As previsões do início da guerra na Ucrânia não se concretizaram; passado um ano, há poucos motivos para otimismo e nenhum para comemorar, e a única certeza que se pode ter é que, daqui a mais um ano, nada será como previsto hoje.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, um ano atrás, poucos analistas – na verdade, quase nenhum – previram que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia seria longa. Quando ficou claro que a Ucrânia resistiria, com forte apoio dos EUA e União Europeia (UE), as previsões mudaram e passou-se a falar sobre os erros cometidos pela Rússia. Nos primeiros meses da invasão, a imprensa ocidental não se cansou de fazer projeções de que a Rússia ficaria sem munição em poucas semanas ou meses. Com as sanções impostas pelos EUA e UE, as previsões asseguravam que a economia russa entraria em colapso em breve. Politicamente, muito se falou sobre a iminente queda de Vladimir Putin – como se um eventual substituto fosse automaticamente encerrar a guerra e render-se aos encantos da OTAN.
Um ano depois, a realidade mostra-se bastante diferente. É verdade que houve erros russos e sucessos ucranianos. Não se pode negar que a Rússia cometeu erros militares, fez subestimações e suposições incorretas. E é patente o heroísmo do povo ucraniano, que tem demonstrado resiliência e capacidade de resistência.
No Ocidente, a propalada unidade da União Europeia apresenta vislumbres de fissuras internas entre os apoiadores mais fervorosos de Zelensky, como Polônia e os países Bálticos, e os menos entusiasmados, como Alemanha e França. Também há tensões entre Bruxelas e a Hungria (embora com óbvio exagero, chegou-se a falar em “Huxit”, em analogia ao Brexit). Ainda assim, a União Europeia mostra-se unida no apoio aos EUA contra a Rússia – muitas vezes contra seus próprios interesses, mostrando subserviência a Washington.
Na Ucrânia, o quadro é sombrio. Já são mais de oito milhões de refugiados espalhados por diversos países da Europa, em especial a Polônia (e três milhões na Rússia), cerca de seis milhões de deslocados internos, vários milhões que precisam de algum nível de assistência humanitária e estimados de 100.000 a 150.000 mortos, entre militares e civis. O custo humanitário é alto. Em termos financeiros, a reconstrução do país será de uma escala gigantesca. Com estimativas variando entre cerca de US$ 600 bilhões até mais de um trilhão, reconstruir da Ucrânia pode se tornar um lodaçal logístico e financeiro.
Na Rússia, Vladimir Putin enfrenta problemas, mas ao contrário das expectativas ocidentais, o regime de Moscou está longe de cair. O país soube se reinventar frente às sanções, contornando-as por meio de terceiros países ou atualizando a cultura soviética de lidar com “déficit permanente”, criando alternativas para peças de reposição ou medicamentos, mesclando partes e tecnologias de diferentes épocas e países para manter ou aumentar sua capacidade de produção.
Não obstante as previsões de colapso econômico russo em pouco tempo, o impacto das sanções um ano depois não ficou nem próximo das expectativas. A economia russa provou ser bastante resistente. Em abril/maio do ano passado, boa parte dos analistas esperava que o PIB da Rússia em 2022 cairia de 7% a 8%, com alguns prevendo queda de até 15%. Previa-se que os investimentos cairiam até 28% e o comércio varejista até 9%, com os preços subindo de 20% a 25%.
No entanto, as coisas aconteceram de maneira diferente. O forte declínio nas importações, a proibição das exportações de moeda estrangeira e outras medidas levaram a uma valorização do rublo, enquanto a ajuda estatal a bancos e empresas permitiu a manutenção dos níveis de investimento. As sanções contra as exportações russas mostraram-se ineficazes ao menos no curto prazo, pois os altos preços de energia continuaram a abastecer os cofres de Moscou.
