Sun Tzu teria apreciado a estratégia de Tutmés III na Batalha de Megido: ele analisou a inteligência disponível para planejar, usou o terreno, a superioridade numérica, a logística, a velocidade e o engodo para surpreender e explorar a fraqueza tática do oponente.
A Batalha de Megido foi um combate travado no século XV a.C entre o exército egípcio, comandado pelo faraó Tutmés III, e uma coalizão sírio-cananeia liderada pelo rei de Kadesh. Essa foi a primeira batalha a ser registrada pela história, baseada em fontes arqueológicas autênticas e detalhadas. Em Megido ocorreu o inédito emprego do arco composto em combate e a vitória egípcia abriu caminho para o apogeu do Império. O local da batalha, no atual norte de Israel, tornou-se profético, pois, segundo a Bíblia, esse é o local do Armagedom.
Introdução
Poucos veem o Antigo Egito através de sua expressão militar, sobressaindo-se apenas uma sociedade hierarquizada que desenvolvia a agricultura e se dedicava às grandes obras de engenharia à exemplo das pirâmides. Todavia, Tutmés III, sexto faraó da 18ª Dinastia, notabilizou-se não apenas pela atividade construtora, mas também por suas campanhas militares. Durante seu reinado, o Império Egípcio manteve um exército formidável que garantiu a segurança e a expansão de seus domínios. A Batalha de Megido não apenas marcou o início do reinado de Tutmés III como se tornou um marco na história militar ao ser o primeiro confronto bélico com registros autênticos e detalhados. Segundo a maior parte dos historiadores, a batalha teria ocorrido no ano de 1457 a.C, segundo as estimativas cronológicas, embora algumas publicações defendam a data de 1479 a.C.
Tutmés III
Em geral, temos a percepção de que os faraós tinham uma vida reclusa, cercada de luxos e adoração, intocáveis e tratados como deuses vivos. Isso também é verdade, mas Tutmés III, ou Tutemosis III, foi um faraó guerreiro, que se destacava na frente da batalha como um respeitado comandante militar. Nos trinta e quatro anos em que esteve no poder, ele empreendeu 17 campanhas bem-sucedidas no Oriente Médio. Por seus feitos, ele é frequentemente referido como “Napoleão do Egito” [1]. Todavia, ao contrário de Napoleão, Tutmés III nunca perdeu uma batalha, ampliou seu império e terminou adorado por seu povo por séculos após sua morte.
Descendente de uma linhagem de guerreiros, Tutmés III era filho de Tutmés II, mas, quando seu pai morreu, ele tinha apenas três anos e, portanto, sua madrasta e tia, a rainha Hatshepsut, assumiu o trono como regente. Sete anos depois, ela rompeu com a tradição e elevou seu status para rainha-faraó, assumindo plenos poderes e a distinção de divindade. A monarca destacou-se por ser uma governante hábil e inteligente, que jamais negligenciou a manutenção de um exército organizado e bem treinado. Durante o Novo Império [2], o Egito atingiu o auge em prestígio, poder e riqueza, caracterizando-se por ser um estado imperialista que anexava territórios fora de suas fronteiras tradicionais e os controlava para seu próprio benefício. Nesse contexto, o reinado de Hatshepsut foi marcado por um longo período de relativa paz e prosperidade econômica.
Durante a infância e a juventude, Tutmés III foi criado na corte de Tebas [3], sendo mantido longe dos assuntos do poder. Sua educação tinha ênfase no desenvolvimento físico e intelectual, abrangendo atividades esportivas, manejo de armas e táticas militares. Provavelmente participou das primeiras campanhas militares que Hatshepsut se envolveu, pois, essa era uma prática comum entre faraós do Novo Império – treinar seus sucessores para a arte da guerra desde cedo. Não há dúvida de que o preparo militar foi a prioridade, mas a educação de Tutmés III foi muito além disso. Ele era um jovem bastante culto e sofisticado, que dava importância às artes e arquitetura.
Após a morte de Hatshepsut, Tutmés III ascendeu ao trono. Tinha 20 anos de idade quando herdou um império próspero que controlava grandes áreas da Núbia e do Levante [4]. Porém, logo após assumir o trono, o jovem faraó deparou-se com uma grave insurgência na região de Canaã e sul da Síria. Era frequente no mundo antigo que estados vassalos se rebelassem contra um novo governante a fim de aproveitar a transição do poder para conquistar autonomia ou negociar novas condições de submissão. Se para os egípcios Tutmés III era um ser sagrado, para os sírios e cananeus [5] ele era apenas um jovem rei sem experiência em batalha e com um frágil controle do poder.
