A figura de Ciro, o Grande, sobreviveu ao longo da história como mais do que um grande líder que fundou um império, influenciando nosso pensamento até os dias atuais.
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Eu sou Ciro, rei do mundo, grande rei, rei legítimo, rei da Babilônia, rei da Suméria e Acádia, rei das quatro bordas (da terra), filho do grande rei Cambises, rei de Anshan, neto do grande rei Ciro, rei de Anshan, descendente do grande rei Teispes, rei de Anshan, de uma família (que) sempre (exerceu) a realeza, cujo governo Bel e Nebo, a quem eles desejam como rei para agradar seus corações [1].
Os poderosos impérios da antiguidade foram construídos em torno de grandes líderes; e o império Aquemênida não seria diferente. Aquele que é considerado o fundador da mais proeminente dinastia persa, Ciro, o grande, foi um líder com tamanha envergadura que conseguiu a proeza de ser citado com mostras de respeito e admiração pelos gregos, inimigos viscerais dos persas, bem como ser citado e reverenciado pelos judeus como o único Messias não judeu constante na Torá.
Ciro (580-529 a.C) foi o primeiro imperador Aquemênida, responsável pela fundação do antigo império persa, unindo as duas tribos iranianas originais – os medos e os persas. Embora fosse conhecido por ser um grande conquistador, que em certo ponto controlou um dos maiores impérios já vistos, ele é mais lembrado por sua tolerância sem precedentes e atitude magnânima para com aqueles que derrotou, atitude inédita em um contexto no qual a selvageria e a inclemência contra os inimigos eram a regra geral.
Após sua vitória sobre os medos, Ciro criou um governo para seu novo reino, incorporando nobres medos e persas como oficiais civis. Concluída a conquista da Ásia Menor, ele liderou seus exércitos para as fronteiras orientais. A Hircânia e a Pártia já faziam parte do Reino Mediano. Mais a leste, ele conquistou Drangiana, Arachosia, Margiana e Bactria. Depois de cruzar o Oxus [2], chegou a Jaxartes, onde construiu cidades fortificadas com o objetivo de defender a fronteira mais distante de seu reino contra as tribos nômades da Ásia Central.
As vitórias no leste o levaram novamente ao oeste e voltou-se à conquista da Babilônia e ao Egito. Quando Ciro conquistou a Babilônia, ele o fez sob aplausos da comunidade judaica, que o acolheu como um libertador – ele permitiu que os judeus voltassem à Terra prometida. Ciro mostrou grande tolerância e respeito pelas crenças religiosas e tradições culturais das populações conquistadas, e essas qualidades lhe renderam o respeito e a homenagem de todos os povos sobre os quais governou.
Ciro, o Grande: Líder excepcional e figura lendária
Ciro, o Grande, nasceu por volta de 580 a.C. na Pérsia (atual Irã). Seu pai era o rei Cambises I de Anshan [3]. Não há muita história registrada sobre o início da vida de Ciro, mas há uma lenda contada pelo historiador grego Heródoto. Segundo essa narrativa, Ciro era neto do rei medo [4] Astíages. Quando Ciro nasceu, Astíages sonhou que Ciro um dia o subjugaria. Ele ordenou então que o bebê Ciro fosse deixado nas montanhas para morrer; no entanto, a criança acabou resgatada por pastores que a criaram como se fossem sua. Ao completar dez anos, a nobreza da criança se evidencia em suas atitudes. O rei Astíages, ao ouvir falar da criança, se dá conta de que o menino não havia morrido. Ele então permitiu que Ciro voltasse para a casa para seus pais biológicos. Por volta dos vinte e um anos, Ciro assumiu o trono como rei de Anshan. Nessa época, Anshan ainda era um estado vassalo do Império Medo. Ciro liderou uma revolta contra os medos e em 549 a.C. ele havia conquistado completamente a Média, se intitulando “Rei da Pérsia”.
Existem algumas versões de cunho mais fantástico que versam sobre o nascimento de Ciro, mas o que há de comum em todas elas é o fato de que Ciro pertencia, pelo lado paterno, à realeza persa e, pelo materno, à realeza meda, sendo que sua ascensão ao trono também simbolizaria a união medo-persa.