De acordo com previsões mais atuais, a queda do PIB em 2022 deverá ser de apenas cerca de 2,1%, a inflação se estabilizará em cerca de 12%, o investimento cairá cerca de 1% e a renda real da população cairá de 2% a 2,5%. A estimativa de queda no varejo, de cerca de 6%, está mais próxima das previsões anteriores.
Obviamente, é preciso acompanhar como o país lidará com as sanções no médio e longo prazo. 2023 será crucial para isso.
Escassez de munição
Em meados de 2022, noticiou-se que a Rússia disparava até 60 mil projéteis de artilharia por dia sobre a Ucrânia. No início de 2023, em meio à reorganização para a ofensiva russa pós-inverno, a Ucrânia, com amplo apoio dos EUA e membros da OTAN, provavelmente está disparando de seis mil a sete mil projéteis por dia. Enquanto isso, o Exército russo continua despejando cerca de três a quatro vezes mais – de 20 a 24 mil projéteis diários.
Há rumores de que a Coreia do Norte estaria fornecendo munição a Moscou; embora não haja provas concretas, não seria de surpreender. Em relação a outros armamentos, tem sido amplamente divulgado que o Irã está vendendo drones aos russos, e possivelmente venha a fornecer (ou talvez já esteja fornecendo) foguetes e mísseis. De uma forma ou de outra, isso tem permitido que os russos usem muito poucos de seus mísseis mais avançados – e caros –, como o Kinzhal, por exemplo.
Em contraste, o Ocidente começa a enfrentar problemas para manter o ritmo de fornecimento de munições à Ucrânia. Não obstante o aumento dos gastos militares em vários países, em especial nos EUA, que tem um orçamento militar cerca de oito a dez vezes maior do que o russo, os países da OTAN é que parecem prestes a ficar sem munição, já a Ucrânia a está usando em um ritmo mais rápido do que podem fornecer.
Política – e Geopolítica
Não se sabe como a ordem política em Moscou será afetada se a guerra continuar por muito mais tempo, mas por enquanto, Putin continua firme. Há sinais de oposição à guerra em determinadas partes da sociedade russa, e a mídia divulgou amplamente a resistência à mobilização levada a cabo pela Rússia em 2022. Ainda assim, seja por patriotismo, seja por medo de repressão estatal, o fato é que a grande maioria da sociedade russa parece apoiar o governo.
No âmbito internacional, o Ocidente continua mostrando a guerra como um conflito entre a liberdade e o autoritarismo, evocando a cultura da Guerra Fria com toques de romantização – uma luta entre o “Iluminismo” e as “Trevas”, entre o “Bem” representado pelo Ocidente e o “Mal” representado pela Rússia.
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Nos EUA, preocupações com a crescente assertividade da China, levantam questionamentos sobre o risco de ter que lidar com duas frentes simultâneas, e já há quem gostaria de acabar com a guerra Ucrânia antes que algo aconteça na Ásia. Aliás, muitos nos EUA temem que a China passe a apoiar a Rússia mais incisivamente.
O chamado Sul Global não acompanhou o Ocidente na aplicação de sanções contra a Rússia, e continua a ver esta guerra como um conflito próprio dos países do Norte, ou uma luta por hegemonia que procura arrastar o restante do planeta para longe dos verdadeiros desafios – redistribuição da riqueza, segurança alimentar, uma efetiva representação em organizações internacionais, e assim por diante. No Brasil especificamente, até aqui nos mantivemos relativamente neutros – no entanto, determinadas ações do novo governo parecem mostrar que caminhamos na contramão do BRICS e do Sul Global. É preciso acompanhar a evolução.
Economia
No Ocidente, muitos começam a questionar o enorme custo financeiro e político de longo prazo desta guerra. A assistência dos EUA à Ucrânia, tanto militar quanto humanitária, foi calculada em US$ 50 bilhões em 2022 e espera-se que continue em 2023. A Europa oferece menos, mas paga um alto preço em termos econômicos e humanitários. A guerra contribuiu fortemente para o aumento da inflação na zona do euro e elevou os preços, especialmente de energia e alimentos. A inflação, que já havia passado de 0,3% em 2020 para 2,6% em 2021, chegou a 8,4% em 2022.
