junto ao governo da Ucrânia. O restante dos recursos se destina a financiar várias atividades nos EUA associadas à guerra na Ucrânia, particularmente ao financiamento das empresas da base indústria de defesa dos EUA, de forma a capacitá-las e adequá-las ao atendimento do volume de recursos fornecidos às forças armadas ucranianas, ou ainda, a repor estoques de armas e equipamentos retirados das reservas estratégicas das Forças Armadas dos EUA.
Em que pese tal disputa, o valor aprovado no quinto e último projeto foi o maior de todos, como podemos observar no Gráfico 1.
A maior parte dos recursos destinados à Ucrânia se destina a fornecer equipamentos, armamentos e outras despesas militares. Isso inclui principalmente os seguintes programas:
• O Ukraine Security Assistance Initiative (USAI); e
• O Presidential Drawdown Authority (PDA), este último, que permite a transferência de equipamentos militares diretamente para a Ucrânia sem autorização do Congresso.
O USAI é um programa gerenciado pelo Departamento de Defesa dos EUA, com o objetivo de aumentar a capacidade da Ucrânia de se defender contra a agressão russa. O programa foi criado para fornecer treinamento, equipamentos e iniciativas de consultoria para as Forças Armadas ucranianas.
O USAI foi autorizado conforme previsão contida na Seção 1250 da Lei de Autorização de Defesa Nacional, de 2017. Com base nessa previsão legal, o USAI foi implementado em resposta à invasão russa na Ucrânia em 2022. O programa é coordenado em conjunto com o Departamento de Estado dos EUA e pela Agência Central de Inteligência (CIA).
Desde sua criação, o USAI tem fornecido uma variedade de assistência de segurança à Ucrânia, incluindo:
• Treinamento: Melhoria das capacidades de defesa marítima, segurança operacional e capacidade das instalações da Força Aérea ucraniana;
• Equipamentos: Fornecimento de armas letais e suprimentos correspondentes, sistemas de radar, drones de vigilância, sistemas de defesa cibernética e de guerra eletrônica; e
• Consultoria: Suporte institucional e transformação institucional para fortalecer a defesa territorial da Ucrânia.
Já o PDA é uma ferramenta de política externa dos EUA que permite ao presidente autorizar a retirada de armas e serviços de defesa dos estoques do Departamento de Defesa dos EUA para fornecer assistência militar a países estrangeiros em emergências. Essa rubrica permite a entrega rápida de ajuda militar, muitas vezes em questão de dias ou até horas após a aprovação.
Desde 2022, o governo Biden utilizou o PDA para fornecer assistência militar contínua à Ucrânia, sendo que até agora foram realizadas 55 retiradas de armas e serviços de defesa dos estoques dos EUA para a Ucrânia.
A distribuição anual do PDA (2022-2024) foi a seguinte:
• 2022: US$ 12,725 bilhões.
• 2023: US$ 12,95 bilhões; e
• 2024 (até setembro), cerca de US$ 6,4 bilhões.
Lembrando que os recursos de PDA são realizados sem necessidade de aprovação do Congresso americano. Entretanto, é importante destacar que os recursos empregados por meio do PDA necessitam de reposições obrigatórias, daí decorre que boa parte dos recursos são aplicados no território dos Estados Unidos, particularmente em novas compras para reposição dos materiais e suprimentos fornecidos em caráter emergencial.
Os fundos onde se aplicam os valores orçamentários gastos em território dos EUA estão enquadrados basicamente em três rubricas:
• O Defense Production Act – Title III (DPA);
• Ukraine Supplemental and Replenishment Funding (USRF); e
• A rubrica orçamentária E.O. 14017 FY23.
Respectivamente, tais fundos, destinados ao incremento da capacidade produtiva da indústria de defesa, foram gastos da seguinte forma entre 2022 e 2024 (DEPARTMENT OF DEFENSE, 2024):
• DPA – US$ 746 milhões;
• USRF – US$ 4,9 bilhões; e
• E.O. 1417 FY23 – US$ 691 milhões.
Em termos de materiais fornecidos, a partir de todos os recursos disponibilizados pelos diversos projetos de assistência à Ucrânia, se destacam os apresentados na Tabela 1 (DEPARTMENT OF DEFENSE, 2024):
No Gráfico 2 podemos observar a destinação dos recursos financeiros fornecidos diretamente à Ucrânia, por meio de diferentes rubricas orçamentárias.
Análise comparativa
Plano Biden x Plano Marshall
Com esse volume de recursos aplicados na Ucrânia, o governo Biden atingiu uma marca que parecia ser insuperável: pela primeira vez um país europeu ocupa o primeiro lugar no ranking da ajuda internacional desde que o governo Harry S. Truman, a partir de 1947, direcionou para a Europa, que havia sido devastada pela Segunda Guerra Mundial, vastíssimas somas de recursos.