Respaldados pelo Império Mitani, do norte da Síria, e liderados por Durusa, rei de Kadesh, os insurgentes sírios formaram uma aliança entre cidades e tribos, dispostos a encerrar o domínio egípcio na região. Com tal objetivo, organizaram um exército rebelde, que se concentrou nas cercanias de Megido, na atual Israel. O centro nervoso da revolta era uma cidade fortificada e de grande relevo estratégico e econômico, pois controlava a principal rota comercial entre o Egito, a Mesopotâmia e a Anatólia, conhecida como Via Maris. Megido era um importante entreposto comercial, vital no suprimento de muitas mercadorias, especialmente insumos do bronze, liga metálica indispensável para a fabricação de armas, ferramentas e diversos utensílios.
Estratégia e marcha para Megido
Os povos da região do Levante lutavam contra a dominação do Império Egípcio desde muito tempo. O rei de Kadesh pretendia deslocar suas tropas rumo ao sul e atacar o Egito em seu território. Nenhum dos ancestrais recentes de Tutmés III havia enfrentado um desafio militar tão grande quanto o que ele vivenciava naquele momento. Rejeitando qualquer possibilidade de negociação, o jovem faraó decidiu se antecipar mediante uma demonstração de força. Algumas semanas depois, o monarca e seus séquitos seguiram em direção ao norte, para a fortaleza fronteiriça de Tjaru, a fim de organizar um grande exército, estimado em cerca de 20 mil homens. Para compor as fileiras, os oficiais egípcios recorreram ao alistamento forçado de camponeses e artesãos, percorrendo as aldeias do interior. O jovem faraó cercou-se de dois de seus melhores generais, Ahmuned e Djehuty, contudo, não abriu mão de assumir diretamente o comando militar da campanha.
Não havia muito tempo para delinear estratégias de defesa para a fronteira ameaçada. Tutmés III decidiu que não iria lutar uma guerra defensiva e que partiria em uma expedição militar para Megido para conter de um só golpe o ímpeto dos rebeldes. Acompanhando de perto os planejamentos da guerra, havia um quarto homem que se dedicou a registrar não apenas os eventos da batalha, mas também cada palavra dos diálogos e decisões de comando. Era Tjaneni, um escrivão militar. Este personagem pode ser considerado o primeiro correspondente de guerra da história. Seus escritos, inicialmente gravados sobre pergaminho, fornecem um relato detalhado da campanha militar. Nos textos de Tjaneni, o faraó é retratado como um comandante astuto, ciente de suas capacidades e totalmente confiante na vitória. Algum tempo depois, a saga egípcia seria transcrita para as paredes de pedra do templo de Karnak, em Tebas.
Em Tjaru, os egípcios organizaram o maior e mais moderno exército que o mundo antigo jamais tinha visto. Oficiais intendentes cuidavam do abastecimento de víveres, armas e vestimentas para os soldados. Uma tropa de milhares de homens, com todos os animais, consumia diariamente 14 toneladas de cereais e 90 mil litros de água. A logística era monumental e, naquele momento, grande parte da riqueza do Egito foi canalizada para o esforço de guerra. Na fortaleza, os oficiais e guerreiros mais tarimbados dedicavam-se ao treinamento dos jovens camponeses recrutados que chegavam a todo momento.
Em abril de 1457 a.C, Tutmés III colocou seu exército em marcha em direção a Megido. Depois de transpor o Deserto do Sinai e percorrer 240 km, em 10 dias atingiram Gaza, onde estacionaram para descansar. Os soldados estavam exaustos e sobre eles repousavam muitas dúvidas, dentre elas o medo da morte no campo de batalha, especialmente se ocorresse em solo estrangeiro. Nessa situação, não poderiam ser sepultados em seus túmulos familiares na terra natal e, conforme suas crenças, seus espíritos seriam esquecidos e não alcançariam a vida após a morte. Esse tormento era ainda maior para o faraó, pois sua posição exigia um grande funeral e um túmulo majestoso, conforme as máximas tradições da civilização egípcia.