Ciropédia ou a educação de Ciro, retrato do governante ideal
A obra Ciropédia (do grego Kúrou Paideía, A educação de Ciro), é uma biografia parcialmente fictícia de Ciro, o Grande, atribuída ao historiador e militar ateniense Xenofonte, que serviu na expedição de Ciro, o Jovem, contra seu irmão Artaxerxes II (405-359 a.C) em 401. O título é estritamente aplicável apenas ao primeiro dos oito livros em que a obra está dividida. Nesse livro, a descendência de Ciro, o sistema educacional persa e sua estada na corte do avô materno, o rei medo Astíages, são esboçados. Seis dos livros restantes são dedicados às conquistas de Ciro e sua organização do império enquanto ainda era tecnicamente vassalo do rei medo.
No livro dois, a reorganização do exército por Ciro é descrita; no livro três, a conquista da Armênia e da Cítia, e nos livros 4-6, as guerras contra a Assíria. No livro sete, a batalha final contra a “Assíria” (7.1), a captura de Sardes (7.2-4.14) e a conquista da Babilônia através do desvio do Eufrates (7.5.7–17) são relatadas. O livro oito contém relatos da realeza de Ciro e suas ideias sobre a monarquia (8.1-2), uma procissão cerimonial e sacrifícios na Babilônia (8.3-4), seu retorno à Pérsia após suceder seu tio medo no trono supostamente sem conflitos (8.5.17-20), o estabelecimento de satrapias (8.6) e sua morte (8.7).
Embora dúvidas já fossem levantadas na antiguidade sobre a validade histórica do retrato de Ciro feito por Xenofonte, a Ciropédia foi amplamente lida por soldados, políticos e intelectuais de diversas culturas ao longo da história. Alexandre, o Grande, Cipião Africano, Augusto César, Nicolau Maquiavel, Roger Ascham (tutor de Elisabeth I da Inglaterra) e Jacques-Bénigne Bossuet estavam todos familiarizados com a obra. Por causa da representação de Ciro por Xenofonte como um monarca benevolente, governando por meio da persuasão e não pela força, a obra contribuiu para a reputação do fundador do império persa como um rei justo e tolerante. Assim, ajudou indiretamente a criar a imagem tradicional da Pérsia Aquemênida como um estado saudável e vigoroso em seu período inicial e decaindo rapidamente para a tirania na segunda metade do século V a.C.
Ciro o Grande na tradição judaica
Ironicamente, se atualmente judeus e iranianos são inimigos mortais, a situação era totalmente diferente na antiguidade. Os judeus foram libertados do cativeiro babilônico graças à benevolência do rei persa e a figura de Ciro é reverenciada na tradição hebraica. Todo o capítulo 45 do livro de Isaías tratará da profecia acerca da libertação do povo judeu do cativeiro na Babilônia pelo rei Ciro, o grande.
Isaías 45:1
Isaías 45:5
Isaías 45:13
O Livro de Isaías é uma peça central da literatura profética do Antigo Testamento. O capítulo 45 do livro de Isaías trata da profecia acerca da libertação pelo rei persa do povo judeu em cativeiro na Babilônia.
Os versículos 1-7 versam acerca da vocação profética de Ciro, enquanto os versículos 8-14 tratam, sobretudo, da questão relativa à soberania suprema de Deus. Por sua vez, os versículos 15-25 tratam da salvação de Israel e da sujeição de todos perante Deus.
Assim, o rei Ciro é retratado como o ungido do deus dos judeus:
1 Assim diz o SENHOR ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações diante de sua face, e descingir os lombos dos reis, para abrir diante dele as portas, e as portas não se fecharão. (Is, 45,1)
Embora os reis não fossem ungidos na Pérsia, a expressão é aplicada a Ciro em referência ao costume judaico de se eleger os reis para o ofício real pela unção. Ainda no versículo 5 temos: “eu te cingirei”: o manto externo solto dos orientais, quando cingido em volta dos lombos, era o emblema da força e da preparação para a ação. No versículo 1, Ciro é apresentado como o ungido a quem Deus toma pela mão direita e para Ciro Deus abrirá as portas para que possa descingir os lombos dos reis.