Para recordar, o Plano Marshall, oficialmente conhecido como “Programa de Recuperação Europeia”, foi um programa financiado pelo orçamento dos Estados Unidos, destinado à reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial.
Quando a Segunda Guerra Mundial terminou em 1945, a Europa estava em ruínas: suas cidades foram destruídas; suas economias foram devastadas; seu povo enfrentou a fome. Nos dois anos após a guerra, o controle da Europa Oriental pela União Soviética e a vulnerabilidade dos países da Europa Ocidental ao expansionismo soviético aumentaram a sensação de crise.
Em 19 de dezembro de 1947, o presidente Harry Truman enviou ao Congresso uma mensagem onde apresentava o propósito de fornecer ajuda econômica à Europa. O Congresso aprovou por esmagadora maioria a Lei de Cooperação Econômica de 1948 e, em 3 de abril de 1948, o presidente Truman assinou a lei que ficou conhecida como Plano Marshall.
O Plano Marshall durou aproximadamente quatro anos. Ele foi implementado em abril de 1948 e continuou até 1951. O valor total fornecido pelo Plano Marshall foi de aproximadamente US$ 13,3 bilhões (NATIONAL ARCHIVES, 1948).
Em valores atualizados, esse montante seria equivalente nos dias de hoje a cerca de US$ 130 bilhões. Até hoje o Plano Marshall era apontado como exemplo da magnitude da ajuda financeira fornecida pelos Estados Unidos; mas ele não é mais a referência.
Como conclusão parcial, foi possível identificar que o valor total do “Plano Biden” supera os gastos do Plano Marshall em cerca de US$ 45 bilhões.
Plano Biden x Orçamento de Defesa do Brasil
Não é preciso realizar nenhum esforço mais elaborado para imaginar que o “Plano Biden” seria consideravelmente maior que os orçamentos somados da Marinha do Brasil, do Exército Brasileiro, da Força Aérea Brasileira e da Administração Central do Ministério da Defesa, somados os empenhos efetivamente realizados entre os anos de 2022 e 2024.
Vamos aos números. Conforme o Portal da Transparência do Governo Federal, foram os seguintes os valores do orçamento executado na rubrica de Defesa Nacional, entre os anos de 2022 e 2024 (até 31 de dezembro) (BRASIL, 2025):
• 2022: R$ 78,02 bilhões;
• 2023: R$ 78,99 bilhões; e
• 2024: R$ 82,06 bilhões.
O somatório das despesas realizadas entre 2022 e 2024 chega ao total de R$ 239,07 bilhões.
Na cotação do dia em que esse artigo foi escrito, um dólar norte-americano (USD) equivale a aproximadamente 6,17 reais brasileiros (BRL). Portanto, R$ 239,07 bilhões seriam aproximadamente US$ 38,74 bilhões.
Como conclusão parcial, vemos que o “Plano Biden” supera o orçamento executada na rubrica Defesa Nacional do Brasil em US$ 136,26 bilhões. Isso significa que os gastos do governo Biden com a Ucrânia representam mais de 4,5 vezes a soma dos orçamentos das Forças Armadas do Brasil, somados os gastos empenhados nos anos de 2022, 2023 e 2024.
Conclusão
O status quo desse conflito armado e seus terríveis resultados são bastante claros: depois de mais de 1.000 dias de guerra, cerca de 119 mil quilômetros quadrados do território ucraniano estão sob ocupação russa, assim como infraestruturas destruídas e que em algum momento precisarão ser reconstruídas.
Mas há também as cicatrizes no povo ucraniano, ou seja, o lado humano (ou desumano) da guerra: um número altíssimo de mortos e feridos graves, mantidos em sigilo pelo governo ucraniano, assim como milhões de pessoas deslocadas.
Na verdade, com o apoio desses recursos dos EUA, o poder militar ucraniano é formidável. Com as forças armadas ucranianas totalizando um efetivo de 700 mil homens, dotadas do mais moderno equipamento convencional que os EUA e seus parceiros da OTAN são capazes de fornecer, e empregando indiretamente meios que são negados à maioria absoluta das Forças Armadas do mundo, tais como meios de reconhecimento satelital, inteligência, cibernéticos e outros, fornecidos por seus aliados, a Ucrânia não é um adversário limitado, que resiste bravamente ao poder russo apenas pela incompetência das tropas de Putin e Gerasimov.
O valor gasto no “Plano Biden” foi suficiente? Seria necessário mais?
Uma coisa é certa, não faltaram recursos para a Ucrânia combater a invasão russa. A Rússia não combate hoje um país de capacidades limitadas, como se convencionou anunciar desde fevereiro de 2022.
Nossas conclusões parciais nos mostram que somente considerados os recursos fornecidos pelos EUA, a Ucrânia recebeu volumes impressionantes (um trabalho posterior pode se dedicar a estudar os apoios dos demais aliados da Ucrânia).