De Gaza, levantaram acampamento e seguiram em ritmo mais lento até Yaham, na atual Israel. Nesse local acamparam e Tutmés III convocou um conselho de guerra. Seus generais lhe apresentaram três opções de rotas para atingir Megido. Duas delas eram mais longas, porém mais seguras. Uma usaria o caminho pelo Norte, por Yokneam. A segunda, passaria por Taanakh, a caminho do Sul. A terceira era uma rota central, mais curta e rápida, porém mais arriscada, atravessando o estreito de Aruna [6] entre as montanhas, o que exigiria que o exército marchasse em fila indiana em alguns trechos.
Os generais que o assessoravam alertaram que o inimigo poderia surpreendê-los no final da passagem estreita e, além disso, o progresso seria lento e difícil com a vanguarda alcançando o local da batalha, enquanto a retaguarda ainda se encontrava em marcha. Tutmés III enfrentou, então, a decisão mais importante de sua campanha. Ele ouviu atentamente os membros do conselho, mas discordou de seus pontos, preferindo o caminho mais arriscado, porém mais curto, pelos desfiladeiros de Aruna. O jovem faraó privilegiava o princípio da surpresa e da velocidade em detrimento da segurança.
Os generais acataram a decisão do comandante supremo e, então, Tutmés III dirigiu-se ao seu exército. Conforme registrou Tjaneni, ele encorajou a tropa a marchar rapidamente pelo caminho estreito e assegurou-lhes que ele próprio lideraria a vanguarda, dizendo: “Não deixarei meu exército vitorioso avançar à frente de minha majestade neste lugar!” As carruagens e carroças foram desmontadas e carregadas e os homens conduziram os cavalos em fila indiana através do desfiladeiro para emergir no Vale de Qina, diante da fortaleza de Megido. Conforme prometera, Tutmés III marchou todo o tempo à frente de seus homens e durante a travessia do estreito, que durou cerca de 12 horas, não enfrentaram nenhuma ameaça, mas estiveram em posição altamente vulnerável a emboscadas. Tal conduta mostra a face destemida do jovem faraó, mas também revela uma faceta eminentemente desejável ao comando militar, a liderança pelo exemplo.
De fato, os sírios presumiram que os egípcios viriam pelas estradas mais longas e tranquilas, pois Durusa havia enviado tropas para atacar os egípcios pelo caminho do sul. Ao atingir o Vale de Qina, a apenas dois quilômetros de Megido, Tutmés III avistou seu alvo e montou acampamento, enquanto esperava que toda a retaguarda do exército completasse a travessia. Ao final, ordenou que as tropas descansassem, se alimentassem e se refrescassem perto do riacho Qina. Ao longo da noite, recebeu pessoalmente relatórios de sentinelas e deu ordens para a manutenção da prontidão, ao mesmo tempo em que supervisionava o abastecimento das tropas para o combate que viria. Conforme escreveu Tjaneni, Tutmés III disse aos soldados: “Preparem-se! Preparem suas armas, visto que alguém entrará em combate com aquele infeliz inimigo pela manhã.”
As forças combatentes
O exército egípcio havia evoluído muito a partir da 17ª e 18ª dinastias, portanto, estava mais organizado, hierarquizado e mais bem equipado. O contingente para a guerra ainda era formado, em sua base, por camponeses e operários recrutados para o serviço temporário da guerra, entretanto, naquela campanha, contavam com tropas profissionais vindas da Núbia, no Alto Nilo. Os núbios formavam a elite de guerreiros da época e eram temidos por sua coragem, força e habilidade em combate. Eram também excelentes arqueiros. Como muitos guerreiros do passado, combatiam pela prática da pilhagem, mas muitos almejavam ascender na hierarquia do exército egípcio, conquistando a posição de oficiais. E isso era possível, pois muitos deles já tinham ascendido a altos postos do exército egípcio.
A infantaria era a base da força militar e envolvia diversas classes de soldados que lutavam em unidades organizadas que se postavam para o combate em formações compactas. De acordo com suas habilidades, portavam uma ampla variedade de armas incluindo maças, fundas, machados, espadas, lanças e adagas. O metal usado era o bronze, pois o ferro ainda não era conhecido. O escudo era feito de couro sobre madeira e tinha um formato trapezoidal alongado com topo arredondado.