No versículo 2, temos:
2 Eu irei adiante de ti, e endireitarei os caminhos tortuosos; quebrarei as portas de bronze, e despedaçarei os ferrolhos de ferro. (Is, 45,2)
Esse versículo trata de um aspecto interessante acerca da dinâmica da tomada da Babilônia pelo exército persa. Segundo fontes como Heródoto, durante grande festividade na Babilônia, na noite de sua captura, os portões internos, que levavam das ruas para o rio, foram deixados abertos; porque havia muros ao longo de cada lado do Eufrates com portões que, se tivessem sido mantidos fechados, teriam cercado os invasores no leito do rio, onde os babilônios poderiam facilmente destruí-los. Além disso, os portões do palácio foram deixados abertos, de modo que havia acesso a todas as partes da cidade; e tal era a sua extensão, que aqueles que viviam nas extremidades foram feitos prisioneiros antes que o alarme atingisse o centro do palácio (Heródoto, 1.191).
Ciro é o único não judeu (pagão ou gentio) mencionado na Bíblia como Messias:
4 Por amor de meu servo Jacó, e de Israel, meu eleito, eu te chamei pelo teu nome, pus o teu sobrenome, ainda que não me conhecesses. (Is, 45,4)
5 Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que tu não me conheças. (Is, 45,5)
Ciro é assim chamado como sendo escolhido rei pela providência divina a fim de cumprir seu propósito especial: libertar o povo judeu do cativeiro da Babilônia:
13 Eu o despertei em justiça, e todos os seus caminhos endireitarei; ele edificará a minha cidade, e soltará os meus cativos, não por preço nem por presente, diz o Senhor dos Exércitos. (Is, 45,13)
O exílio babilônico começa no século VI a. C. O reino do norte (Israel) terminou em 722 com a tomada da Samaria pelos assírios e em 587, quando Jerusalém foi saqueada e o templo destruído pelos babilônios, grande parte da população foi deportada para a Babilônia, terminando, praticamente, também o reino do sul (Judá). Com isso, chega ao fim a monarquia em Israel.
A primeira grande deportação ocorreu no ano de 598 a.C quando houve o saque do templo de Jerusalém, mas não sua destruição. A destruição do templo ocorreu com a segunda leva de deportações, efetuada em 587 a.C. Ambas foram executadas a mando do então imperador Nabucodonosor II, responsável também por destruir e subjugar o Império Assírio, que o precedeu. Os hebreus permaneceram no cativeiro até o ano de 538 a.C, quando Ciro, o Grande, da Pérsia, conseguiu controlar toda a região médio-oriental.
Ciro partilhava do ideal de uma política de respeito às culturas dos povos que conquistava e permitiu aos hebreus que retornassem à sua terra de origem e aos seus costumes religiosos. Os relatos bíblicos sobre o retorno judeu e a reconstrução do templo (Zorobabel, Esdras, Neemias), autorizados por Ciro, rei persa, sempre foram muito criticados pelos céticos.
Entretanto, em 1879, foi encontrado um cilindro de argila no Iraque (antiga Babilônia), que relata, em linguagem acadiana, a restauração de santuários religiosos e repatriação dos povos deportados, comprovando a política generosa e tolerante de Ciro relatada na Bíblia. Trata-se do chamado “Édito de Ciro” ou “Cilindro de Ciro” e a peça original encontra-se exposta no Museu Britânico, em Londres:
Tradução:
O que se segue é uma tradução para o português [5] obtida a partir da tradução do antigo acadiano para o inglês do cilindro de Ciro, parafraseado do exposto na obra de The Ancient Near East, Volume I: An Anthology of Pictures, editado por James B. Pritchard:
Um fraco foi instalado como rei de seu país … cidades sagradas, rituais inadequados … diariamente ele falava [orações incorretas]. Ele interrompeu de forma diabólica as ofertas regulares … dentro das cidades sagradas. A adoração de Marduk, o rei dos deuses, ele [se transformou] em abominação. Diariamente, ele costumava fazer o mal contra sua cidade (ou seja, Marduk) … Ele [atormentava] seus [habitantes] com trabalho de corve6 sem alívio. Ele arruinou todos eles.