Mas com todos esses recursos, é inadmissível que não haja um objetivo político bastante claro para a estratégia dos EUA nessa guerra. Seria punir a Rússia pela invasão? Ou apenas garantir que a Ucrânia seja admitida na OTAN? Ou ambos?
Por outro lado, poderia a estratégia dos EUA ter falhado?
Separei algumas manchetes de artigos da mídia internacional para comparar com as conclusões parciais desta análise.
Em 19 de abril de 2024, em uma entrevista à Aljazeera, o general reformado Ben Hodges, ex-comandante das Forças dos EUA na Europa afirmou que a Rússia não tem capacidade ganhar da Ucrânia na guerra. Segundo Ben Hodges, as potências ocidentais devem superar seus temores de apoiar a Ucrânia rumo à vitória (PSAROPOULOS, 2024).
Já um artigo do jornal francês Le Monde assim declarou: “A Política ocidental permite à Ucrânia travar guerra, mas não vencê-la ou sobreviver depois” (KAUFFMANN, 2024). Este artigo do Le Monde não foi escrito por um militar, mas por uma colunista do jornal, especializada em temas geopolíticos, a senhora Sylvie Kauffmann.
Já o presidente ucraniano, Zelensky, assim se pronunciou em seu discurso de Ano Novo:
“Penso que os Estados Unidos também apoiarão a Ucrânia nos primeiros minutos de paz. Lembro-me da minha conversa com Joe Biden após a invasão russa. Lembro-me de minha conversa com Donald Trump depois de ele ter sido eleito. Todas as conversas com congressistas, senadores, americanos comuns, com todos aqueles que nos apoiam nos Estados Unidos, na Europa e em todo o mundo. E nessas muitas e variadas conversas, sempre houve unidade no ponto principal: Putin não pode vencer. A Ucrânia prevalecerá.
Agradeço a todos os americanos por provarem estas palavras com atos. Não tenho dúvidas de que o novo presidente americano está disposto e é capaz de alcançar a paz e acabar com a agressão de Putin” (ZELENSKY, 2024).
Qual das três visões estaria correta?
A reposta a essa questão deixaremos para os negociadores do presidente Trump, que em breve iniciarão seus trabalhos junto aos governos ucraniano e russo, com vistas a encerrar esse conflito, se possível ainda no ano de 2025.
Mas se o resultado das negociações não vier acompanhado da efetividade correspondente, que se espera do emprego de uma montanha de recursos como a empregada no Plano Biden, algo estará muito errado.
A Guerra Russo-Ucraniana subtraiu recursos monumentais do governo norte-americano, inimagináveis para qualquer um que labute nas dificuldades orçamentárias de uma potência militar média como o Brasil.
Mas o fato é que os recursos do Plano Biden em muito superaram o indiscutivelmente bem-sucedido Plano Marshall, um dos responsáveis por elevar os EUA ao status de potência hegemônica global.
Terá o Plano Biden a mesma efetividade, ou ele seria o “canto do cisne” de uma potência que atingiu uma descendente irreversível em sua influência geopolítica, neste momento de transformação hegemônica global?
Somente o tempo poderá nos mostrar.
Referências
BRASIL. Controladoria-Geral da União. Defesa Nacional. Disponível em: https://portaldatransparencia.gov.br/funcoes/05-defesa-nacional?ano=2024.
DEPARTMENT OF DEFENSE. Support for Ukraine Infographic. Disponível em: https://media.defense.gov/2024/Oct/23/2003569328/-1/-1/0/UKRAINE-INFOGRAPHIC-16OCT2024.PDF.
KAUFFMANN, Sylvie. Western policy allows Ukraine to wage war, but not win it or survive afterward. Le Monde, 4 de setembro de 2024. Disponível em: https://www.lemonde.fr/en/opinion/article/2024/09/04/western-policy-allows-ukraine-to-wage-war-but-not-win-it-or-survive-afterward_6724741_23.html.
MASTERS, Jonathan; MERROW, Will. How Much U.S. Aid Is Going to Ukraine? Council on Foreign Relations, 27 de setembro de 2024. Disponível em: https://www.cfr.org/article/how-much-us-aid-going-ukraine.
NATIONAL ARCHIVES. Marshall Plan (1948). Disponível em: https://www.archives.gov/milestone-documents/marshall-plan.
PSAROPOULOS, John T. West needs to overcome fear of winning in Ukraine, says ex-US commander. Aljazeera, 19 de abril de 2024. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2024/4/19/west-needs-to-overcome-fear-of-winning-in-ukraine-says-ex-us-commander.
ZELENSKYY, Volodymyr. New Year’s Greetings from President of Ukraine Volodymyr Zelenskyy. Disponível em: https://www.president.gov.ua/en/news/novorichne-privitannya-prezidenta-ukrayini-volodimira-zelens-95297.