Os núbios portavam escudos retangulares de madeira revestidos de palha com uma abertura circular na parte superior. O armamento e geral havia melhorado com a introdução do arco composto. Esses arcos eram feitos de madeira de bétula importada da Europa, montado em camadas com diferentes materiais, inclusive tendões de animais. As flechas tinham pontas de marfim. Os arqueiros eram tropas especializadas e combatiam nos flancos ou na retaguarda.
A cavalaria era a espinha dorsal do exército egípcio, sendo empregada por meio dos carros de guerra. A biga egípcia, ou carro de guerra, era uma pequena carroça de duas rodas puxada por dois cavalos. Era uma máquina de guerra fantástica que podia alcançar 40 km/h, conferindo velocidade e mobilidade ao ataque. Além do condutor, havia um combatente que portava arco e flecha ou lanças. Cocheiros e guerreiros eram combatentes provenientes das classes sociais mais altas. Eficazes em terrenos planos e abertos, as bigas eram empregadas em uma carga inicial no centro das formações, atacando as bigas inimigas ou se lançando de forma brutal e veloz contra a infantaria inimiga.
Os egípcios conseguiram reunir e levar para Megido cerca de 3.500 bigas. Quanto ao uso de cavalos como montaria, ainda eram pouco empregados devido à baixa estatura dos animais na época, que não suportavam o peso de um homem armado. A domesticação e criação de cavalos era algo recente nas primeiras civilizações. Raças de grande porte, velozes e intrépidas, ainda não haviam sido desenvolvidas. Além disso, as selas, arreios e principalmente os estribos, como conhecemos hoje, não haviam sido inventados, o que impedia que o cavaleiro tivesse estabilidade sobre o animal e ainda pudesse manejar armas.
Para enfrentar os egípcios, o rei de Kadesh e o príncipe de Megido conseguiram reunir cerca de 7.500 homens e 2.500 carruagens provenientes de centenas de cidades e tribos de Canaã e sul da Síria. Era o maior exército jamais visto naquela região. Os combatentes pertenciam, principalmente, às classes dominantes, que começavam seu treinamento muito jovens e provinham de famílias de guerreiros. Os sírios também empregavam a biga, mas não era tão leve e veloz se comparada com a egípcia. Usavam também o arco e flecha, mas eram equipamentos inferiores e não tinham um bom preparo. A infantaria portava lanças e espadas, mas era menos treinada que a egípcia. Havia um corpo de elite chamado “Bando Sagrado”, fortemente blindado e que portava lanças longas e escudos redondos. Completavam a tropa as fileiras de guerreiros tribais e mercenários vindos de terras mais distantes e com distintos preparos para a guerra.
Os reis e príncipes sírios não se engajavam no combate direto e comandavam suas tropas à distância, sob a proteção de guardas pessoais. Alguns oficiais permaneciam atrás das muralhas ou no topo das colinas e só eram chamados para o combate em campo aberto quando chamados, normalmente atuando em papel defensivo em nome do comandante. O problema militar era que as cidades-estados sírias sofriam de fraca coesão política e social. Seus líderes tinham uma estrutura de poder confusa e governavam conforme acordos diplomáticos e comerciais de ocasião. A consequência foi a formação de um exército rebelde com frágil unidade de comando e carente de liderança.
A batalha e o cerco
Durusa, rei de Kadesh, foi surpreendido com a aparição do exército egípcio diante de Megido e muito próximo de suas linhas defensivas. Teve pouco tempo para organizar suas tropas do lado de fora da fortaleza e preparar-se para a batalha. Imperou, então, uma grave desunião no comando sírio-cananeu. Príncipes e chefes tribais propunham táticas diferentes e discutiam entre si, cada qual querendo comandar sua própria tropa de forma isolada. Durusa decidiu não atacar à noite, pois sequer estava preparado para uma guerra defensiva, quanto mais para uma ofensiva noturna contra um exército que se mostrava superior a olhos vistos.
Na manhã seguinte, o exército egípcio organizou-se para a batalha diante de Megido. Em seguida, as tropas desfilaram em reverência a Tutmés III, a bordo de uma biga dourada, portando suas as armas de combate e ostentando na cabeça uma reluzente coroa azul de guerra. Na passagem diante do faraó, os soldados eram ungidos com perfume sagrado por sacerdotes para que fossem abençoados pelos deuses. Ao som das trombetas, tambores e com estandartes ao vento, o exército egípcio se posicionou em três alas: a ala sul ficava em uma pequena colina ao sul do rio Qina, a ala norte a noroeste de Megido e, no centro, a ala formada pelos carros de guerra, na qual se encontrava o faraó. A exibição, mesmo que avistada de longe, abalou o ímpeto dos insurgentes ao mesmo tempo em que reforçou o moral dos soldados egípcios, muitos dos quais estreantes na guerra.