Após suas reclamações, o Senhor dos deuses ficou terrivelmente irado e [ele partiu] de sua região, (também) os (outros) deuses que viviam entre eles deixaram suas mansões, indignados por ele os ter trazido para a Babilônia. Marduk … por causa (do fato de que) os santuários de todos os seus assentamentos estarem em ruínas e os habitantes da Suméria e Acádia se tornaram como mortos (vivos), voltaram … e ele teve misericórdia. Ele esquadrinhou e olhou (através) de todos os países, em busca de um governante justo disposto a liderá-lo (na procissão anual). (Então) ele pronunciou o nome de Ciro, rei de Anshan, declarou que ele era o governante de todo o mundo. Ele fez o povo Guti e todas as hordas de Manda se curvarem em submissão aos seus (isto é, pés de Ciro) … Marduk, o grande senhor, um protetor de seu povo / adoradores, viu com prazer suas boas ações (isto é, de Ciro) e sua mente correta (e portanto) ordenou-lhe que marchasse contra sua cidade, Babilônia … Ele entregou em suas mãos (isto é, Ciro) Nabônido, o rei que não o adorava (isto é, Marduk). Todos os habitantes da Suméria e Acádia, príncipes e governadores (incluídos), curvaram-se a ele (Ciro) e beijaram seus pés, jubilosos por ele (ter recebido) a realeza, e com rostos brilhantes. Felizmente, eles o saudaram como um mestre por meio de cuja ajuda eles ressuscitaram da morte (e) foram poupados de danos e desastres, e adoraram seu nome.
Eu sou Ciro, rei do mundo, grande rei, rei legítimo, rei da Babilônia, rei da Suméria e Acádia, rei das quatro bordas (da terra), filho do grande rei Cambises, rei de Anshan, neto do grande rei Ciro, rei de Anshan, descendente do grande rei Teispes, rei de Anshan, de uma família (que) sempre (exerceu) a realeza, cujo governo Bel e Nebo amam, a quem eles desejam como rei para agradar seus corações.
Quando entrei na Babilônia como amigo e estabeleci a sede do governo no palácio do governante sob júbilo e regozijo, Marduk, o grande Senhor [induziu] os magnânimos habitantes da Babilônia [a me amar], e eu estava diariamente me esforçando para adorá-lo. Minhas numerosas tropas caminharam pela Babilônia em paz, eu não permiti que ninguém aterrorizasse (qualquer lugar) do [país da Suméria] e Acádia. Lutei pela paz na Babilônia e em todas as suas (outras) cidades sagradas … Aboli a corve [6] (lit.: jugo) que era contra a sua posição (social). Eu trouxe alívio para a sua habitação degradada, pondo fim às suas queixas. Marduk, o grande senhor, ficou satisfeito com minhas ações e enviou bênçãos amigáveis a mim mesmo, Ciro, o rei que o adora, a Cambises, meu filho, a descendência de [meus] lombos, bem como a todas as minhas tropas, e todos nós [louvamos] sua grande [divindade] com alegria, estando diante dele em paz.
Todos os reis do mundo inteiro, do Mar Superior ao Mar inferior, aqueles que estão sentados nas salas do trono … todos os reis da terra do oeste vivendo em tendas, trouxeram seus pesados tributos e beijaram meus pés na Babilônia. … De tanto Ashur e Susa, Agade, Eshnunna, as cidades de Zamban, Me-Turnu, Der, bem como a região dos Gutians, eu voltei para (suas) cidades sagradas do outro lado do Tigre, os santuários dos quais há muito estão em ruínas, as imagens que (costumavam) neles viver e estabeleceram para eles santuários permanentes. Eu (também) reuni todos os seus antigos habitantes e devolvi (a eles) suas habitações. Além disso, eu reassentei sob o comando de Marduk, o grande Senhor, todos os deuses da Suméria e Acádia que Nabonido trouxe para a Babilônia para a ira do Senhor dos deuses, ilesos, em suas (antigas) capelas, os lugares que fizeram eles felizes.
Que todos os deuses que eu reassentei em suas cidades sagradas peçam a Bel e Nebo uma vida longa para mim e que eles me recomendem (para ele). Para Marduk, meu senhor, eles podem dizer o seguinte: “Ciro, o rei que te adora, e Cambises, seu filho…”… (seis linhas destruídas).