Embora a energia tenha sido o principal fator de aumento da pressão inflacionária na Europa, recentemente a maior parte dessa pressão vem dos alimentos, cujos preços aumentaram 14,1% em janeiro de 2023 em comparação com 2022. Produtos como o trigo ou oleaginosas, para os quais as importações europeias da Ucrânia e da Rússia tinham papel importante antes da guerra, registaram taxas de inflação muito acima da média dos alimentos. Por exemplo, o óleo de girassol e outros óleos comestíveis estão 47% mais caros na zona do euro em janeiro de 2023 do que em 2022.
Em contraste com os problemas de energia enfrentados pelos europeus, os EUA vêm lucrando com a crise, com a UE pagando a maior parte dessa lucratividade. À medida em que a Europa reduz o fornecimento de gás natural da Rússia, compra mais gás dos EUA, mas a preços muito mais altos, proporcionando lucros sem precedentes aos fornecedores de gás americanos.
De acordo com dados de sites industriais, há grandes diferenças no preço do gás natural entre os mercados europeu e americano, o que permitiu às empresas americanas alcançar lucros sem precedentes. A título de exemplo, em 23 de novembro de 2022 o preço do gás na Europa fechou em cerca de US$ 39 por milhão de unidades térmicas britânicas (MMBtu), enquanto, no mesmo dia, nos EUA o preço do gás fechou a US$ 7 por MMBtu. Essa disparidade, agravada pelas suspeitas da responsabilidade americana na sabotagem do gasoduto Nord Stream, começa a levantar questionamentos na Europa, embora Bruxelas e os governos dos países continuem se fazendo de surdos.
Considerações finais
Há, portanto, poucas razões para otimismo, e muito menos para comemoração. A guerra acentuou as divisões entre o “Ocidente” e o “resto”, como mostra um relatório do Centro para o Futuro da Democracia da Universidade de Columbia: As opiniões públicas mundiais sobre os EUA, Rússia e China estão mais divididas do que nunca.
A Ucrânia, com apoio ocidental, talvez possa impedir a Rússia de conquistar novos territórios, mas é improvável que consiga empurrar as tropas russas de volta às fronteiras de 24 de fevereiro de 2022, e muito menos para aquelas reconhecidas pelo Ocidente de 2014 (Crimeia).
Caso a guerra não se resolva nos próximos meses, a perspectiva de um terceiro ano de conflito pode muito bem esfriar o entusiasmo do Ocidente. A Europa terá dificuldades em continuar a apoiar o esforço de guerra ucraniano; já os EUA serão dominados pelas próximas eleições presidenciais e uma corrida republicana que provavelmente tornará o apoio a Kiev um dos principais temas da campanha, questionando as enormes quantidades de dinheiro despendidas ali.
Talvez na própria Ucrânia surjam pressões para um acordo com concessões em troca da preservação de vidas e de reconstrução econômica. Mas se isso não ocorrer, a corajosa disposição dos ucranianos de continuar lutando poderá colidir com uma redução do apoio ocidental, o que seria uma lição (amarga) para os ucranianos e para outros países que certamente estão observando.
A renovada ofensiva da Rússia no Donbass pode ser decisiva: qualquer grande vitória de um lado ou outro antes da chegada do próximo inverno poderá ser um fator chave para um acordo, seja negociado ou forçado.
É impossível prever o futuro, mas qualquer que seja o desfecho, muitas consequências e questões decorrentes desta guerra permanecerão por muito tempo. A chamada Ordem Mundial já não é a mesma: a hegemonia americana está sendo desafiada e a única certeza em que se pode apostar é que o cenário das relações entre países, blocos econômicos, políticos e militares não serão as mesmas em janeiro 2024.
Referências
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