A batalha teve início quando Tutmés III ordenou pessoalmente um avanço de choque da ala central. Fileiras de bigas avançaram velozmente em direção às formações sírias, enquanto os guerreiros a bordo disparavam suas flechas. Em seguida arremetiam e retornavam para uma nova passagem. Esse tipo de ataque produziu pesadas baixas nas linhas da infantaria inimiga, especialmente as que combatiam sem escudos nem armaduras.
Uma iniciativa inteligente que os sírios usaram para desarticular o avanço das bigas egípcias foi soltar uma égua no cio para desorientar os cavalos, mas a égua foi logo abatida pelos egípcios antes que isso acontecesse.
Em pouco tempo de confronto sangrento, evidenciou-se a falta de coordenação entre as unidades sírias. Prontamente, as linhas defensivas foram sendo rompidas, seguindo-se uma debandada de soldados sírios em direção às muralhas de Megido. Após a entrada de parte da tropa síria em fuga, os portões da fortaleza foram fechados para que os egípcios não invadissem. Os demais, que encontravam os portões fechados, tentavam subir por cordas que eram lançadas pelas defesas das muralhas. Dentre os que se salvaram nessas condições estavam o rei de Kadesh e o príncipe de Megido. Os egípcios tiveram a vitória a seu alcance, mas a deixam escapar por entre os dedos. Em vez de perseguir os inimigos em fuga e combatê-los, os soldados egípcios se entregaram à captura dos espólios deixados no campo de batalha. Inimigos mortos ou mesmo feridos passaram a ser disputados pelas tropas egípcias, que se atiraram a uma pilhagem desenfreada em busca de armas e até pequenos objetos pessoais do inimigo vencido.
Tutmés III, que combatia da linha de frente, assistiu a tudo indignado, mas não pôde fazer àquela altura da batalha. A pilhagem era um prêmio formalmente concedido a combatentes, e era especialmente importante para aqueles das classes mais baixas. Como resultado, em vez de uma conquista imediata, os egípcios tiveram que partir para uma prolongada guerra de cerco. Foi escavado um longo fosso em torno de Megido, erguendo-se em seguida uma paliçada de isolamento. O cerco do exército egípcio durou cerca de sete a oito meses, quando então os líderes rebeldes e a população de Megido, todos famintos, decidiram pela capitulação. Tutmés III concedeu termos de rendição bastante razoáveis ao inimigo vencido, segundo os costumes da época. O faraó garantiu que nenhum dos líderes sírios seria executado e que a cidade não seria pilhada nem destruída, tudo com a promessa de que não se levantariam em outra rebelião contra o Egito. Tutmés III destituiu os líderes sírios de suas posições de mando e nomeou oficiais egípcios de sua confiança para governar a cidade.
Contudo, o vitorioso faraó fez questão de exigir seu butim de guerra. Não apenas Megido, mas outras cidades e tribos da região envolvidas na revolta tiveram que entregar parte de suas riquezas. Foi apresado e levado para o Egito um rico butim que incluía armamentos, carroças, cavalos, vacas, cabras, ovelhas, cereais, vinho, utensílios e obras de arte de ouro, prata e bronze. Os registros de Tjaneni descrevem cerca de 900 carros (incluindo dois forrados de ouro), cerca de 200 armaduras (incluindo as de bronze dos governantes de Megido e Kadesh), cerca de 2.500 cavalos e mais de 25.000 animais diferentes.
Uma das condições da capitulação foi que os líderes rebeldes deveriam entregar seus filhos em garantia para serem levados ao Egito. Em caso de nova revolta, as crianças seriam executadas. Embora isso possa parecer cruel nos dias de hoje, era uma prática aceitável e muito comum na Antiguidade e que perdurou até a Idade Média. Na prática, os jovens reféns eram bem tratados e viviam um bom nível de vida conforme a posição social de origem. Passariam a ser educados sob a cultura e os valores egípcios e, quando atingissem a maioridade, seriam enviados de volta para suas terras cultivando novos valores culturais e lealdade ao faraó.