Conforme Mourreau (1978):
O poder da soberba da Babilônia foi efetivamente aniquilado. Sessenta anos após as primeiras deportações de Jerusalém, as previsões dos profetas realizam-se. Nascidos no cativeiro, as jovens gerações judias não conheceram a Palestina. Alguns exilados adotaram os deuses babilônicos ao mesmo tempo que os hábitos fáceis dessa megalópole. Não terão nenhum papel ativo na tomada da Babilônia. Porém, a exemplo dos adoradores de Marduk, eles se regozijarão com a vitória do conquistador ariano.
(…) tomando as mãos do deus Marduk, ele manifesta a preocupação de proteger sua religião. Em vez de pilhar a cidade e destruir seus templos, ele testemunha o maior respeito às particularidades locais e às tradições.
O Ariano, soberano de “realeza total”, não quer impor a ninguém a sua religião e nem a de seu povo.
Essa atitude surpreenderá os profetas judeus. Porém, muito rapidamente, eles atribuirão as virtudes do Libertador à graça de Yahvé, enquanto os sectários babilônicos reivindicarão o mesmo para seu deus o mérito de ter guiado o Grande Rei. (MOURREAU, 1978, p. 120-121)
Geograficamente, o exílio judeu babilônico ocorreu na região que correspondia ao império babilônico que havia suplantado anteriormente o assírio, na área que atualmente corresponde, grosso modo, ao Iraque. A cidade da Babilônia foi a cidade central da civilização babilônica, na Mesopotâmia, situada às margens do rio Eufrates. As suas ruínas encontram-se a norte do centro da cidade atual de Hila, capital da província de Babil, no Iraque, situada 100 km a sul de Bagdá. O mapa abaixo apresenta onde se localizavam os antigos reinos de Judá, Babilônia e Pérsia.
Uma das principais habilidades pelas quais o monarca persa é lembrado é justamente sua tolerância religiosa. Yahvé, Marduk, Ahura Mazda, e sabe-se lá quantas divindades secundárias mais, coexistiram no período em comento.
Quando os judeus passam do domínio babilônico para o domínio dos persas, sabe-se que, em 550 a.C, quando Ciro, o Grande, fundou o Império Aquemênida, após uma série de conquistas, agradeceu a Ahura Mazda por seu sucesso. Como o zoroastrismo estava há muito estabelecido na região nessa época, os primeiros historiadores assumiram automaticamente que Ciro seria adepto do zoroastrismo. Entretanto, alguns estudiosos da atualidade argumentam que a mera invocação de Ahura Mazda por Ciro não significa que ele fosse um zoroastriano, embora o pudesse ser.
O mesmo argumento foi levantado quanto à opção religiosa dos sucessores aquemênidas, como Dario I (o Grande, r. 522-486 a.C) e Xerxes I (r. 486-465 a.C), embora, com estes e com outros monarcas posteriores, seja mais provável que a religião de Zoroastro [7] fosse a cultuada, pois louvores a Ahura Mazda aparecem em obras de arte, decretos e dedicatórias, principalmente na grande cidade de Persépolis de Dario I e na famosa inscrição de Behistun [8], entretanto, cabe lembrar que, de acordo com a política de tolerância religiosa do Império Aquemênida, a fé da casa real não foi imposta à população. Todas as religiões eram bem-vindas no Império Aquemênida e as pessoas podiam acreditar e adorar o que quisessem.
Conforme os escritos de Esdras, por exemplo, o rei Ciro não somente libertara o povo judeu como ainda ordenara que o Segundo Templo fosse reconstruído em Jerusalém sob as expensas do tesouro imperial.
De Isaías 40s podemos ter uma imagem bastante próxima da atmosfera da Babilônia por volta de 540 a.C: o rei persa encampa o império babilônico sendo saudado e festejado não somente pelos sacerdotes de Marduk, que sob Nabônides e Belsazar haviam rompido com o próprio governo e viam o conquistador como um salvador, mas também pelos deportados judeus, que moravam havia décadas na Babilônia.
A atmosfera profética que envolve a ascensão de Ciro e a libertação do povo judeu bem como a reconstrução do Segundo Templo pode ainda ser encontrada em outras fontes não bíblicas. De acordo com uma versão de Ctesias de Cnido (século V a.C), que foi transmitida com detalhes adicionados por Nicolau de Damasco (século I a.C.), quando a mãe de Ciro se encontrava grávida dele, ela teve um sonho no qual via seu filho Ciro como o futuro senhor de toda a Ásia.