Considerações finais
A insurgência das cidades e tribos de Canaã e da Síria representaram uma séria ameaça para a integridade do próspero Império Egípcio da época. Tutmés III sabia que não poderia demonstrar fraqueza no início de seu reinado, pois o precedente poderia gerar uma onda de rebeliões em seus domínios. O trabalho do escritor Tjaneni fez a diferença para que Megido fosse assentada como a primeira batalha registrada em detalhes na história da humanidade. Hoje, as inscrições nas paredes do templo de Karnak tornaram-se uma importante atração turística para aqueles que visitam Luxor, no Egito, oferecendo um cenário claro e preciso de um dos grandes triunfos da história militar da Antiguidade.
A vitória na Batalha de Megido significou a confirmação da capacidade do poder militar egípcio durante o Novo Império e fez com que Tutmés III fosse lembrado pela história como o maior dentre os faraós guerreiros. Ele analisou a inteligência disponível para elaborar um plano ousado para derrotar a coalizão inimiga desprevenida. Aproveitou o terreno, sua superioridade numérica, a logística, a velocidade e usou o engodo para explorar a fraqueza tática do oponente. Sun Tzu provavelmente teria apreciado a iniciativa tática e a estratégia de Tutmés.
O grande erro, contudo, foi que o faraó não conseguiu controlar seus homens no campo de batalha, permitindo-lhes lançarem-se à prática desenfreada da pilhagem no transcorrer de um combate que se mostrava decisivo. Certamente uma falha de doutrina e disciplina que comprometeu o pleno e rápido êxito militar, mas devemos considerar as limitações da imposição dessas doutrinas na cultura daqueles tempos. A falha fez prolongar a campanha, exigindo uma guerra de sítio que certamente consumiu maiores recursos do Império Egípcio. Todavia, o faraó executou um cerco bem-sucedido, que foi capaz de exaurir as capacidades de subsistência do inimigo, quebrando-lhe o moral e forçando-lhe à rendição.
A campanha militar atingiu seu objetivo político ao pacificar insurgentes sírios durante todo o reinado. Além de conter a rebelião e enriquecer o tesouro do Egito, a vitória também deu a Tutmés III o controle sobre o norte de Canaã, fornecendo-lhe uma base estratégica de onde lançaria sua campanha para tomar Kadesh. A partir daí, pôde empreender campanhas contra os inimigos do Império Mitani. Chegou a controlar algumas cidades da Mesopotâmia que lhe renderam tributos em troca de segurança. Em outro front, nas campanhas militares ao sul, na Núbia, o exército egípcio foi igualmente bem-sucedido. No fim do seu reinado, Tutmés III havia alargado seu império, que se estendia do rio Eufrates, na Mesopotâmia, passando pela Síria e o Levante, descendo pela Núbia até a Quinta Catarata do Nilo.
Em todos os aspectos, Tutmés III representou um grande líder militar da Antiguidade, fazendo jus à alcunha de “Napoleão do Egito”. A Batalha de Megido foi uma impressionante vitória que colocou o Egito no caminho de um domínio militar na região que durou cerca de 200 anos. Embora haja poucas dúvidas de que os povos dessas terras tenham preferido a independência, eles prosperaram economicamente sob um reinado de paz que o faraó estabeleceu e manteve por meio de suas habilidades militares e diplomáticas.
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Notas
[1] A referência foi dada pelo historiador e egiptólogo norte-americano James Henry Breasted.
[2] O Novo Império corresponde ao período de 1550-1069 a.C. e é mais conhecido por alguns governantes famosos como Hatshepsut, Tutmés III, Seti I e Ramsés II.
[3] Capital do Antigo Egípcio e atual Luxor.
[4] A Núbia corresponde ao atual Sudão. Levante é um termo geográfico que se refere, historicamente, a uma grande área do Oriente Médio ao sul dos Montes Tauro, correspondendo aos atuais territórios de Israel, Síria, Líbano e Jordânia.
[5] As tribos e cidades rebeldes que compunham a coalizão contra o Egito se situavam na região de Canaã e sul da Síria, porém para simplificar sua designação, doravante serão denominadas apenas como sírios.
[6] Atual Wadi Ara em Israel.
Muito obrigada por compartilhar tanto conhecimento de forma simples. A civilização egípcia era simplesmente fascinante.
Belíssimo texto. Muito obrigado pela aula.