Também Heródoto nos deixou uma versão ainda mais fantástica na qual o rei medo Astíages (avô materno de Ciro) teve um sonho em que uma videira crescia das costas de sua filha Mandane (mãe de Ciro) lançando gavinhas que envolviam toda a Ásia. O rei medo teria consultado os magos da corte (figuras que tiveram grande importância na religiosidade do reino da Média) e estes o advertiram que a tal videira seria seu neto e que ele tomaria o lugar do velho reino da Média no mundo. Com relação a queda da Babilônia sob Ciro, Heródoto (I, 191, 192), relata que “Ciro desviou o rio por meio dum canal para o lago, o qual até então era um brejo, fez o rio baixar até que seu anterior leito pudesse ser vadeado. Quando isto se deu, os persas, postados com este objetivo, entraram em Babilônia pelo leito do Eufrates, tendo a água baixado até cerca do meio da coxa de um homem. (…) Os persas os pegaram desprevenidos […] durante todo este tempo eles dançavam e se divertiam numa festa … até se darem bem conta da verdade.”
Xenofonte, na Ciropédia (VII, v, 33), também relata como Ciro e seu exército tomaram a Babilônia de forma inusitada: Ciro achava ser praticamente impossível atacar as enormes muralhas da cidade então decidiu sitiá-la, desviar as águas do Eufrates para valas e, enquanto a cidade festejava distraidamente, mandou suas tropas leito do rio acima, passando pelas muralhas. As tropas apanharam os guardas desprevenidos e conseguiram entrar pelos próprios portões do palácio. Temos aqui a versão hebraica do ocorrido no versículo 27 do capítulo 44 de Isaías: “o rio Eufrates secaria, abrindo caminho para o exército de Ciro” e, no versículo 1 do capítulo 45: “os portões da cidade seriam deixados abertos.”
Não há, até o momento, como sabermos da total veracidade de todas as fontes do mundo antigo que, direta ou indiretamente, fazem menção ao grande Ciro, entretanto, também não há como negar que o grande líder aquemênida representou um tipo de liderança até então desconhecida: firme, benevolente, carismática, militar e diplomaticamente hábil.
O legado de Ciro
Ciro, o Grande, não foi apenas um grande conquistador e administrador; ele ocupou um lugar na mente do povo persa semelhante ao de Rômulo e Remo em Roma ou Moisés para os israelitas. Sua saga se assemelha em muitos detalhes às histórias de heróis e conquistadores de outras partes do mundo antigo. Não há dúvida de que a saga de Ciro surgiu cedo entre os persas e era conhecida dos gregos. Os sentimentos de estima ou mesmo admiração com que os persas o tinham foram transmitidos aos gregos, e não foi por acaso que Xenofonte escolheu Ciro como modelo de governante pelas lições que desejava transmitir aos seus companheiros gregos.
A figura de Ciro sobreviveu ao longo da história como mais do que um grande líder que fundou um império; ele se tornou também o epítome das grandes qualidades esperadas de um governante na antiguidade e assumiu características heroicas como um conquistador tolerante e magnânimo, além de corajoso e ousado. Sua personalidade, vista pelos gregos, influenciou a eles e a Alexandre, o Grande e, como a tradição foi transmitida pelos romanos, pode-se considerar que influencia nosso pensamento até hoje. Cabe ressaltar que, o cilindro de Ciro é considerado a primeira declaração de direitos humanos da história da humanidade e, não por acaso, uma réplica do cilindro de argila original na língua acadiana com a escritura cuneiforme encontra-se exposta na sede da ONU e traduzida nas seis línguas oficiais das Nações Unidas.
Referências
GERSTENBERGER, Erhard S. Israel no tempo dos persas: Séculos V e IV antes de Cristo. Tradução de Cesar Ribas Cezar – 1ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
GIORDANI, Mário Curtis. História da Antiguidade Oriental. 4ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1977.
MOURREAU, Jean-Jaques. Grandes civilizações desaparecidas: A Pérsia dos grandes reis e de Zoroastro. Rio de Janeiro: Edições Ferni, 1978
OSWALT, John N. Comentário do Antigo Testamento: Isaías, Volume II. Cultura Cristã, 2019.
Sites
Bible Gateway. Disponível em: https://www.biblegateway.com/passage/?search=Esdras%201&version=NVI-PT.
Rei Ciro: Como Isaías falou de um rei que viveu 200 anos depois? Disponível em: http://lucascamilio.blogspot.com/2016/10/rei-ciro-como-isaias-falou-de-um-rei.html.
New World Encyclopedia. Disponível em: https://www.newworldencyclopedia.org/entry/Info:Main_Page.
Teológica Latino Americana – Enciclopédia Digital. Disponível em: http://teologicalatinoamericana.com.
Fonte dos versículos em hebraico: Bíblia Hebraica transliterada. Disponível em: https://www.hebraico.pro.br/r/quadros.asp.
Notas
[1] Tradução para o português obtida a partir da tradução do antigo acadiano para o inglês do cilindro de Ciro, parafraseado do exposto na obra de The Ancient Near East, Volume I: An Anthology of Pictures, editado por James B. Pritchard.
[2] Historicamente conhecido por seu nome latino Oxus, o Amu Darya (também chamado de Amu, rio Amo) é um rio importante na Ásia Central e no Afeganistão. Nascendo nas montanhas Pamir, ao norte do Hindu Kush, o Amu Darya é formado pela confluência dos rios Vakhsh e Panj, na Reserva Natural Tigrovaya Balka, na fronteira entre o Afeganistão e o Tadjiquistão, e flui de lá para noroeste nos remanescentes do sul do Mar de Aral. Em seu curso superior, o rio faz parte da fronteira norte do Afeganistão com o Tadjiquistão, Uzbequistão e Turquemenistão. Na história antiga, o rio era considerado como a fronteira do Grande Irã com “Turan”, que correspondia aproximadamente à atual Ásia Central. O Amu Darya tem um fluxo de cerca de 70 quilômetros cúbicos por ano em média.
[3] ANSHAN (ou ANZAN), o nome de uma importante região elamita no oeste de Fārs e de sua principal cidade. Textos acadianos e sumérios do final do terceiro milênio a.C. atestam a terra de Anshan. Os governantes elamitas do segundo milênio a.C. tradicionalmente tomavam o título de Rei de Anzan e Shushan (Susa), sendo Anzan a representação elamita usual de Anshan. Em meados do primeiro milênio a.C. Anshan tornou-se a pátria dos persas aquemênidas.
[4] Os medos são um dos povos indo-arianos que invadiram o planalto iraniano e se estabeleceram na área conhecida por fontes antigas como Média, correspondendo à área moderna de Teerã, Hamadan, Isfahan e sul do Azerbaijão. Os medos são mencionados pela primeira vez como Matāi nas inscrições assírias que relatam as campanhas de Shalmaneser III em 836–835 a.C., embora inscrições anteriores registrem nomes iranianos da área. Outro termo encontrado em registros assírios posteriores é Umman-Manda, que às vezes inclui os medos e outros povos, mas pode ser um termo genérico para nômades ou bárbaros. Os assírios fizeram muitas expedições à terra dos “poderosos medos”, principalmente em busca de cavalos para sua cavalaria. Os medos eram famosos por seus cavalos, mas também há menção de castelos ou cidades fortificadas dos medos em inscrições assírias.
[5] Tradução livre realizada pela autora. A versão em inglês encontra-se disponível em: https://www.newworldencyclopedia.org/entry/Cyrus_cylinder
[6] Corveia: trabalho não pago, servidão.
[7] Entre os autores antigos que mencionam o nome do profeta, podemos citar Xantos de Lídia, Plínio em sua História Natural e Plutarco em seu tratado sobre Íris e Osíris.
[8] Na Antiguidade, Bagastâna (Behistun) era o nome de uma aldeia e de uma notável rocha isolada ao longo da estrada que ligava as capitais da Babilônia e Média, Babilônia e Ecbátana (moderno Hamadan). Muitos viajantes utilizavam essa rota, por isso foi o lugar ideal para o rei persa Dario I o Grande (r.522-486 a.C) proclamar suas vitórias militares. Ele basicamente copiou um relevo mais antigo em Sar-e Pol-e Zahab. A famosa inscrição Behistun foi gravada em um penhasco a cerca de 100 metros do solo. Dario nos conta como o deus supremo Ahura-Mazda o escolheu para destronar um usurpador chamado Gaumata, como o ajudou a reprimir várias revoltas e derrotar seus inimigos.